No documentário Talking With Ozu (1993), um tributo ao cineasta japonês que reúne testemunhos de vários realizadores como Claire Denis, Hou Hsiao-Hsien ou Wim Wenders, Aki Kaurismäki revela a sua admiração por Ozu com uma curiosa frase: “até agora fiz 11 filmes, e planeio fazer mais uns 30… porque recuso-me a morrer antes de ter provado a mim mesmo que nunca chegarei perto do nível de Ozu”. Esta afirmação (disponível aqui), além de mostrar desde logo o peculiar humor de Kaurismäki, escondido entre assomos de humildade e exagero, explica como os filmes do realizador finlandês cada vez mais se parecem com os de Ozu, como se a cada novo filme Kaurismäki ficasse realmente mais próximo desse cinema.
Os pontos de contacto entre os filmes de Kaurismäki e Ozu são vários, mas começam desde logo por uma coerência e consistência, quer temática – que passa acima de tudo por um olhar profundamente humanista e um interesse empático com as fragilidades dos seus personagens – quer estética – cada qual com os seus traços visuais que facilmente identificam os seus filmes. Nesta coerência de filme para filme, muitas vezes até usada como crítica para afirmar que os seus filmes são cópias em série, ganha destaque a questão das permutações: usando esquemas parecidos, são as pequenas diferenças que ganham uma importância extrema, num elogio à subtileza. Se Ozu era capaz de usar a história de uma filha que adia o seu casamento para não sair de casa para revelar diferentes dinâmicas nas relações entre os membros da família e com a sociedade, Kaurismäki parece capaz de contar a história de um refugiado que é acolhido por uma pequena comunidade de pessoas à margem da sociedade, abordando diferentes perspectivas.
O filme anterior de Kaurismäki, Le Havre (2011), contava a história de um rapaz que chegava ao porto da cidade num contentor, e que depois de fugir às autoridades, era ajudado, primeiro por um antigo artista que sobrevive como engraxador, e mais tarde, pelos amigos deste à medida que vão descobrindo os seus esforços, criando assim uma pequena rede de ajuda. Era um retrato de enorme sensibilidade, sobre como o empenho e a solidariedade de poucos pode fazer a diferença na vida de alguém abandonado pela sorte. Le Havre era também o primeiro filme de uma nova trilogia de Kaurismäki, definida à volta de histórias sobre refugiados e cidades portuárias, que é agora continuada com Toivon Tuolla Puolen (The Other Side of Hope, 2017). Neste novo filme, a história centra-se em redor de Khaled, um refugiado sírio que, depois de uma viagem atribulada pela Europa central, esconde-se num navio cargueiro, e que chega assim à Finlândia, sem escolher ou conhecer o seu destino. Mas, tal como em Le Havre, o filme demora-se também à volta das personagens que vão encontrar e ajudar Khaled no seu percurso, e em particular na figura de um antigo vendedor ambulante, Wikström, que está à procura de uma mudança de vida.
A primeira vez que vemos Khaled, este encontra-se debaixo de um monte negro de carvão, e o seu caminho ao longo do filme, desde esse momento inicial, é um movimento da escuridão para a luz. Uma das características partilhadas dos filmes de Ozu e Kaurismäki é uma economia na selecção de planos, uma simplificação da encenação, que é suficiente para deixar clara a acção, sem necessidade de grandes artifícios. Em poucos planos, e em poucas palavras, acompanhamos Khaled desde que chega a Helsínquia, e apresenta-se numa esquadra da polícia a pedir asilo político – é depois encaminhado para um centro de refugiados, e a partir daí segue-se a aventura de adaptar-se à vida nesse centro enquanto espera por uma decisão sobre o seu futuro. Da mesma forma, Wikström despede-se da sua mulher: num plano faz a mala, noutro coloca a aliança em cima da mesa de jantar onde ela olha para ele sem resposta. O filme encontra assim as suas duas personagens principais em momentos-chave, definidores de uma mudança, mas antes de essa mudança revelar-se positiva, a situação de cada um ainda vai piorar. Este é um dos traços dos filmes de Kaurismäki: encontrar as personagens no que parece ser um ponto baixo, mas cuja ascensão ainda demora – é o tal outro lado da esperança.
O humor é também parte integrante deste olhar humanista partilhado por Ozu e Kaurismäki, como forma de desarmar as dificuldades e contradições que a vida apresenta às personagens dos seus filmes. Apesar de Ozu ser mais reconhecido pelo tom melancólico e contemplador dos seus filmes, não faltam exemplos de como usava o humor para, por exemplo, reforçar os falhanços das suas personagens e assim colocar-nos ao seu nível, para os humanizar – desde as diabruras dos mais novos em I Was Born, But… (1932), à cena inicial do protagonista de Tôkyô No Kôrasu (Sinfonia de Tóquio 1931) na escola ou na sequência no trabalho, ou até ao quase burlesco juvenil da personagem de Dekigokoro (Capricho passageiro, 1933), representado num gag de uma carteira abandonada que vai passando de mãos em mãos, com que o filme começa. O humor é parte essencial dos filmes de Kaurismäki, mesmo que tenha características diferentes: o seu uso é mais recorrente, e se já não é tão pronunciado como por exemplo em Leningrad Cowboys Go America (1989), continua a basear-se em gags visuais, como pequenos quadros absurdos, que são reforçados pelo olhar impávido das personagens perante situações caricatas, como se perante uma inevitabilidade trágica da comédia.
Como parte de uma vontade de transformar a sua vida, Wikström compra um restaurante, e com o restaurante vem uma equipa de funcionários sui generis, à qual se vai juntar Khaled, depois de este ser encontrado a dormir junto ao contentor de lixo do restaurante. Na primeira interacção entre os dois, Khaled e Wikström trocam um par de murros, mas no plano seguinte Khaled é reconfortado por todos da equipa do restaurante, Wikström incluído, enquanto ouvem a sua história – é o humor como laço de ligação – a partir daquele momento cria-se uma união inquebrável entre todos. Mas o humor pode também ser apenas um deleite extemporâneo, como na melhor sequência do filme: numa tentativa de recuperar o negócio moribundo, Wikström decide reinventar o local como um restaurante de sushi numa sequência mirabolante que começa com um pillow shot (os planos de paisagem de interligação entre sequências, inspirados em Ozu) de um letreiro japonês; depois do falhanço da reabertura do restaurante, Kaurismäki mostra-nos um outro letreiro, como que a anunciar uma nova aventura, num jogo com o espectador.
Apesar destes momentos de humor, o tom do filme é agridoce, já que o peso da história das provações de Khaled é demasiado sombrio para ignorar, e demasiado ancorado numa triste realidade que se prolonga, como uma reportagem noticiosa faz questão de lembrar. Porém o filme apresenta também um antídoto para o cinismo dos tempos modernos, através da reacção das pessoas à volta de Khaled, que o ajudam perante a indiferença, porque faz parte da sua natureza, porque devia ser a coisa mais natural. Afinal, a melhor ficção é a que nos inspira a ver a realidade de outra forma, que nos leva à procura da esperança nalgum pormenor – resta esperar pelo próximo filme desta trilogia e ver para onde leva Kaurismäki numa próxima aproximação a Ozu.