A “família-de-terror” de James Wan – que é, também, a “família” formada por Ed e Lorraine Warren, o célebre casal de investigadores do paranormal cujos relatos insuflam os filmes de Wan – está aí para durar, ou, dizendo de outra forma, continua de boa saúde e recomenda-se. O realizador de The Conjuring (The Conjuring – A Evocação, 2013) e The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016), que assina também a produção da saga Saw, é, por estes dias, a coqueluche do filme de terror norte-americano, arrastando na sua asa outros nomes cada vez mais seguros, caso do sueco David F. Sandberg, no qual, quanto a nós, já é quase possível ver aquela velha ideia do “discípulo” a superar o “mestre” (Wan).
As aspas estão lá porque, na verdade, Sandberg, à parte das naturais influências de quem vê filmes de colegas com quem partilha interesses, não “treinou” com Wan para chegar onde chegou. Na verdade, foi depois de ter visto uma curta low-budget de Sandberg que Wan o chamou para realizar uma longa nela inspirada através da sua produtora Atomic Monster Productions. Essa longa chamar-se-ia Lights Out (Lights Out – Terror na Escuridão, 2016) e sobre ela já aqui escrevemos desenvolvidamente, um dos melhores títulos de terror que passou em 2016 pelas salas portuguesas. Em equipa que ganha não se mexe, e eis que Sandberg regressa agora, novamente (co-)produzido por Wan, para Annabelle: Creation (Annabelle 2: A Criação do Mal, 2017), um filme que se constitui numa prequela a dobrar: prequela de Annabelle (diz quem viu, que infelizmente não foi o nosso caso, que o filme é um pequeno desastre, embora o filme não seja da autoria de Sandberg) e prequela de The Conjuring (no sentido em que a saga-Anabelle é, ela mesma, uma prequela da saga-The Conjuring). Mas, tal como Lights Out já deixara bem claro, Wan e Sandberg não partilham apenas uma fórmula colaborativa de sucesso, mas também toda uma praxis cinematográfica sofisticada, tanto formal como programaticamente falando, o que inclusivamente nos levou a compará-los, nas linhas que dedicámos a Lights Out, ao modus faciendi do colectivo Borderline Films.
Em Anabelle: Creation, Sandberg demonstra, novamente, como não é apenas mais um realizador de “filmes de terror”, que não lhe interessa apenas o susto pelo susto (e se dizemos “susto”, é propositado, porque entre ele e o medo vai um oceano de competência e imaginação), antes conhecendo e explorando as especificidades da linguagem cinemática com assinalável desenvoltura. Com efeito, o início (os primeiros planos) do filme – durante o qual Sandberg filma, com vagar, os olhos das bonecas que o pai de Bee pinta meticulosamente – é também, desde logo, o início do cinema, ou melhor, do ver-cinema: uma lição de que, também no filme de terror (como em todo o filme, se é que é preciso dizê-lo), tudo começa nos nossos olhos, i.é, no modo como olhamos e lemos (ou não) as imagens. Aspecto importante quando tantas vezes o filme de terror é desprezado pelo seu alegado esquematismo (muitas vezes real, noutros casos apenas aparente), sendo aí que Sandberg (melhor ainda do que Wan, a nosso ver) vai mostrando o seu rasgo, na medida em que, mesmo dentro dos códigos – e, reconheça-se, dos clichês – do cinema de terror mais mainstream (a New Line Cinema, co-produtora do filme, é uma subsidiária da Warner Bros.), consegue encontrar soluções interessantes e, por vezes, mesmo inventivas.
Neste capítulo, aliás, começam já a ser habituais as “pistas” ou provocações meta-cinematográficas com que Sandberg vai salpicando os seus filmes. Em Lights Out, tudo se reconduzia ao escuro, no qual o medo crescia através de uma solução tão simples (mas inventiva, lá está) como a de dar a ouvir ao espectador os frenéticos passos do monstro no desconhecido (e ainda há ecos disto mesmo em Annabelle: Creation). Como então escrevemos, “Se é redundante afirmar que, num filme, luz e sombra estão em permanente dialéctica, em Lights Out, tal dialéctica assume uma dimensão intra-diegética, porque central no argumento e no ritmo dramático da narrativa; paradoxalmente, é justamente em virtude dessa dimensão que a marca meta-cinematográfica vem ao de cima, no sentido em que o filme dialoga com o próprio cinema, i.é, com a arte, a praxis, a técnica cinematográfica (da mesma forma que o film noir o faz, igualmente se servindo de uma filosofia maniqueísta ‘plástica’ próxima da que aludimos acima: o noir, a sombra, a escuridão é justamente o ambiente em que ocorre o crime, a morte, o pecado, a depressão). E dialoga, muito particularmente, com uma das características plásticas seminais do cinema, na medida em que luz e sombra, claridade e escuridão, outra coisa não são que avatares semânticos para ‘preto’ e ‘branco’”.
Em Annabelle: Creation, além da já mencionada “questão ocular” com que o filme se inicia (todo um statement), há um outro momento – um brinquedo, em rigor – deliciosamente meta-cinematográfico, e que faz tangente, inclusivamente, ao brinquedo de The Conjuring 2 a que o Luís Mendonça já aqui prestara atenção: “Os brinquedos maléficos que ele colecciona no primeiro e segundo The Conjuring apenas reflectem o seu gosto em montar e desmontar os recursos antigos do cinema – não é acidental que aqui o principal brinquedo seja um dos mais célebres dispositivos do pré-cinema, um zootropo que conta (e canta) a lenda do assustador ‘Homem Torto’”. No filme de Sandberg, quando o mal se manifesta a Linda (a amiga inseparável de Janice, cujo corpo é possuído), esta recorre a uma pistola de brincar (imagem acima) para tentar “matá-lo” – há humor (e, mais do que isso, graça) nisto, sendo Sandberg, aliás, habilidoso no equilibrar do medo (que aqui atinge níveis superiores a Lights Out) com o humor, algo nem sempre fácil de conseguir (feito igualmente visível no jogo “epistolar” entre perseguidor e perseguido: “Found you!”). Voltando ao brinquedo: sabendo que, nesta pistola, há uma corda que o seu portador (o projeccionista…) tem de puxar (e um engenho que roda enquanto isso, qual bobina) para “projectar” a bala, o que é que isto nos faz lembrar?
É Sandberg a brincar, simultaneamente, com a dimensão formal mas também artesanal do cinema, equiparando os brinquedos (coisa antiga, manual, popular) ao cinema (idem), da mesma forma que, em Lights Out, o “sabre de luz” era, além de piscadela de olho à saga Star Wars de George Lucas, o brinquedo que, qual lanterna mágica, permitia combater o dark side of the force personificado pelo monstro. Pistolas, máscaras, fantoches, espantalhos, bonecas (no início do filme, quando Bee brinca com o pai, a mãe, como que antecipando as futuras possessões, diz-lhe para pararem, caso contrário a menina fica “demasiado quente”, como se de uma boneca de cera em risco de derretimento se tratasse…), brinquedos em geral: tudo seres – aparentemente – inanimados que concorrem para a afirmação desse lado artesanal, manual, do cinema, destapando a artificialidade super-tecnológica da “infra-estrutura” cinematográfica. É semelhante ideia que decorre da parafernália de espelhos, portas, mesas e cadeiras de madeira que ocupa o casarão do filme – aliás, mesmo a cadeira elevatória que cruza os andares da casa (muito gótico, muito argentiano aquele vitral encarnado…) obedece a toda uma engenharia manual de “rodagem”, como uma bobina (cinema) ou o mecanismo rotatório das caixas de música (brinquedos). Mais: a trágica morte de Bee ocorre quando esta tenta apanhar um parafuso que havia saltado da roda do carro do pai… É, como se vê, toda uma bem oleada engrenagem giratória, circular, que “faz rolar” a narrativa e as imagens.
Mas se o cinema é cinefilamente entendido como “projector” de fantasmas/visões/alucinações, Sandberg inverte as coisas (e se isto pode ser involuntário, não é por aí que oferece menos matéria pensante e, acima de tudo, divertimento ao espectador): ao fazer do gatilho da pistola o “projector” da bala, o sueco coloca este peculiar projector não a “projectar” esses fantasmas, mas a tentar matá-los, anulá-los. Mais do que jogar com a ideia do cinema como medium, é como se o cineasta colocasse o próprio cinema em cheque: o projector (que devia projectar fantasmas) vs. os próprios fantasmas. Técnica (artesanal) vs. imagens. O cinema vs. o próprio cinema?
Outro topos fundamental da “família Wan” é o lugar e a importância da… família – o outro, claro, é Deus e o Diabo, a pureza e a perversão, carne e espírito, e se Sandberg, no seu filme anterior, filmava um mal “secular”, “laico”, psicológico e psicanalítico (e, até, homo-erótico), agora vai igualmente de encontro ao terror “religioso”. Voltando à família: nos tomos de Insidious (Wan) e de The Conjuring (Wan) e em Lights Out (Sandberg), havia uma unidade familiar que fazia tudo para se proteger (e/ou que o próprio filme tentava proteger), que procurava resistir aos “agentes do desmantelamento” (vulgo monstros, fantasmas, o mal em geral). “Unidade” ou o que restava dela, pois, pelo menos em The Conjuring 2 e em Lights Out, o pai estava ausente, ou melhor, morto, predominando, por isso, uma família matriarcal (e disfuncional em ambos os filmes, passo no qual se pode discutir se os mesmos não acusam um certo conservadorismo, mesmo que involuntário). Diversamente, porém, em Annabelle: Creation, não há unidade familiar alguma: a que existe é brutalmente “retirada de cena” logo nos primeiros minutos. Pelo contrário, aqui, todas as personagens buscam, precisamente, alguma forma de unidade, pois todas elas estão, cada uma à sua maneira, órfãs: as raparigas estão-no literalmente, mas não menos o está o casal (pais de Bee), dupla absolutamente solitária e carente de afectos. E há, ainda, a freira, órfã de um Deus (do seu Deus) que não impede que o mal se manifeste em toda a sua magnitude (os crucifixos, objectos tradicionalmente “exorcizadores”, nada podem aqui…).
Complexo esquema proto-familiar, então, que aqui se estabelece: A) pais sem filhos (mortos, em rigor) que querem ter filhos (as órfãs que acolhem como fenómeno de “substituição” ou “compensação”); e B) raparigas órfãs que, traumatizadas com o facto de no passado terem sido descartadas (em certo sentido também “substituídas” por outra coisa), anseiam ser adotadas (se possível como “irmãs”, como o cristaliza o pacto de “inseparabilidade” entre Janice e Linda). Mas, pelo meio de A) e B), existe C), Bee, a filha “morta” (também “órfã” de pais, hoc sensu) que interrompe a “cadeia” de substituição/compensação, que impede que uns e outros se encontrem nessa unidade ideal. Ou, de outra perspectiva, D), a “boneca do mal” (Annabelle) cujo “pai”-artesão é também o pai de Bee (alguma confusão no argumento sobressaindo desta indecisão em escolher Bee ou a boneca Annabelle como a força malévola).
Se o filme, como atrás aludimos, se inicia com os planos dos olhos das bonecas, não é por acaso que, em grande parte dos ataques de Annabelle, esta suga os olhos às personagens: suga-lhes a alma, sim, aqui se devendo, porém, entender – cinéfila ou meta-cinematograficamente, de novo – “alma” como, justamente, o poder ou a capacidade de olhar, de ver e compreender o mundo, ou seja, as imagens (na saga Harry Potter, os Dementors, “criaturas sem alma”, eram desprovidos, justamente, de olhos). Aliás, no caso da mãe de Bee, que houvera sofrido um ataque anterior à chegada das órfãs, o uso da sinistra máscara (que a torna metade boneco, metade humano, tal e qual o espantalho) justifica-se por lhe faltar, precisamente, um olho (desfiguração ou imperfeição física que rima com a perna incapacitada de Janice, razão pela qual a freira lhe diz, para a tranquilizar, que o Diabo se apodera daqueles “weak in faith, not weak in flesh and bone”). É por esta razão que a mãe não sai daquele velado quarto (excelente todo o aparato cénico com que Sandberg a esconde na sua cama-fortaleza encantada): não quer ver (não consegue, não está preparada para ver um mundo que não “compreende” depois da morte da filha) nem quer ser vista (os outros não estão preparados para a ver com aquela aparência). No princípio e no fim… ainda e sempre… o Olhar.