Desde a fundação, a Cinemateca teve várias instalações e ainda mais tutelas. A sua história começou nos anos 1930, ainda antes da fundação oficial, como filmoteca do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) dirigida por M. Félix Ribeiro, com um escritório na Rua de São Pedro de Alcântara e os filmes guardados numa distribuidora comercial e mostrados no Salão Central ou nas sessões do Cinema Ambulante do Estado Novo. Após a criação legal, em 1948, mudou-se para o Palácio Foz juntamente com os restantes serviços do SPN, entretanto rebatizado Secretariado Nacional da Informação (SNI), mais tarde Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT). Nos anos 1950, reuniram-se as coleções de filmes, livros, revistas, fotografias, cartazes e aparelhos cinematográficos; construíram-se os primeiros cofres climatizados para os filmes, nas traseiras do Palácio Foz; e deu-se o ingresso na Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF), em 1956. Dois anos depois, a biblioteca no Palácio Foz foi aberta ao público e a Cinemateca começou a programar o antigo Central, então “sala do SNI”, onde os filmes conviviam com espetáculos de música, teatro e bailado também organizados pela propaganda salazarista.
Em 1971, a Cinemateca foi integrada no recém-criado Instituto Português de Cinema (IPC) e transferiu-se do Palácio Foz para o Ludovice, no topo da Calçada da Glória. Atravessou uma restruturação interna em 1975 e sobreviveu aos vários organismos que sucederam e repartiram as competências da SEIT até ser finalmente dotada de autonomia administrativa e financeira em agosto de 1980. Rebatizada “Portuguesa”, a Cinemateca instalou-se então num palacete do século XIX na Rua Barata Salgueiro, nas traseiras do qual foi construída uma sala de cinema, inaugurada em 14 de julho de 1980, ainda antes de ficar concluída a adaptação do edifício principal onde ficariam a direção, a biblioteca, um pequeno museu (verdadeiro “gabinete de curiosidades” que dava outra crónica inteira) e os restantes serviços. A primeira sala de cinema da Cinemateca era um edifício com 450m2 que foi construído em dois meses e que tinha, para além do auditório de 216 lugares e da cabine com grandes vigias-janelas que deixavam ver o interior a partir da plateia (e ainda com uma sala anexa para os bombeiros que por lei deviam acompanhar todas as sessões), um foyer com um pequeníssimo bar e um bengaleiro, casas de banho e uma divisão para arrumos.
Esta sala foi destruída em abril de 1981 por um incêndio causado pela combustão parcial de uma cópia de nitrato – evento traumático, mas felizmente sem perdas de vida nem feridos. O palacete também não sofreu danos e entraria em funcionamento no início do ano seguinte. Entretanto, os ciclos da Cinemateca continuaram noutros cinemas de Lisboa e no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Félix Ribeiro faleceu em abril de 1982, meses antes da reabertura da nova sala de cinema, em setembro, que foi por isso, e muito justamente, batizada com o seu nome. O novo cinema seguiu de perto a planta do primeiro, distinguindo-se apenas por ter, na plateia, um corredor central e mais uma porta para o exterior, e uma cabine maior sem a “sala do bombeiro”.
A última intervenção na Rua Barata Salgueiro ocorreu entre 2001 e 2002 com a demolição da sala de cinema anterior. O último filme ali projetado foi The Last Picture Show (Peter Bogdanovich, 1971), em 31 de janeiro de 2001, integrado no ciclo “A última sessão”. Fim de ciclo, novo ciclo. No lugar da antiga sala foram construídas duas novas, a ‘M. Félix Ribeiro’, com 227 lugares, e a ‘Luís de Pina’, 47 – batizada em homenagem ao segundo diretor da Cinemateca (1982-1991) – que ganharam uma cabine comum. Além disso, o palacete beneficiou de restauro integral que ampliou o espaço para depósito de livros e arquivo fotográfico, criou salas museográficas, uma livraria e um restaurante. No pátio exterior entre a livraria e o restaurante fazem-se projeções ao ar livre todos os meses de julho e setembro.
Luís Gigante, 55 anos, conhece a história da Barata Salgueiro desde o início. Veio do IPC, como muitos dos primeiros funcionários da Cinemateca. Na primeira cabine da Cinemateca, em 1980, trabalhavam quatro projecionistas: o Vítor Almeida e o Jorge Teixeira (que ainda lá estão), o Orlando Dias e o Luís Gigante. Recorda-se muito bem da cabine e dos projetores, que me descreve com detalhe: eram dois Prevost de 35mm, fornecidos pela Solercine, com variadores de velocidade adaptados para passar filmes mudos. Depois do incêndio foram substituídos por dois Ernemann de 16/35mm, um dos quais está agora na Cinemateca Júnior. As primeiríssimas sessões na Barata Salgueiro foram asseguradas por Manuel José Vieira Dias (conhecido como ‘Manecas’), que trabalhara como projecionista no Palácio Foz e que durante décadas zelou pela coleção fílmica dos cofres da Cinemateca – e que formaria os primeiros projecionistas da Cinemateca. Este detalhe é absolutamente decisivo porque significa que, ao receberem formação de um arquivista, os projecionistas da Cinemateca interiorizaram desde o primeiro momento a questão da especificidade do manuseamento e projeção de cópias de arquivo. Esse processo de aprendizagem também foi, recorda Luís Gigante, quotidiano, e passou por aprender a revisar e preparar as bobinas, pela compreensão das diferenças entre formatos de projeção e os sistemas de som, pelo uso de dois projetores para evitar a montagem de cópias (proibidíssima para filmes de arquivo) e pelo domínio das transições entre partes, pela escolha da velocidade de projeção correta para os filmes mudos, ou simplesmente por saber que uma cópia de película é, hoje então mais do que nunca, um objeto de museu precioso e particularmente difícil e caro de substituir. Acrescente-se a tudo isto (que nem é tudo…) a experiência de décadas de trabalho e de acumulação e transmissão de conhecimentos e está definida a especificidade da projeção de filmes de arquivo.
Acrescente-se a tudo isto (que nem é tudo…) a experiência de décadas de trabalho e de acumulação e transmissão de conhecimentos e está definida a especificidade da projeção de filmes de arquivo.
Luís, que foi o primeiro chefe de cabine da Barata Salgueiro, trabalhou ali até 1999, data em que foi para o centro de conservação da Cinemateca, o ANIM (inaugurado em 1996). Naqueles vinte anos a Cinemateca mostrou dezenas de ciclos de cinema de autor, muitos deles em colaboração com a Gulbenkian já que João Bénard da Costa, subdiretor até 1991, acumulava essa função com a de diretor do serviço de cinema da Fundação. É por isso que, lança Luís, rindo-se, “Quando saí, já não havia nada de bom para mostrar”. Recorda, também, as sessões pelo país inteiro, incluindo os programas “Rotas” nos Açores e na Madeira. Ainda hoje, mas muito raramente, Luís Gigante faz-se à estrada para ir projetar uma cópia da Cinemateca onde ainda exista uma cabine com as condições necessárias.
(Jorge Teixeira, à esq.; Vítor Almeida, à dir.)
Com Luís Gigante, Jorge Teixeira e Vítor Almeida são os outros dois membros do primeiro grupo de projecionistas da Barata Salgueiro. Nunca trabalharam noutra cabine além desta. São, dos pés à cabeça, projecionistas de cinemateca. Antes de trabalhar aqui, Jorge Teixeira, 63 anos, fazia vários trabalhos para o IPC e para a produtora Animatógrafo de António da Cunha Telles, tomando o primeiro contato com máquinas de projeção no cinema Universal (ex-cinema Bélgica, depois ‘Rock Rendez-Vous’…), explorado pelo mesmo produtor entre 1974 e 1977. Nesse período, o Universal passava sobretudo filmes “revolucionários”, lembra Jorge, abrindo logo com Sambizanga (Sarah Maldoror, 1972) em outubro de 1974. Jorge tem boas recordações da cabine e da sala original da Cinemateca, “uma sala muito bonita”. Sublinha que aprendeu muito com os colegas e os vários chefes de cabine e fala-me, com orgulho, da camaradagem que aqui existe: “nunca ninguém falta ao trabalho e deixa sessões penduradas por causa disso”. Vítor Almeida, 56 anos, também está na Cinemateca desde 1980 e reforça esta ideia da união da equipa que, para ele, funciona bem porque é uma família. Todos aprenderam uns com os outros e todos têm que saber fazer tudo, assim o exige o trabalho por turnos e a necessidade de poder ajudar sempre os colegas. Vítor, no entanto, podia ter seguido uma carreira muito diferente. Durante anos, trabalhou com o pai, Amaro Lima, que era um prestigiado cinzelador, mestre na Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra (Odrinhas), autor de peças decorativas de latão e bronze para casas de banho (os seus moldes de torneiras, misturadoras, puxadores e espelhos de portas eram solicitados por várias lojas da especialidade) e restaurador de algumas obras de estatuária nos palácios de Queluz e Belém. Enquanto me descreve as peças, Vítor enche uma folha inteira com desenhos minuciosos das peças que fazia com o pai, as mãos explicando como se usava cada ferramenta para esculpir o metal. Foi o pai de Vítor quem fez as bobines de aço da cabine e muitos dos respetivos adaptadores, bem como os armários para essas mesmas bobines, guardadas atrás de portas individuais com puxadores azuis. Propositadamente desenhados e construídos para aqui, são um pormenor discreto, mas único e que nunca deixa de impressionar todas as pessoas que visitam a cabine.
Tal como os todos os seus colegas, Jorge e Vítor desfazem a ideia romântica do projecionista que vê os filmes que passa: “Ou se vê o filme, ou se trabalha”, declaram taxativamente. Enquanto se projeta, é preciso vigiar o projetor (escutar o funcionamento da máquina é metade desse trabalho), ter atenção ao foco e ao enquadramento, e ainda mais atenção às mudanças de bobines. O horário de trabalho também é mais intensivo do que numa sala comercial, explicam. As projeções começam logo de manhã, com visionamentos para os programadores e controlo de cópias, e prolongam-se sem interrupção até começarem as sessões públicas, a meio da tarde. Mas ainda não é tudo. Antes de cada sessão, os projecionistas da Cinemateca voltam a fazer mais um teste, arrancando com a máquina para confirmar que o som, a imagem e as máscaras do ecrã (dentro da sala) estão afinados e que não há nenhum imprevisto técnico de última hora. E às vezes, há mesmo. Durante uma das nossas visitas, vimo-los abrirem uma máquina que se recusava a reproduzir som de uma cópia de 16mm depois de ter funcionado perfeitamente durante o visionamento naquela mesma manhã: chave de fendas aqui, botão desligado e voltado a ligar acolá, e chassis novamente fechado. O problema foi resolvido e a sessão começou à hora prevista.
Depois de Luís Gigante, o segundo chefe de cabine da Cinemateca foi Vítor Oliveira, 71 anos, atualmente aposentado. Vítor trabalhou aqui em dois períodos diferentes: o primeiro, no início dos anos 1990; e o segundo, já como chefe de cabine, entre janeiro de 1999 e fevereiro de 2005. O início desta história parece mentira, mas é mesmo verdade: Vítor nasceu dentro de um cinema. O pai era fiscal (gerente) do Paris, na Estrela, e por isso tinha uma residência no próprio cinema. “O meu quarto ainda lá está”, conta Vítor, emocionando-se ao pensar no estado daquela ruína na Rua Ferreira Borges, mas que foi um dos maiores cinemas de bairro de Lisboa, com 900 lugares. Pela mão do pai, começou a trabalhar muito novo na cabine do Paris, com uma licença especial dos bombeiros porque era menor e não tinha ainda carteira profissional. Tirou depois o curso industrial na Escola Machado de Castro e cumpriu o serviço militar em Angola, onde, por conta da sua experiência no Paris, acabou destacado para a secção de fotografia e cinema dos Serviços Cartográficos do Exército. Passou 27 meses em Angola, sobretudo no norte e no leste, fazendo sessões para militares. Passava filmes em 16, 35mm e até 8mm. “Só filmes de pancadaria”, sempre escolhidos pelo comando.
O início desta história parece mentira, mas é mesmo verdade: Vítor nasceu dentro de um cinema.
Quando voltou a Lisboa, em 1969, procurou trabalho nos cinemas da Avenida da Liberdade. Vítor faz um parêntesis para explicar o enorme prestígio dos chefes de cabine, sobretudo os dos grandes cinemas de estreia. Eram profissionais muito experientes e muito competentes e absolutamente imprescindíveis para o bom funcionamento de um cinema. A decoração e a dimensão dos cinemas também impunha respeito e, lembra Vítor, trabalhava-se de fato de gravata na cabine: “era um ambiente muito formal e muito cerimonioso”. O parêntesis não serve para contrastar esse tempo com o atual, mas sim para me explicar melhor a ansiedade que o jovem Vítor Oliveira sentiu durante a entrevista de emprego com o veteraníssimo Sr. José Ferreira, chefe de cabine do Tivoli, que o recebeu pessoalmente e o mandou logo montar uma cópia para testar os conhecimentos do candidato. A entrevista correu bem e Vítor ficaria no Tivoli até o encerramento da sala, exatamente vinte anos mais tarde, em 1989. A cabine tinha uma equipa de cinco projecionistas e, recorda Vítor, nunca se podia largar a máquina durante toda a sessão. Além de ser preciso verificar permanentemente o foco ou o enquadramento, tinham que controlar a combustão dos arcos de carvão no interior das lanternas para garantir que a luminosidade da imagem era constante e uniforme do principio ao fim do filme – sendo certo o protesto do chefe de cabine ou um telefonema do gerente se isso não acontecesse. Só nos anos 1970, conta Vítor, é que surgiram as primeiras lanternas com lâmpadas xénon, que ainda hoje são usadas. Os automatismos, já o sabemos, só viriam vinte anos mais tarde, com os primeiros multiplexes. Na cabine do Tivoli havia quatro projetores: dois de 35mm e outros dois de 70mm. Os primeiros eram fabricados pela Ashcraft (“máquinas excecionais: o projecionista morria e a máquina continuava a funcionar…”); os de 70mm eram os mastodônticos DP70 da Philips. Como não se podia legendar as cópias de 70mm, explica Vítor, passavam-se as legendas simultaneamente nos Ashcraft. Uma solução complicada que implicou afinar os motores dos quatro projetores para que a sincronização fosse perfeita. Mais do que nostalgia desse tempo, Vítor sente orgulho por fazer parte da última geração de projecionistas de película. Não espanta que João Bénard da Costa lhe tenha chamado uma vez “o último moicano”.
Do Tivoli saiu para as Amoreiras (1989), após o que passaria uma primeira temporada na Cinemateca. Vítor fizera vários visionamentos dos ciclos Gulbenkian e foi nessa altura que conheceu pela primeira vez João Bénard da Costa que, como já sabemos, tomava notas para as suas folhas de sessão num camarote junto à cabine do Grande Auditório da Fundação. Após a primeira temporada na Cinemateca, Vítor ainda regressaria ao Tivoli, com outros projecionistas da Cinemateca, para vários ciclos de cinema durante a Lisboa ’94 – Capital Europeia da Cultura. Lembra-se, em particular, da sessão em que passou o longuíssimo Intolerance (David W. Griffith, 1916) – foi em julho de 1994 – com a Orquestra Clássica do Porto e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos (música de Joseph Carl Breil e direção de orquestra de Gillian Anderson). Depois das sessões da Lisboa ’94 no Tivoli Vítor regressou à Lusomundo para dar formação nos Olivais e no Colombo, onde tomou contato com alguns dos primeiros projetores automáticos controlados por computador. Ensinou dezenas de projecionistas, muitos dos quais já passaram por estas crónicas – como Sérgio Ribeiro ou Rui Adega – ou Miguel Campos, que também passaria brevemente pela Cinemateca e é hoje diretor técnico de todos os cinemas NOS.
Quando regressou à Cinemateca pela segunda vez, em 1998, encontrou a cabine da Barata Salgueiro no limite de vida dos equipamentos. “Todos os dias se fazia um milagre com aquelas máquinas e aquela cabine”. Nos Restauradores, fizeram tudo o que se fazia na Barata Salgueiro: visionamentos de manhã, às vezes ainda a seguir ao almoço, e depois as três projeções públicas até à meia-noite. Tendo em conta a idade e as condições da cabine do Palácio Foz, confessa Vítor, aquele período foi outra sucessão de milagres diários. Dizer isso é, claro, fazer o elogio dos seus antigos colegas. Hoje, conclui Vítor, “só há projecionistas na Cinemateca.” Aliás, quando falava do ritmo de trabalho daquela cabine aos antigos colegas da Lusomundo, ninguém acreditava; muito menos quando ele dizia que um ano na Cinemateca era o mesmo que dois anos noutro cinema qualquer. Saiu em 2005 para dar formação (e depois trabalhar como supervisor) na Castello Lopes, que ainda abriu vários multiplexes com projetores de película antes da transição para o digital. E foi ali que continuou a dizer a todos os novos projecionistas o mesmo que todos os seus antigos colegas também me disseram: quando se “está à máquina”, está-se a projetar o filme e não a vê-lo.
Desde a saída de Vítor Oliveira, Maximino Fernandes dos Santos, 63 anos, é o chefe de cabine da Cinemateca. Já contou a sua história muitas vezes, deu não sabe quantas entrevistas, posou para sessões fotográficas e participou em documentários. É por isso, provavelmente, o projecionista mais conhecido do país, dentro do que pode ser o reconhecimento de um trabalho que só corre bem quando é invisível para o público. O cargo de embaixador da profissão não podia estar em melhores mãos, digo eu. Em criança, Maximino frequentava o cinema da Brandoa, que não passava de um pavilhão desmontável, onde também vendia rebuçados e se esgueirava para ver filmes escondido debaixo das bancadas. Começou a trabalhar indo buscar cópias aos distribuidores. “Montar [uma cópia] e arrancar uma sessão era a última coisa que se fazia”, explica Maximino, “e continua a ser assim na cabine da Cinemateca”. Fez sessões na Praia das Maçãs e no Magoito para o mesmo empresário do cinema da Brandoa, lançando-se depois na projeção ambulante, já por sua conta, no alto Alentejo, com cópias de 16mm de filmes estrangeiros e portugueses (como Amor de Perdição, As Pupilas do Senhor Reitor, Aldeia da Roupa Branca). As cópias eram tão velhas que era preciso resumir algumas partes sem som a partir das brochuras de publicidade. O seu maior sucesso naquele período veio com o filme Simplesmente, Maria (Enzo Bellomo, 1972), uma versão cinematográfica da telenovela brasileira com o mesmo título e que já tinha sido adaptada na Argentina, no Peru e no México. Maximino teve o exclusivo do filme para Portugal e mostrou-o durantequase um ano por todoo país, seguindo pela primeira vez um itinerário programado.
O cargo de embaixador da profissão não podiam estar em melhores mãos, digo eu.
Por volta de 1976, começou a trabalhar no cinema Bocage, em Setúbal. Foi uma grande mudança porque era a primeira vez que entrava num cinema “fixo”, embora continuasse a “matar sessões” noutras salas. Em 1981 teve um acidente grave que o obrigou a estar dois anos sem entrar na cabine. Foi depois para o cinema do Centro Comercial da Portela, que tinha duas salas batizadas com os nomes das filhas do dono do cinema – Sheeza e Anusha – onde ficou 20 anos, gerindo, programando e projetando. Foi dali que saiu para a Cinemateca, em 1998. Ainda conheceu bem a cabine antiga da Barata Salgueiro, também viveu a aventura da mudança temporária para o Palácio Foz e participou no arranque da nova cabine. Hoje, Maximino dá atenção a todos os detalhes da organização do trabalho na cabine da Cinemateca, tarefa com uma responsabilidade e uma pressão enormes e constantes, que contaminam até mesmo os tempos de descanso. O trabalho numa cabine destas é tudo menos rotineiro e se metade das preocupações vêm do desafio técnico que é conseguir manter todas as máquinas a funcionar (resolver avarias é um trabalho diário), a outra metade vem da logística intrincada que é necessária à recepção, montagem e projeção das cópias – sobretudo quando falamos das sessões multi-suporte em que se pode chegar a passar película, vídeo e DCPs. A única fonte de sossego – depreende-se claramente da maneira como Maximino fala da equipa – vem de poder contar sempre com a competência e o profissionalismo destes projecionistas.
É Maximino quem nos guia no dia da sessão fotográfica, logo após os últimos testes e o arranque das sessões das 18h30 e das 19h. As cabines das duas salas da Cinemateca formam um longo corredor. A entrada faz-se através de umas escadas discretas junto à Sala ‘Luís de Pina’. Lá em cima, o lado esquerdo é reservado à cabine da Luís de Pina, equipada com dois projetores Kinoton FP38-E, de 16 e 35mm, e um projetor de cinema digital Barco DP 2K-8S. Tal como na cabine do Palácio Foz, há vários avisos sobre diferentes procedimentos de projeção. Aqui, também, há várias prateleiras reservadas a peças sobresselentes e consumíveis para a limpeza e manutenção elementar das máquinas. Nos armários onde se guardam as bobines já montadas, etiquetas escritas à mão indicam o título do filme, o número de rolos, a data e a sala da sessão em que será projetado.
No espaço de transição para a cabine da Sala ‘Félix Ribeiro’ encontra-se uma enroladeira elétrica e a secretária de Maximino com os mapas mensais de visionamentos e projeções públicas. A um cantinho, o dossiê onde se acrescentam os novos relatórios de cabine, cada um com informação detalhada sobre a montagem de cada cópia, o visionamento prévio e a projeção pública. A cabine da ‘Félix Ribeiro’ está equipada com um projetor Barco DCP 30 MX II (desde janeiro de 2014), um par de Kinotons (um FP30E, de 35mm, e um FP38E, de 16/35mm), e ainda um Prevost de 16mm. Os Kinotons têm todos os leitores de som, explica Maximino: “ótico, magnético e digital, Dolby A, SR, SRD, DTS… tudo”. Além da película e do cinema digital, a cabine da Barata Salgueiro continua a poder projetar vários formatos de vídeo analógico e digital, para garantir a possibilidade de mostrar cada filme no seu formato original ou, quando isso não é possível, para multiplicar as alternativas disponíveis. A cabine da ‘Félix Ribeiro’ termina com uma rampa até ao elevador que a liga à garagem, à zona de embalagem e à esplanada – separando assim os percursos de circulação interna dos filmes das áreas públicas da Cinemateca.
Tendo falado já com Sérgio Ribeiro e Michäel Monnier na crónica anterior sobre o Salão Foz, fechamos as entrevistas aos projecionistas da Cinemateca com Miguel Bastos, 39 anos, o mais novo da equipa. Na verdade é o segundo “Michael” da cabine (mas sem trema), já que foi esse o seu nome de batismo na Alemanha, onde nasceu em 1984. Não podendo manter o nome estrangeiro quando veio para Portugal, aos 6 anos, os pais tiveram que mudar o nome para Miguel. Sempre teve o sonho de estudar cinema por isso durante o serviço militar tentou entrar para o Centro de Audiovisuais do Exército (CAVE). Quando saiu e teve que começar a ganhar a vida, empregou-se num clube de vídeo da margem sul. Algum tempo depois entrou para a Lusomundo e, após uma formação com Abel Arnaut no Colombo, foi abrir o Almada Fórum no verão de 2002. Já estava a trabalhar como projecionista e com película – o digital ainda parecia uma realidade longínqua nessa altura –, mas continuava a pensar noutro tipo de cinema.
Concorda que nesta profissão não se pode estar a ver o filme que se está a passar, mas acrescenta que “um projecionista também gosta dos filmes, não gosta apenas das máquinas”. Ou seja, existe um prazer extra se se gostar dos filmes que são projetados, o que nem sempre acontecia, admite Miguel, no contexto dos multiplexes. Tentou, por isso, entrar para a Cinemateca, o que só aconteceu à terceira tentativa, em fevereiro de 2006. Na primeira tentativa, pediu para falar com o chefe de cabine, que na altura era o Vítor Oliveira, para lhe apresentar pessoalmente o seu CV, o que me fez pensar na entrevista de emprego do próprio Vítor Oliveira com o chefe de cabine do Tivoli, quarenta anos antes. A história parecia repetir-se e, mais uma vez, um projecionista em início de carreira dirigia-se a uma cabine prestigiada onde gostaria de trabalhar.
Depois de Miguel, passaram pela cabine da Barata Salgueiro muitos jovens estagiários que também quiseram aprender o ofício de projetar cópias de arquivo em película. Apesar do volume de trabalho quotidiano, a cabine da Cinemateca funciona, por isso, como uma “escola” onde os projecionistas mais experientes transmitem os seus conhecimentos a uma geração mais nova, o que acontece por tradição (os projecionistas sempre aprenderam o ofício com os colegas mais experientes), por necessidade (para que a cabine possa continuar a funcionar), mas também pela enorme generosidade de quem aqui trabalha.
Não podia haver melhor maneira de terminar estas crónicas. A Cinemateca é não apenas o último local onde se projetam diariamente cópias em película, mas também – embora seja difícil separar uma coisa da outra – o último sítio onde se mantém vivos o saber e as memórias de uma profissão inteira. Os projecionistas da Cinemateca são, todos eles, os últimos moicanos.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Luís Gigante, Jorge Teixeira, Vítor Almeida, Vítor Oliveira, Miguel Bastos, Michaël Monnier, Sérgio Ribeiro, Maximino Fernandes, Rui Machado, Margarida Sousa