“De todas as belezas do corpo humano, são os testículos que me causam mais efeito. Quando os contemplo sinto um entusiasmo metafísico. O meu mestre, Pujols, dizia que são os receptáculos dos seres não concebidos. Assim, para mim eles evocam as presenças celestes invisíveis e incorruptíveis. Mas detesto os que pendem, semelhantes a mendigos. Preciso de os arrancar, compactos, redondos, e duros, como uma concha dupla.” Lida a citação pensará o leitor, pelo título que encabeça esta publicação, que o pensamento pertence a Touko Laaksonen, popularizado como Tom of Finland. Se talvez o tenha pensado – o conteúdo da afirmação condiz com o seu trabalho, daí a citação -, certamente não o proferiu. Quem o fez foi Salvador Dali a propósito de Le grand masturbateur, quadro de 1929. Refiro-o porque, motivado por Tom of Finland (2017) de Dome Karukoski que agora se estreia, lembrei-me de ir buscar à prateleira um livro seminal da minha sensibilidade (em ambos os sentidos da palavra) estética: Arte Erótica, um desses objectos profusamente ilustrados, editados pela Taschen, contendo neste caso um texto curioso e abrangente de Gilles Néret.
Nem de propósito é a referida tela de Dali que ilustra a capa do livro, mas, na verdade, o que buscava não eram tanto as considerações sobre pendurezas masculinas do pintor catalão mas antes as considerações sobre a obra do artista finlandês. Recordava-me perfeitamente que um dos seus desenhos a carvão ocupava a quase totalidade de uma das páginas (as ditas memórias seminais da adolescência), e de facto lá estava: página 27, Lumberjacks, 1988, homens musculados, reluzentes, semi-nus, nádegas, testículos e pénis fortemente apertados entre as gangas (nada de pendências, ali só há intumescidas conchas duplas), poses e olhares lascivos. Estava, de facto, tudo lá. E, como explica a certa altura a personagem de Tom no filme de Karukoski, um desenho seu só é bom se provocar uma erecção; a pila como barómetro estético (o cume do falo-centrismo artístico?). Mas aqui encontra-se a maior qualidade de Tom of Finland, a saber, tornar explícita a forma como a produção do pintor tinha, antes de mais, uma função erótica (querendo ser modesto) ou pornográfica (sendo mais realista). Função essa que era primeiramente auto-erótica e, numa segunda fase, objecto de partilha e de ligação comunitária e, naturalmente, sexual. Esta narrativa que descreve o desejo artístico de Touko como um que resulta da (trans)figuração dos próprios mecanismos de opressão é aquela que abre a mais interessante linha interpretativa da obra como um todo – definitivamente mais que as desinteressantes tricas de um biopic filmado em ponto-morto.
O filme de Dome Karukoski falha redondamente, não percebendo que o erótico dos carvões de Tom of Finland está na elegância perversa que impõe a imobilidade à mão ou à boca sequiosa.
Isto porque aquela que parece ser a fundação da história de Aleksi Bardy e Karukoski é uma personagem assaltada por imagens de violência, em particular: um militar russo morto num campo relvado acompanhado de um coelho e um polícia aplicando com gosto o seu cassetete na boca que antes lhe oferecera um felácio. Como se os seus desenhos constituíssem, também, uma lavagem erótica do horror. Lavagem essa que se faz, por oposição, ode ao prazer e à vida enquanto festival de corpos, fluídos e sensações. Assim, o momento mais marcante de Tom of Finland é aquele em que nuns lavabos o inocente e (ainda) imberbe Touko entrega, por de baixo das divisórias das retretes, um desenho seu ilustrando a prática que desejava prosseguir (do género, se não percebeste eu faço-te um boneco). Esta ideia, que o filme constrói abertamente, da arte de Tom of Finland como um instrumento de engate, um cartão postal do desejo e, finalmente, como um anúncio do próprio corpo e das suas capacidades, coloca-a (como se ainda fosse preciso…) junto ao grupo pop de Nova Iorque – com Andy Warhol à cabeça – onde os mecanismos da publicidade eram absorvidos, processados e desconstruídos (sendo que para Tom essa publicidade manifesta-se no desejo exacerbado por corpos idealizados, inalcançáveis e fetichistas – como aliás todos os corpos da imagem publicitária).
Regressando a Néret, “os artistas do pop [estão] em pleno delírio culinário, delírio esse que engloba o nu, ou pedaços exaltados de nu. (…) Erotismo e gula encontram-se, na realidade, misturados no fetichismo da boca, comparada frequentemente a um fruto maduro. Está-se precisamente na América: o puritanismo leva-o sempre acompanhado pela frustração.” E é aqui que o filme de Dome Karukoski falha redondamente, não percebendo que o erótico dos carvões de Tom of Finland está na pose estática, composta à exaustão, numa elegância perversa que impõe a imobilidade à mão ou à boca sequiosa. A ilusão pornográfica das suas obras prende-se, afinal, no facto de se estar a olhar para estátuas: figuras de excelsa masculinidade, vazias de tudo menos do traço… publicitário. Essa ironia fundamental, que se encontra no intervalo entre a erecção e a castração do orgasmo, perde-se na banalidade de Tom of Finland que se começa a desmultiplicar em personagens secundários esquecendo a génese de tudo aquilo: o homem e a sua obra.
Tom of Finland é, no fim de contas, um triste objecto proto-televisivo, típico euro-pudim nórdico: desenxabido – não fossem as passas embebidas em rum que se encontram nalgumas colheradas.