Nada. Tudo. A oposição será evidente, bem sei, mas isso não a torna menos verdade: A Fábrica de Nada (2017) é um daqueles filmes em que o nada é tudo. O “nada” aqui refere-se, evidentemente, ao título do filme retirado da peça homónima da dramaturga holandesa, Judith Herzberg (que por sua vez inspirou a ideia de Jorge Silva Melo, que está creditado como “pai” da ideia principal do projecto), mas também a esse “nada” que os trabalhadores de uma fábrica de elevadores têm para fazer, depois de esvaziada de máquinas e depois de, mesmo assim, tomarem decisão de a ocuparem em protesto contra um processo de rescisões amigáveis que a administração quer levar a cabo. Já o “tudo” diz respeito à incrível quantidade de registos, ideias, episódios, géneros e nuances que o realizador Pedro Pinho coordena neste “filme colectivo”, como gosta de lhe chamar. Mas antes de explicitar um pouco mais estas relações “nada-tudo” no interior desta obra, que venceu o prémio Fipresci em Cannes este ano, importa esclarecer duas ideias de leitura do filme que me parecem um pouco apressadas.
Leio em alguns textos, sobretudo estrangeiros, a etiqueta de “filme sobre a crise”, uma espécie de quarto volume de As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes. É uma meia verdade. Se a relação com as noites tem alguma razão de ser, esta ligação faz-se mais por via da forma do que pelo seu conteúdo. A isto voltarei, ao fechar o texto. Mas não é verdade que A Fábrica de Nada seja um filme sobre a crise portuguesa, é antes um filme que procura perceber as razões e as soluções de outra crise, mundial de resto: a da mutação da forma genérica do trabalho, com a passagem da força laboral do braço à máquina.
Outra ideia que também me parece apressada é a de “colar” as intenções do Pinho e da sua equipa a um reaquecimento nostálgico (e sem nada de novo a propor) das ideias activistas de esquerda, efectuadas sobretudo nos anos 70, que se propunham reformular as relações laborais por via de várias açcões de luta, entre as quais ocupações fabris e outros projectos cooperativos. É certo que no filme vemos como (não) actores os próprios trabalhadores envolvidos na experiência de auto-gestão da Fateleva que até 2016 geriu a fábrica Otis e, como tal, há um lado de homenagem que contempla como inacabado um gesto positivo de emancipação. Também é certo que, ao conceber o filme como obra colectiva, nos vem à memória o Grupo Dziga Vertov do período marxista de Godard ou mesmo a experiência cooperativa, no cinema português, do “Centro Português do Cinema” (1969) e das várias que se lhe seguiram nos anos 70. Este duplo olhar retrospectivo – para uma forma de agir politica e artística – contém em si a questão de perceber qual o conteúdo da ocupação que Pinho filma, para lá do retrato histórico. E aqui entra o papel estratégico do “nada”.
1. Nada
O filme sabe desse movimento de esvaziamento dos lugares tradicionais do trabalho e mostra que a ocupação é sobretudo uma solução, entre outras, anacrónica, uma vez que já não há para ocupar. Essa consciência está presente em vários momentos. Numa das camadas desta “cebola cinematográfica” temos um interlúdio, estrutura bem visível, que Pinho filma como observador e aluno, de uma conversa com várias pessoas acerca do futuro do capitalismo. Um dos comensais é o célebre filósofo alemão Anselm Jappe, especialista no pensamento de Guy Debord, e crítico desta estrutura reificada que faz embater a produção de valor por mão humana e o “desuso” desta pelo avanço tecnológico. A dada altura ele “entrega-nos” um dado relevante para compreender A Fábrica de Nada. A ocupação dos trabalhadores não é útil por ser radical, mas por não ser radical o suficiente. Quer dizer, ela ainda prolonga, pelo menos na relação com o espaço e os patrões subjugados e zangados, a relação de base que deve ser questionada.
Portanto, a fábrica é um espaço “contaminado”, que já não há que ocupar. Esse espaço onde se produz o “nada” deve ser transfigurado em palco e em outras possibilidades de produção de valor. Coreográfico, contributivo, emocional. A dada altura surge uma personagem enigmática que vem tornar ainda mais disruptivas as relações no interior do grupo de operários à beira de um ataque de nervos. Interpretada por Danièle Incalcaterra [realizador na vida real de um documentário, Fasinpat (Fábrica sin patrón) (2004)], a personagem incorpora um movimento paradoxal no filme: ao mesmo tempo que é aquele que incita os trabalhadores a continuarem a auto-gestão, ele é também o “Vincent Minnelli de serviço”, no cimo da grua a comandar as coreografias Busby Berkeley dos assalariados. No final, o tão só Zé, protagonista, brilhante presença ensimesmada de José Smith Vargas, há-de puxar-lhe as orelhas, porque isto “mexe com a vida das pessoas” e não há cá laboratoriozinhos de experiências sociais, nem embates majestosos esquerda/direita. Ninguém está disposto a abdicar para transformar o que quer que seja.
Se as mãos dos trabalhadores, mecanizadas no contacto com as máquinas fabris [já agora vale a pena ver acerca dessas presenças do corpo no metal da fábrica, o também brilhante Que ta joie demeure (2014) de Denis Côté], produzem o nada, há que reuni-lo, transfigurá-lo nesse tudo. Esse é o derradeiro movimento de ocupação que o colectivo da produtora Terratreme aspira: reocupar o espaço tornado obsoleto pela definição de trabalho e de valor, com outras hipóteses do que poderemos vir a equacionar como algo “produtivo” e algo com “valor”. Os trabalhadores como símbolo de um colectivo laboral, mas também os membros de uma equipa de cinema como colectivo artístico, a porem-se a si próprios o dever de experimentar hipóteses. Nesse sentido, A Fábrica de Nada, obra que nasce do nada para chegar ao tudo, é um filme cuja audácia é directamente proporcional ao risco que corre. Os seus autores sabem que, ao mostrar um filme cheio de hesitações, ritmos diversos, uma obra que tacteia, vacila, distende, comprime, dilata – em resumo, uma obra de suturas onde o colectivo se expõe – está a arriscar não ser uma obra assertiva, uma obra que será vista e tida mais como retórica do que “produtiva”. Mas, enfim, como rebentar a gasta noção de produção senão a partir do seu próprio interior?
2. Tudo
Talvez por isso seja pouco ambicioso olhar-se para o tudo desta “fábrica” e concluir-se simplesmente com uma versão erudita do “quem tudo quer, tudo perde”. O derradeiro gesto produtivo de A Fábrica de Nada é montar uma verdadeira máquina de experimentação, heterogénea, de actividades, registos e teses que vão sendo destilados como hipóteses de… trabalho. Justamente. Por isso, mais do que esvaziar o todo pelo filtro do pragmatismo social, creio ser mais interessante descrever, o melhor possível, esse mesmo todo. O filme de Pedro Pinho é, como já se disse, uma homenagem a uma experiência histórica e por isso tem algo de documentário que recria uma realidade. O seu corpo é também teatral e musical, os antigos trabalhadores da fábrica, agora convidados a reviver momentos de tensão, mas também a dar à perna e à voz, não escondem os enganos, os trejeitos, os soluços e os olhares para a câmara. Estamos entre Brecht e Lars von Trier [Dancer in the Dark (2000)]. Mas também seguimos os dramas de “um Zé” e quando a câmara o segue para casa, pelas magnânimas paisagens industriais dos arredores lisboetas, com o seu filho pela mão, estamos no drama social-realista dardenniano. Uma câmara que sabe pousar no olho resfolegante do orgasmo da sua mulher, ou na marioneta-de-coelho-morto nas mãos do filho, quando passa um tempo com o avô.
Mas há mais camadas. Já referi a pausa para aula de filosofia política, mas poderíamos ainda referir as sequências impressionistas da libertação erótica do punk num concerto de cave, os momentos em que sentimos o pulso documental vagueando pela noite boémia lisboeta, os “tesouros” enterrados no mato como símbolo de um conflito de gerações, ou as aparições súbitas de animais ou de palavras em jogos de improvisação em que a personagem devém actor e viceversa. O filme deambula pela música, pelo grito de desespero, pela piadinha, pelo sublime e pelo rasca. Dessa trajecto vão surgindo coisas, pedaços destacáveis, uns ritmos rápidos e pulsionais e outros lentos e quase intermináveis. Nesses solavancos, o filme vai vivendo da sua própria incerteza, mas alimentado pelo desejo de mostrar que é preciso inventar elevadores que não se limitem a subir e descer apenas na simbologia da ascensão social. Afinal de contas, por que razão uma câmara não se move apenas para cima e para baixo, antes movimentando-se por toda a parte?
3. Coerente Incoerência
E agora um epílogo. Num brilhante texto, com cara de ironia e corpo de verdade, de cobertura da mais recente edição do Festival de Vila do Conde, o seu autor, Ricardo Vieira Lisboa, lançou a ideia de que o sucesso de Pedro Costa influenciou, estética e tematicamente, muito cinema português que se lhe vem seguindo. Evidência bem evidente, que também se aplica a outro nome aqui já referido, Miguel Gomes. Como o autor propõe, os filmes-filhos de Gomes seriam os filmes “engomados”. Não quero aqui discutir as estratégias de descoberta de um potencial fictício-redentor da realidade que, de facto, os filmes de Gomes (alguns) têm em comum com a A Fábrica de Nada. Queria aqui abordar antes a questão formal. Os episódios e os quase anárquicos raccords da trilogia de As Mil e Uma Noites, no fundo, contêm uma mesma ambição do filme de Pinho, o de compor sobre uma estrutura de heterogeneidade. Como aconteceu com os filmes de Gomes, A Fábrica de Nada expõe-se a ser varrida pelo discurso de facilitismo que não tem nada a dizer acerca da questão da estrutura heterogénea a não ser que ela é uma falta, um defeito.
Ora, creio que estes filmes cheios de espinhos, falhas e irregularidades põem à nossa frente – espectadores e críticos – a necessidade de encontrar uma forma de os ver que vá para além da dicotomia “regular-irregular”, “homogéneo-heterogéneo” e, porque não, “tudo ou nada”. Creio ser preciso desengatilhar a arma cinéfila que mede o lado “produtivo” de um filme, exclusivamente, a partir das suas rimas que homogeneizam um todo. Penso que é preciso repensar a questão da heterogeneidade, sem ser pela análise clássica (heterogéneo é um filme ao qual lhe falta homogeneidade), nem pela análise moderna (heterogéneo é o filme que assume a heterogeneidade como um elogio do fragmento). Talvez faça falta começar a perceber a heterogeneidade nem como falha, nem como ganho, mas sim como algo que possibilita a construção de uma “coerência incoerente”. Mas isto são questões que vão muito além dos filmes de Miguel Gomes ou de Pedro Pinho, ou por outra, não é uma crise (de pensamento) exclusivamente nacional.
Seja como for é da necessidade de encontrar esta forma de não rebaixar nem endeusar a heterogeneidade, que depende um mais justo olhar para exercícios que detêm, estética e politicamente, uma vontade transformadora. Não o fazer implica passar ao lado de filmes como A Fábrica de Nada, o mais ambicioso e inventivo filme português do ano.