A estreia em sala de Cidade Pequena (2016) de Diogo Costa Amarante, Farpões Baldios (2017) de Marta Mateus e Coelho Mau (2017) de Carlos Conceição além de demonstrar o potencial comercial do formato curto é, pelo menos, a afirmação destes nomes (e dos seus olhares) no panorama do cinema feito em Portugal. Três realizadores que tanto são estreantes (como Mateus), como têm já uma longa carreira na curta-metragem (como Conceição), mas que trabalham no formato que a distribuição/exibição nacional raramente considera viável. Com epicentro nacional no festival Curtas de Vila do Conde – onde os três filmes foram apresentados em estreia portuguesa, e o filme de Mateus conquistou o Grande Prémio na mais recente edição – e vindos de Cannes e da Berlinale, estas três curtas são espelho da diversidade formal, estética e narrativa do cinema português de autor contemporâneo. Mais ou menos ancoradas numa tradição, mais ou menos receptivas às vanguardas, estas três curtas destes três jovens realizadores são simultaneamente o sinal do que está para vir e a consagração do que já chegou.
Não é todos os anos que o “cinema português” recebe um Urso de Ouro, no entanto, pelo segundo ano consecutivo foi isso que aconteceu: depois de Leonor Teles com Balada de um Batráquio (2016) – sobre o qual os walshianos João Araújo, Francisco Noronha e Luís Mendonça escreveram –, foi a vez de Diogo Costa Amarante vencer a competição internacional de curtas-metragens na última edição do Festival de Berlim com Cidade Pequena – estreado no ano anterior no Curtas de Vila do Conde. Galardão ainda mais valioso quando o filme não teve financiamento, foi auto-produzido e o realizador é também argumentista, montador, director de fotografia e de som. O que primeiro espanta no filme é o formato. O ecrã largo serve para filmar caixões e cobras, dizia Lang. Para Costa Amarante serve para filmar o sobrinho, dormindo – e, numa aparente provocação, o realizador faz um filme sobre a morte que inclui um plano de uma cobra… filmada na vertical.
O choque entre a largueza do formato e a miudeza íntima do assunto é apenas um de vários choques que o filme convoca. A saber: a forma como a imagem se compõe – sempre na vertigem da desmontagem – qual puzzle onde é impossível reconhecer as costuras das peças. Dessas estranhas e improváveis composições surgem imagens, cenas e sequências que afirmam o poder da fantasia infantil (que a manipulação digital permite, na sua candura mas também na sua violência) e a forma como esta se vai desvanecendo, descaindo, tornando-se abstracta (o momento do loop na piscina é tão surpreendente quando maravilhoso). A juntar a isto há também uma qualidade musical que nos faz saltitar de plano em plano, numa constante descoberta de soluções e rimas internas – uma complexidade, em abismo, que partilha (pelo menos aí) ligações com As Rosas Brancas (2014), o anterior filme do realizador, e com o seu simbolismo lírico-implosivo. Cidade Pequena é um objecto raro, pela estética que convoca, pelo panorama do cinema nacional (onde dificilmente se insere) e na própria obra do realizador. Mas é exactamente na margem (ou à margem) que o filme parece sentir-se melhor.
Estas três curtas destes três jovens realizadores são simultaneamente o sinal do que está para vir e a consagração do que já chegou.
Já o filme de Marta Mateus, Farpões Baldios, insere-se muito bem no panorama nacional, em particular na aproximação ao cinema de Pedro Costa. Isto é, não o faz tanto pela escuridão onírica que o realizador compõe até ao limite, mas exactamente pela claridade que olha o mundo e encontra nele a evidência das coisas e dos seus significados. Posto doutro modo, Mateus aproxima-se de Costa não pelo lado de Jacques Tourneur (o seu classicismo), mas pelo lado de Straub-Huillet (o seu vanguardismo). No entanto, Farpões Baldios é um filme em conflito consigo mesmo. De uma banda, a vontade de apurar cada plano a uma unidade auto-suficiente (imagens que parecem já destituídas de uma vida concreta, parecem já apenas signos de gestos, apuramentos formais extremos do real que o destituem da sua concretude), depois um desejo narrativo que componha o todo do filme (e que retrate as gentes do Alentejo, os seus modos de vida, as suas tradições em desaparecimento – sempre em modo épico “encostado” de ver e de mostrar). O resultado é uma fragmentação que fica a meio caminho nas intenções iconófilas do primeiro propósito, e também a meio caminho nas suas pretensões narrativas. É a necessidade de existir além da série de bonitos quadros, bonitos rostos, bonitas paisagens, bonitas mãos e bonitos ditados populares que tem, paradoxalmente, o efeito de tornar postiço o que se queria real (não sendo Mateus capaz da sublimação dos signos como a faz Straub-Hulliet, isto é, encontrar na máxima encenação as reminiscências do mundo). O filme é, portanto, um objecto no qual se sente simultaneamente uma dedicação à comunidade que se filma (cada um lê o seu nome nos créditos finais) e um desinteresse por ela (reduzidos a estampas, naturezas-mortas). E isso, parece-me, é exactamente o oposto do desejado.
Quanto a Carlos Conceição – convidado da sexta edição das Conversas à Pala –, e ao seu Coelho Mau, prossegue aquilo que é o seu barroquismo de marca, agora em modo hardcore, já que este é o seu primeiro filme com um orçamento significativo. A câmara movimenta-se em travellings ophulsianos que só se viram antes no cinema português em O Passado e o Presente (1972) – e tudo se passa num casarão que podia muito bem ser o de Os Canibais (1988). E se penso nas câmaras movimentadas de Ophüls e Oliveira, penso também na redescoberta de um estilo em Rebecca (1940) de Hitchcock e, claro, em João Pedro Rodrigues e o seu monstro de látex – do Fantasma (2000) – que aqui surge em versão leather. E que dizer do festival de cores que o filme convoca? Coisa próxima de alguns giallos, em particular dos frenesins argentianos. Mas não se pense que Coelho Mau se fica (ou se limita) a uma enxurrada de citações, o filme é aliás a afirmação da visão muito própria de Conceição que retoma alguns dos seus nodos temáticos: o fetichismo por pés e outras partes do corpo (e aquilo que as cobre), os processos de transferência romântica e sexual, as sexualidades limítrofes, o fascínio pela presença de João Arrais, o romantismo perversamente gótico e o encantamento decadente. Uma ode aos símbolos e às metáforas que se desfazem pelo excesso e, pelo caminho inverso, descobrem na fantasia o adocicado “estrume do amor”.