É Verão, quase Agosto, está quente e a praia chama (com mais força que a sala de cinema). Mas a época balnear está mais pesada que o costume e a silly season ficou serious demais. Já os blockbusters da temporada continuam tontinhos como é de bom tom – especialmente tontinhos quando procuram versar sobre os profundos sulcos da humanidade em versão capa-e-relâmpago. Nesse sentido Valerian and the City of a Thousand Planets (Valerian e a Cidade dos Mil Planetas, 2017) de Luc Besson é irmão dos demais festivais de CGI, na medida em que se apresenta e constrói como parábola (romântico-slapstick) do holocausto – como, por exemplo, X: First Class (X-Men: O Início, 2011) de Matthew Vaughn podia (e devia) ser lido como uma reflexão sobre o militarismo do estado de Israel a partir da conversão de Erik Lensherr em Magneto, isto é, a partir da conversão de um sobrevivente do holocausto em psicopata niilista. E pronto, já estraguei o prazer que a féerie multicolor tridimensional de Besson poderia oferecer. Ou nem tanto assim…
Se o silly virou serious, então que se cite Heidegger de chofre: “A essência da arte é a Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da verdade.” Bazin e a sua trupe acrobática fizeram crer que a verdade que confirmava o cinema à sétima posição artística era a verdade que se prendia com a capacidade testemunhal do dispositivo fotográfico. Desse real surgiria a poesia que se encontrava nas obras primas. Mas e o que dizer do cinema que não possui essa qualidade da presença (da conservação do momento através da sua captação imagética)? Penso nas películas pintadas de Norman McLaren ou Stan Brakhage, onde está a verdade que as faz poéticas? Diria que se encontra exactamente no gesto da inscrição (e menos no que é inscrito), ou seja, a verdade está na certeza da mão que se debruçou sobre cada fotograma, que elaborou cada imagem. Esta parece-me ser a via de leitura para filmes como Valerian onde apenas 45 dos planos do filme não foram trabalhados com efeitos digitais (por oposição aos 2355 que foram). A haver poesia ela terá que prender-se na certeza (na verdade) da mão – que depressa se poderá transfigurar na certeza (na verdade) do olhar, não fosse o cinema o instrumento que uma e outra vez literaliza a ligação entre mão e olho, em ambas as direcções.
o digital em Valerian serve mais para pensar o próprio digital do que para olhar o mundo digitalizado
A pergunta que importa colocar é, como pode um cinema que se desprendeu do real (leia-se, do real visível, pois continua fortemente ancorado num real sensível) reflectir sobre esse mesmo real, que (até certo ponto) despreza? Não era essa a pergunta que Chris Marker colocava em Level 5 (Nível 5, 1997)? Pode a recolecção virtual funcionar como mecanismo de expiação? Visto daqui Valerian falha, porque está mais preocupado na alquimia mercantil de produzir um objecto que agrade a todos os segmentos, todas as nacionalidades, todos os gostos e todas as ideologias (esvaziando-se progressivamente em coisa chocha, molemente insignificante). No entanto, visto como alegoria sobre os modos de sentir e viver virtuais, o filme surge como inteligente exercício auto-reflexivo (e especialmente auto-crítico). Isto é, o digital em Valerian serve mais para pensar o próprio digital do que para olhar o mundo digitalizado (como aliás todo o cinema ‘dito’ experimental, que reflecte sempre, primeiramente, sobre o próprio dispositivo).
Há, a este respeito, uma sequência que é particularmente reveladora deste projecto: um assalto num gigantesco centro comercial no meio do deserto onde turistas americanos se passeiam em realidade aumentada comprando iguarias exóticas virtuais. Tudo aqui parece tornar-se cristalino: metáfora ácida do capitalismo (desejar o nada e vendê-lo a quem o quer comprar) onde o consumidor se deixa ludibriar pelo brinquedo tecnológico (com nós, espectadores, que de óculos 3D consumimos imagens igualmente ocas) e os protagonistas – vulgo filmmakers–, sorrateiramente passam a mão através de diferentes dimensões à procura das pérolas que trazemos na carteira. Esta sequência (logo no início, e que não encontra par nas que lhe seguem) tem o dom de fazer confundir os vários níveis de realidade, entrecortando o deserto e a medina comercial futurista, numa perseguição de fantasmas pluri-dimensionais que se fazem presentes exactamente pela mão, que atravessa de uma realidade para outra – renovando a referida equivalência fundamental entre mão e olho. No arcaboiço desta sequência Besson revela uma invulgar consciência da natureza da diversão feira que opera, da sua ontologia. Pena que cedo se esqueça dela.
E é de esquecer que Valerian trata. Do povo que sofreu um holocausto ouve-se “Podemos perdoar, mas como poderíamos esquecer?”, já do casal romântico que ocupa a frente da narrativa ouve-se “Por ti vou apagar a minha playlist de ex-namoradas”. Esta dupla qualidade do lembrar histórico e do esquecer íntimo é parte integrante de um filme que se fundeia num género (e na sua nostalgia, a space opera) procurando, ainda assim, ‘dar novos mundos ao mundo’. Besson não compreende que o digital produziu uma banalidade do excesso, e aquilo que fez descair os maxilares noutras décadas, é hoje o território da publicidade – confortável e costumeiro. O que levanta uma interrogação: é o cinema mainstream ainda capaz de produzir um cinema de atracções verdadeiramente cativante, ou essa tarefa ficará reservada para o cinema experimental de Rainer Kohlberger (e a sua trupe acrobática)?