Por ela passa a história do cinema. Trabalhou com Truffaut, com Welles, com Demy, com Antonioni, com Becker, com Godard, com Malle, com Buñuel, com Kazan, com Oliveira, com Richardson, com Losey, com Duras, com Fassbinder, com… É mais fácil dizer ao contrário: afinal, com quem não trabalhou Jeanne Moreau? Trabalhou apenas com os melhores e assim deixou uma marca imensa. Todos os cinéfilos sentem, nesta altura triste, que lhe devem alguma coisa. Alguma coisa não, o mundo. (O À pala de Walsh vai de férias, regressa revitalizado, e cheio de novidades, em Setembro.)
Mademoiselle Moreau, como gostava de ser tratada, deixa marca, deixa-me marcas, acelera memórias e muitas imagens com voz própria, irrepetível voz, mil vezes vai ser dito isto e mil vezes vai ser verdade. Agarrava as personagens de tal forma que parece que as engolia numa justeza arrepiante. Se tenho que falar de um filme lembro-me logo de tantos outros, da nocturna errante d’Ascenseur pour l’échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor, 1958), do Malle, à lucidez passional da jogadora em La baie des anges (A Grande Pecadora, 1963), de Demy, da malícia depurada no Le journal d’une femme de chambre (Diário de Uma Criada de Quarto, 1964), do Buñuel, do lasso desencanto em La notte (A Noite, 1961), de Antonioni, da força teatral em Histoire imortelle (História Imortal, 1968) de Welles, e no Querelle (Querelle – Um pacto com o diabo, 1982), de Fassbinder… A minha memória mais vivida está no Jules et Jim (Jules e Jim, 1962), num excerto decorado para um exercício de escola, caí completamente no turbilhão de Catherine, no sexo das palavras, naquela invenção de amor puro, que ‘’amamos apenas um momento, mas que o momento pode voltar sempre”. Pour toujours, Jeanne Moreau.
Carlota Gonçalves
Não é fácil escolher um filme para falar de Jeanne Moreau. Não concebo partir de uma narrativa ou do olhar de um cineasta para chegar a ela, porque há qualquer coisa bem mais forte na especificidade da sua presença. Um valer por si. Lembro-me de um dia acordar e ter sonhado com uma mulher que deambulava numa longa avenida, de vestido justo e olhar perdido. De vez em quando, deitava a mão ao cabelo… É um filme de Antonioni, La notte (A Noite, 1961), sim, que me leva ainda a outro muito diferente, de Louis Malle, Ascenseur pour l’échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor, 1958), este concretamente sob o signo de Moreau, que invade a atmosfera de uma elegância mais dominante que a música de Miles Davis. As notas estão todas no seu rosto, e a melodia solta-se de um corpo que é a mais sedutora angústia noturna. É uma sabedoria inscrita na pele [o que eu gosto das cenas em que ela faz o seu ritual de beleza em frente ao espelho, como em Jules et Jim (Jules e Jim, 1962)], na postura, no olhar. Sobretudo, ninguém tinha aquele jeito de deambular.
Inês N. Lourenço
Le journal d’une femme de chambre (Diário de Uma Criada de Quarto, 1964) foi uma encomenda vinda de França, numa altura em que a carreira de Buñuel atravessava um momento de impasse. O produtor francês, Serge Silberman, foi inexorável na imposição da “estrela do momento”: Jeanne Moreau. Portanto, a contra-gosto, lá nasceu este filme, que, por sua vez, vinha repegar num romance já adaptado por Jean Renoir (original que Buñuel disse desconhecer). Neste mar de negações, é curioso encontrar uma das “máscaras” mais brilhantes de Moreau. Buñuel apropria-se do texto de Octave Mirbeau e faz o mesmo com o rosto de Moreau, que se constitui aqui como o primeiro realizador desta história. Ele é uma arena de hesitações, porque Moreau – sempre foi assim, nos seus melhores papéis – é e e não é várias coisas: ela é bela, mas não uma deusa; ela é fonte de um desejo louco (letal erotismo), mas a expressão do rosto consegue atingir temperaturas negativas, intimida e inspira dúvida ou até medo; ela é determinada, mas, ao mesmo tempo, veja-se como circula a dúvida pelos lábios, que por vezes morde nervosamente, ou pelos olhos, que viajam não sabemos para onde… Ela é isto tudo e não é isto tudo, ao mesmo tempo. Buñuel disse um dia “Viridiana sou eu”, pois eu acrescentaria: mesmo que a contra-gosto, ele foi, também, Jeanne Moreau.
Luís Mendonça
Le Marin de Gibraltar está longe de ser o melhor romance de Marguerite Duras e The Sailor from Gibraltar (1967) nunca se aproximará dos grandes minutos de Tony Richardson. Mas é nesta adaptação de Duras por Richardson que encontro a Jeanne Moreau que sumaria as outras todas, a que eu descobriria, de uma forma mais ou menos evidente, nas dezenas de filmes que vi com ela, de Touchez pas au grisbi (O Último Golpe, 1954) de Becker a Gebo et l’ombre (O Gebo e a Sombra, 2012) de Oliveira. É a Moreau da monomania, da sublime obsessão, a que conduz a milionária americana Anna a percorrer incessantemente o Mediterrâneo em busca do seu marinheiro de Gibraltar, a Jackie de La baie des anges (A Grande Pecadora, 1963) a delapidar repetidamente a fortuna nos casinos da Côte d’Azur ou a viúva de La mariée était en noir (A Noiva Estava de Luto, 1968) a aniquilar metodicamente os assassinos do noivo amado. Moreau interpretava magistralmente, como nenhuma outra, a fixação, e fazia-o porque a sua persona pertencia a uma classe rara de figuras do cinema: a de uma aristocracia moral que, pela sua solidez no mundo e pelo tédio que dela decorre, se pode dar ao luxo de procurar, da forma mais inteligente, apaixonada e experimental possível, a alternativa na vida. É esta trágica e vertiginosa intensidade que vejo neste fotograma, marcado por uma mulher de cigarro na mão a olhar com um vago interesse para um substituto desgraçado do amor perdido, enquanto reflecte sobre o facto de ter chegado demasiado tarde, ou demasiado cedo, a este planeta onde reina a indiferença.
David Pinho Barros