Vou acompanhando o MOTELX desde o seu início e, por isso, sinto que posso adiantar, desde já, que esta décima primeira edição parece marcar o princípio de uma mudança na programação do festival. Não digo que se tenha transfigurado, que tenha sido amputada com uma catana ou desfigurada com ácido. A orientação da programação aponta, contudo, para novas direcções, nomeadamente ao aprofundar a sua vertente cinéfila e até pedagógica. Um convívio entre mortos e vivos, celebração que não esquece o passado e que, com ele, propõe que se pense o presente e se antecipe o futuro.
O que é que eu quero dizer com “novas direcções”? Por exemplo, o “warm-up” reserva três sessões muito especiais na casa-mãe da cinefilia, a Cinemateca Portuguesa, com três exemplares do terror latino: À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964) de José Mojica Marins – obra-prima do cinema brasileiro que analisei aqui, mas que mereceu melhor análise por Ranieri Brandão no nosso dossier Na Presença dos Palhaços -, El vampiro (1957) de Fernando Mendéz – este será uma completa descoberta para mim vinda do cinema mexicano – e ¿Quien puede matar a un niño? (Os Revoltados do Ano 2000, 1976) de Narciso Ibáñez Serrador – filme de culto espanhol que contará com uma rara projecção em solo português.
Ora, estas sessões culminam numa masterclass, organizada pelo colectivo White Noise, dada pelo walshiano Carlos Alberto Carrilho e pelo investigador brasileiro Tiago Monteiro, que falará sobre o cinema de terror brasileiro dos anos 70 produzido na Boca do Lixo, em São Paulo [associado à palestra, Excitação (1976) de Jean Garrett passa no MOTELX em sessão especial]. A moderação fica a cargo da walshiana Sabrina D. Marques. Que filmes culminem numa masterclass é já de si um prenúncio do que procurei dizer no começo: há, de facto, nesta décima primeira edição do MOTELX uma aposta mais adulta na articulação entre os filmes e o seu lugar no campo das ideias e da história.
A vinda dos mestres Alejandro Jodorowsky e Roger Corman – verdadeira história viva em Lisboa – também aponta nesse sentido. E no caso de Jodorowsky será interessante colar Santa sangre (Santa Sangre, 1989) aos seus filmes mais recentes – um lirismo cruel, um circo nascido das entranhas de um real sonhado ou imaginário. Em relação a Corman, destaco o entretenimento assegurado pela passagem de X: The Man With the X-Ray Eyes (O Homem com Raios X nos Olhos, 1963), com um cientista louco ou enlouquecido interpretado por Ray Milland que, fruto de uma experiência arrojada, acaba a ver muito para lá daquilo que alguma vez sonhou – ver mais significará mesmo saber mais?, eis uma questão do cinema como uma questão da crítica. Portanto, os filmes, sim. Mas é preciso contextualizá-los, ter a ciência de os saber ver e dar a entender o seu lugar na história – ontem como hoje – e como nos comunicam e (re)canalizam as nossas angústias e medos tão contemporâneos.
Nada disto é inteiramente novo no MOTELX, dir-me-ão e com toda a razão. Mas quando escavamos mais a programação encontramos pistas importantes. Por exemplo, em dois momentos da programação parece que se procura articular o passado recente do festival com o futuro. A conversa entre Daniel Bird e Kier-La Janisse, a propósito da sua produção teórica sobre os cineastas de culto Walerian Borowczyk e Jean Rollin, parece ser o espaço ideal para se perspectivar uma eventual mini-retrospectiva do cineasta francês em edições futuras do festival – que este enquadramento informado seja o aperitivo para sessões futuras parece-me uma ideia brilhante. Mais um exemplo: o documentário sobre a obra – algo obscura em terras lusas – de Larry Cohen intitulado King Cohen (2017). Sabemos como dá pano para mangas a filmografia do criador de It’s Alive (O Monstro Está Vivo, 1974) ou God Told Me To (Foi Deus Quem Ordenou, 1976) e argumentista de Maniac Cop (1988) ou Phone Booth (Cabine Telefónica, 2002). Talvez esta sessão sirva para gerar a saliva necessária para uma futura homenagem no MOTELX.
O momento alto no âmbito da secção Doc Terror é, contudo, 78/52 (2017) de Alexandre O. Philippe. Estamos habituados a documentários sobre obras inteiras de um realizador – lembre-se o magnífico De Palma (2015), que passou no ano passado pelo MOTELX -, até de documentários sobre um filme – lembro-me do bastante bem conseguido Room 237 (2012), acerca das várias leituras do texto fílmico que é The Shining (1980) – ou sobre um filme que nunca chegou a ser – neste MOTELX há Jodorowsky’s Dune (2013), hoje, às 22h30, ao ar livre, no beco do Bar Lounge -, agora, quantos documentários existem que se dedicam inteiramente à dissecação de uma única sequência? Falo, muito concretamente, das 78 posições de câmara e 52 planos da gélida sequência do duche que ajudou a celebrizar Psycho (Psico, 1960) de Alfred Hitchcock.
Posto isto, também temos – como é habitual – a boa fruta da época. Este ano a selecção é dominada pela produção de língua inglesa, em particular, vinda dos Estados Unidos e da Austrália. Entre o considerável conjunto de filmes, a minha curiosidade pende para cinco títulos: três americanos, Super Dark Times (2017), The Bad Batch (2016) e It (2017), e dois australianos, Hounds of Love (2016) e Berlin Syndrome (2017). Kevin Phillips tem uma significativa carreira como director de fotografia e como realizador de curtas-metragens, mas estreia-se agora na longa-metragem com Super Dark Times, descrito como sendo uma espécie de cruzamento entre Mean Creek (Uma Pequena Vingança, 2004) e Donnie Darko (2001). História de uma adolescência interrompida por um acidente trágico que parece ter os condimentos certos para agarrar o espectador do princípio ao fim. Em relação a The Bad Batch, trata-se de um regresso, o da realizadora de Girl Walks Home Alone (Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa, 2014) ao campo do fantástico. Esta é uma distopia à maneira de um Mad Max sobre uma comunidade de canibais e uma mulher que procura sobreviver ao seu apetite voraz. Tem no elenco Jim Carrey, Keanu Reeves, Jason Momoa e Diego Luna. It é um dos filmes de terror mais esperados do que falta do ano. História de um palhaço demoníaco que resulta de uma adaptação de uma obra de Stephen King e da conversão em metragem de cinema de uma mini-série de dois episódios realizada por Tommy Lee Wallace em 1990. A realização está a cargo de Andy Muschietti, que os portugueses conhecem do esquecível Mama (Mamã, 2013).
Dos filmes australianos, o muito falado Hounds of Love aparece em primeiro lugar nas prioridades de visionamento. Deu que falar aquando da sua exibição no último Festival de Veneza, esta parece ser uma história de cativeiro e sobrevivência algures entre Michael (2011) e Chained (2012). Esta primeira longa-metragem realizada e com argumento de Ben Young promete ser um soco no estômago. Lore (2012) havia surpreendido pela forma intimista como retratava o drama – e os dilemas – de uma jovem alemã em fuga das tropas aliadas. A realizadora deste filme, Cate Shortland, regressa agora para filmar uma relação amorosa transformada num cativeiro sinistro, que porventura irá rimar com Hounds of Love.
Fora do radar anglófilo estão dois dos títulos mais esperados deste MOTELX. Em primeiro lugar está Busanhaeng (Train to Busan, 2016), uma viagem nonstop dentro de um comboio num mundo tomado por zombies. Foi o filme mais visto na Coreia do Sul em 2016 e é – posso confirmar – diversão garantida, de alta qualidade. Em segundo lugar, sugiro mais uma história de clausura, mas, desta feita, tendo como cenário um bar, de onde as personagens parecem não conseguir sair sem ser com uma bala na cabeça. El bar (2017) marca o regresso do cineasta de culto – habitué do MOTELX – Álex de la Iglesia.
Todavia, por muito curioso que esteja em relação ao aparente novo rumo da programação, nem tudo são rosas: lamenta-se a ausência de filmes recentes de cineastas como Sion Sono [acima de tudo, Anchiporuno (Antiporno, 2016)], Takashi Miike [por exemplo, dos vários que entretanto realizou, o seu filme de ficção científica Terra Formars (2016)], Kiyoshi Kurosawa [há mais que um, mas gostava muito de ver no grande ecrã a sua produção francesa Le secret de la chambre noire (2016)], Bryan Bertino [o impressionante The Monster (2016), que ainda ia mais que a tempo de ser apreciado pelos espectadores do MOTELX], John R. Leonetti [Wish Upon (2017)] ou Greg McLean [tem dois mais recentes, mas tendo já visto o recém-lançado em Portugal no on-demand The Belko Experiment (2016), gostaria de espreitar – ainda que saiba das péssimas críticas que tem recebido – The Darkness (2016)]. Claro, não se pode ter tudo nesta excelente celebração do cinema de terror que é, continua a ser, o MOTELX. Sem lamentos, que comece o convívio!