Aproveitamos a rentrée para colmatar uma falha que tínhamos no site: a escassez de espaços de contraditório entre os membros walshianos e a inabilidade de cobrir, de modo minimamente representativo, o espectro das estreias em sala. Era importante dar a volta a esta questão por vários motivos, mas o principal passa por tornar claro que no À pala de Walsh não há apenas uma única voz, mas uma pluralidade de vozes. Da mesma forma, os vários walshianos têm ritmos diferentes de descoberta das obras, pelo que se impunha a abertura de uma rubrica que permitisse umas quantas repescagens. Portanto, os Comprimidos Cinéfilos serão compostos de ecos, dissonantes ou consonantes, entre walshianos e repescagens de títulos que estiveram em cartaz no mês passado, mas que, por uma razão qualquer, não mereceram o devido destaque em texto individual. Estão abertas as hostilidades, desta feita, referentes a estreias do mês meio silly – ou nem tanto – de Agosto.
Já perto do fim desta viagem de Bertrand Tavernier pelo cinema francês, o realizador conta que no fim da rodagem de Léon Morin, prêtre (Léon Morin – O Padre 1961) Melville lhe disse que ele como assistente era péssimo, mas que, por sua vez, era um bom promotor de filmes. Vai daí e pô-lo em contacto com o produtor Georges de Beauregard, que o levou a trabalhar na promoção de alguns filmes do Godard, Jacques Rozier ou Agnès Varda. O que me interessa nesta sentença, um pouco brutal, dada por Melville a um jovem de 20 anos é que é essa função de publicista que Tavernier activa neste Voyage à travers le cinéma français (Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, 2016). Tendo feito alguns filmes interessantes sobretudo na década de 70 e 80, Tavernier parece aqui estender a sua mão de crítico sentimental, que exerceu nos Cahiers e na Positif (entre outras revistas), e pôr lado a lado as suas memórias desde a infância com alguns realizadores, filmes, actores do cinema francês marcantes para a sua cinefilia. Dessa viagem, que oscila apenas entre os anos 30 e 80, Tavernier vai alternando momentos que parecem ensaios críticos puros – como quando pára a imagem e vai à procura de um segundo plano que ninguém viu e que foi sempre tratado como um puro plano sequência de Le crime de Monsieur Lange (O Crime do Sr. Lange, 1936) de Renoir -, com memórias de menino – quando viu alguém aquecer e comer uma lata de ervilhas ao seu lado numa sala de cinema – ou curiosidades, por vezes inconfidências, cinéfilas: ouvimos o áudio de Belmondo e Melville aos berros um com o outro no já referido filme do segundo ou Jean Gabin, um dos segmentos é dele, a contar como achava Renoir um génio como cineasta, mas como homem uma puta.
Desta colagem um tanto convencional de elementos há que dizer que, apesar da subjetividade um tanto cinema-paraíso, com Tavernier com as suas mãos em modo Pacheco Pereira a contar muitas histórias, temos um filme que dele emerge. Surge-nos algures através do poder das cenas que Tavernier vai escolhendo dos filmes de Becker, Melville, Godard, Truffaut, Claude Sautet, ou outros nomes mais improváveis, como Eddie Constantine ou Edmond Gréville (ou ainda o segmento dedicado ao trabalho dos compositores, Maurice Jaubert e Joseph Kosma). Como se essa entidade impossível, “o cinema francês”, se organizasse, pusesse uns planos a tocar os outros, evocando, excitando, a memória, a curiosidade, o voyeurismo (porque não?) do neófito espectador desprecavido para o poder do cinema. E esta talvez seja a principal virtude do documentário: se é verdade que, como disse Deleuze, “o cérebro é o ecrã”, o do Tavernier não é suficientemente solto e criativo para fazer as ditas imagens voar como em Histoire(s) du cinéma, nem tão sedutor como Scorsese num filme irmão, A Personal Journey Through American Movies (1995). Mas talvez o seu amor pelo cinema, que procura contornar a cronologia, seja combustível o suficiente para que, dos seus segmentos de “ensaios audiovisual au ralenti” ou das suas memórias, nasça uma vontade de recordar ou de conhecer o cinema francês, que é como quem diz, o cérebro do cinema tout court.
Carlos Natálio
“Graça” é daqueles adjectivos que trazem consigo uma enorme bagagem de significações: entre aquilo que é dado, o estilo com uma senhora passeia a sombrinha, o estado em que por vezes se cai, a piada ou gracejo e o nome de uma Tia distante, “graça” é talvez o termo ideal para descrever Baby Driver (Baby Driver: Alta Velocidade, 2017) de Edgar Wright. Isto porque é um filme deveras engraçado, no sentido em que tem um humor curioso promovido à base de pequenos trocadilhos (que nos filmes anteriores do realizadores tendiam para o obscuro e agora tendem para o popular) e de uma playlist recheada de referências musicais – James Gunn foi o pioneiro do script-mix-tape. É também um filme gracioso, na medida em que, especialmente na primeira meia hora, se compõe como objecto de extraordinária orquestração: a primeira perseguição está próxima do bailado contemporâneo, o plano sequência que atravessa o bairro em consecutivos tropeções altamente encenados é de um virtuosismo saliente (e saltitante) e os modos rítmicos como personagens, diálogos e situações se resolvem dão a ideia de que mais do que mise en scène há uma batuta por de trás da câmara.
Pena é que o estado de graça em que Edgar Wright se encontrava – depois da trilogia dos corneto e do fofinho Scott Pilgrim vs. the World (Scott Pilgrim Contra o Mundo, 2010) – se desbarate (é dado de graça) numa tentativa de criar um objecto preso às formatações do mainstream que grassam no cinema hollywoodiano. Veja-se o terceiro acto que, ao invés de caminhar para um clímax, revela afinal que toda a graça do Baby Driver era coisa vazia e insuflada. Um final que pedia peso dramático, num filme feito dos vapores cool de um par de óculos escuros numa carinha laroca. Nesse sentido o filme é como o seu personagem, mais frágil do que a primeira aparência sugeria (e também mais banal). Pescando o velho ditado da minha tia Graça – a quem dou graças –, “mais vale cair em graça do que ser engraçado”. Baby Driver é deveras engraçado. (E este parágrafo é só engraçadinho.)
Ricardo Vieira Lisboa
Não é bem uma prequela do spin off de The Conjuring iniciado por John Leonetti. É mais uma aula sobre o primeiro criador da boneca diabólica que dá título ao filme: James Wan. Já dizia Rivette que a melhor crítica a um filme é outro filme. Aqui está a melhor crítica possível a todo o universo deste cineasta de quem se diz ter “o toque de Midas”: partindo da premissa mais simples, típica de um filme de assombrações, Annabelle: Creation (Annabelle 2: A Criação do Mal, 2017) colecciona situações de horror audiovisual protagonizadas por uma mão cheia de fantasmas ou aparições. É um pequeno tratado sobre o fora de campo e as possibilidades vertiginosas da escuridão – muito mais do que era o primeiro filme do director de fotografia de Wan, que explorava sobretudo a possibilidade vertiginosa da imobilidade da boneca. As incursões da criança que protagoniza o filme no quarto assombrado habitado por Annabelle respeitam quase sempre uma oleada mecânica do horror em que nem sempre o que a personagem vê corresponde ao que a câmara nos dá a ver. Nisto, a câmara institui-se aqui como o principal protagonista.
David F. Sandberg, que se tinha lançado na longa-metragem com um filme curioso, mas ainda manco, Lights Out (Lights Out – Terror na Escuridão, 2016), revela-se um muito competente aluno do cinema de Wan, retirando daqui lições preciosas – estou certo – para o que vier a fazer a seguir. Ao contrário do meu colega Francisco Noronha, não estou, ainda assim, nem perto de dizer que o discípulo superou o mestre. Todavia, academicamente, Sandberg assina um paper bestial sobre Wan sob a forma de um filme. Nota pessoal final: Annabelle: Creation serviu para confirmar muitas das ideias que expus numa aula dada na Universidade de Coimbra sobre James Wan. Inscreve-se, assim, na bibliografia obrigatória para quem quiser mergulhar no universo de Wan.
Luís Mendonça
Loi du marché (A Lei do Mercado, 2015) revela um olhar distanciado – mas não distante – sobre esse campo de batalha chamado mercado de trabalho. A câmara temperamental de Brizé dá espaço – e tempo – a Vincent Lindon para este compor aquele que será, muito provavelmente, o seu papel mais bem conseguido. Esta espécie de “ficção observacional”, cara a Brizé, continua em Une vie (A Vida de Uma Mulher, 2016), adaptação de um romance de Guys de Maupassant que já fora adaptado – com grandes resultados – por Alexandre Astruc em 1958. O filme acompanha, como num documentário, a via sacra de uma mulher permanentemente traída pelo destino – parece-me que, nesse sentido, Une vie dava um bom double bill com Saikaku ichidai onna (A Vida de O’Haru, 1952), tal é a forma como estes filmes falam a linguagem da tragédia.
Mas a grande lição é outra: a vida não tirará sempre tudo, há sempre um raio de luz que penetra – e alumia – a escuridão intensa. A câmara está presa ao rosto da actriz Judith Chemla, transformando-o numa arena emocional convulsa, para a qual o espectador é atribuladamente convocado. Na montagem, Brizé de modo muito habilidoso elide as sequências de maior violência. O espectador – ou melhor, o filme – chega tarde a elas. Este é, portanto, um filme dos “factos consumados”, que teoriza na própria montagem a progressão implacável da vida desta mulher. Foi prémio FIPRESCI no Festival de Veneza em 2016. Contudo, Une vie tem tido uma carreira demasiado discreta face àquilo que representa: um passo em frente na obra de um dos realizadores mais interessantes do actual cinema francês.
Luís Mendonça
Mal refeitos do bombardeio de sucessos e fracassos do Festival de Cannes de 2017, a distribuição portuguesa continua a prendar-nos com títulos das edições anteriores. Agora é a vez de Eshtebak (Clash, 2016) de Mohamed Diab, que, em 2016, abriu a secção Un Certain Regard, espécie de antecâmera que abriga os locais mais exóticos do planeta, onde delfins esgrimam florestes antes de acederem ao nível seguinte e mestres em desvio de rota apontam sabres, ambos suspendidos em regime de quarentena, garantia suficiente para não contaminarem a Competição Oficial, luxuosa montra e indicador (enganador) da temperatura de cada edição. Nesta secção foram reveladas pérolas – porventura, impronunciáveis – como Sud sanaeha (Blissfully Yours, 2002) de Apichatpong Weerasethakul ou Moartea domnului Lãzãrescu (A Morte do Sr. Lazarescu, 2005) de Cristi Puiu, mas também objectos tépidos como Hymyilevä mies (O Dia Mais Feliz na Vida de Olli Mäki, 2016) de Juho Kuosmanen, recentemente estreado em Portugal. Rodado no Egipto, com câmara à mão, dentro de um camião-prisão, durante as manifestações que depuseram o presidente Mohamed Morsi e arredaram do poder a Irmandade Islâmica, dois anos depois do inicio da Primavera Árabe, Eshtebak sugere uma invejável articulação entre forma e conteúdo que o alinha exemplarmente no puzzle multicultural promovido pela secção.
Que fazer com um filme que aposta numa leitura da actualidade política, em que a representação trágica assenta, não só no confronto entre grupos diferentes, mas também nos conflitos vividos pelo cidadão comum? Lançá-lo no auge da silly season, em que a maioria dos portugueses antepõe a brisa do mar ao ar condicionado da sala de cinema, parece estratégia pouco prudente. De resto, não será a exiguidade do cenário e o seu dispositivo de cerco que condicionará o apelo público. No seu percurso, o camião-prisão acolhe personagens de diferentes idades, profissões, religiões, classes ou posições políticas, formando uma pequena comunidade susceptível de representar a complexidade da sociedade egípcia e de garantir um equilíbrio saudável entre forças de atracção e de repulsão. Diab dirigiu as filmagens durante vinte e sete dias, mantendo a câmara sempre a rodar, evocando um dispositivo próprio do reality show ou, mesmo, do trabalho de experimentação com grupos, dirigido pelo artista plástico Artur Żmijewski, nomeadamente no filme Oni (Them, 2007), em que membros da sociedade polaca (direita, esquerda, católicos, judeus, idosos, jovens) integram um workshop de resultados imprevisíveis. Em Eshtebak, é o adolescente, com uma maior maleabilidade no comprometimento político, que é capaz de se entregar melhor ao jogo social, ao responder às inscrições de ódio nas paredes do camião com o desafio anónimo para um jogo do galo. Não escolhe, premeditadamente, o parceiro de jogo. Aguarda que, entre a realidade social que o violenta, alguém responda, como ele, ao desafio de conviver com a diferença.
Carlos Alberto Carrilho
Em Maio de 1966 Robert Bresson largou no festival de Cannes uma bomba contra os falsos moralismos do cristianismo. Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966) seguia através de um inocente burro – uma encarnação crística da santidade – e seus diferentes donos, a roda do pecado do Homem. Será que Todd Solondz não pretende fazer algo do género com Wiener-Dog (Wiener-Dog – Uma Vida de Cão, 2016), um cão-salsicha que salta de dono em dono, história em história? (Ou melhor, de conto em conto, pois é entre o talento de contista e o de dramaturgo que Solondz posiciona o seu cinema). A resposta mais evidente é negativa, pois o realizador é no fundo como os alunos da personagem, interpretada por Danny DeVito, do velho professor de argumento de uma escola de cinema, isto é, riem-se da sua fórmula “What if? Then what?”. A causa tornada acaso dificilmente sustenta uma tese maior, e o filme parece bem ser esse passeio de um dachshund por entre barras de granola, pradarias, jaulas e vestidinhos que ocultam explosivos.
Mas esse percurso canino entre as quatro histórias tem qualquer coisa de palíndromo (aliás título de um dos seus filmes), de back and forth entre as personagens dos seus filmes – uma delas, a de Dawn Wiener (Greta Gerwig) é a mesma personagem de Welcome to the Dollhouse (1995) – de pessoas que parecem estar à beira das etiquetas sociais do “sem tomates” ou do “falhado”: wieners, precisamente. São as suas personagens fracas ou deprimidas, cujas parcas palavras mostram o silêncio de traumas mas cujas tragédias são quase sempre motivo para dar uma gargalhada. Até se podia estabelecer uma progressão narrativa entre as quatro histórias – da jaula inicial à jaula final do dito cãozinho e do menino que aprende sobre a castração através de cães violadores e a personagem de Ellen Burstyn, óculos de ciclope e o oposto do cliché da velhinha piegas e simpática, a sonhar em bancos de jardins com a multiplicação de meninas ruivas, fantasmas das suas vidas alternativas. Podíamos fazer isso mas isso seria não definir o melhor do cinema de Solondz, o humor negro, neste caso em tons de castanho, esparramado nesse longuíssimo e maravilhoso travelling de diarreia canina no asfalto aos sons de Claire de Lune de Claude Debussy.
Carlos Natálio
A moda do cinema contemporâneo, pelo menos de um certo cinema de autor que faz o circuito dos festivais de cinema e que se resolveu titular slow cinema, é uma que quase sempre segue os ditames bressonianos do “menos é mais”. Ou seja, há uma contradição dos termos, uma arte iconófila como é o cinema feita por iconoclastas, que se opõem às imagens (mais na questão do número do que na potência de cada imagem, mas também aí). Esta ideologia estética dominante tende a desvalorizar o excesso – a desconsiderar as possibilidades que o barroquismo permite – a favor de uma visão reflexivo-lírica do mundo. Assim, certos cineastas que trabalham o desregramento visual, o desmando narrativo, que se opõe à castidade simbólica, e que cantam odes ao cúmulo são vistos de esguelha pela intelligentsia – recorde-se o caso de Żuławski para não ir mais longe. Não é verdade que Paul Schrader seja exactamente um desses cineastas, mas Dog Eat Dog (Como Cães Selvagens, 2016) encontra, a espaços, as fugas imoderadas que originam fotogramas como o que encima este parágrafo.
A féerie lasciva que Schrader monta é uma alegre salganhada que encontra no puro gesto criativo e libertário o prazer das imagens que nos confrontam (prazer equivalente nos diálogos truculentos que vão desde a masturbação com pornografia Japanese teen, à auto-ajuda serial killer, passando por todas as situações potencialmente ofensivas que se possa imaginar – nesse sentido Dog Eat Dog tem uma saudável desfaçatez arruaceira que não parece nem desta década, nem sequer deste século). Certamente o filme resulta da experiência traumática que foi Dying of the Light (Vingança ao Amanhecer, 2014) – filme sobre o qual o realizador não tinha final cut e como tal lhe foi tirado das mãos sendo a versão conhecida uma amputação das intenções do realizador. Aliás, foi o próprio quem o disse. Dog Eat Dog tem essa energia de primeiro filme, do “deixa-me fazer tudo o que me der na real gana que talvez nunca mais consiga uma coisa assim”. Há no filme uma explosão de ideias e soluções estapafúrdias de quem procura compensar uma castração. Se o filme não aguenta essa cadência alucinada ao longo da sua hora e meia, é capaz, pelo menos, de um ímpeto disruptivo que conquista pela anacronia e pelo desplante – um pouco como o último filme de Walter Hill.
Ricardo Vieira Lisboa
O senhor Jean-Luc Godard, na sua postura típica de troll de Internet avant la lettre em que uma boutade sai a cada três frases, fez há uns tempos a tradução improvável de SMS. Em vez de Short Message Service, para o realizador franco-suíço a sigla significa Save My Soul. Pois bem, para Jonathan Demme as três letras correspondem a Stop Making Sense (1984), o concerto dos Talking Heads aquando da digressão do álbum Speaking in Tongues, donde saiu o sucesso Burning Down the House. No entanto a primeira canção que ouvimos é, nem mais nem menos, Psycho Killer onde David Byrne, sozinho em palco com uma guitarra e uma cassete, faz uma interpretação esgotante da canção. Demme filma-lhe os pés caminhando, sapato branco, calça larga. Daí dá-nos o artista, cenário despido, palco esventrado, tudo à mostra – quem diria que o distanciamento brechtiano chegaria ao pop-rock dos anos 1980? Esta é a primeira pista para um filme-concerto que está mais próximo de uma peça de teatro filmada, ou da dança contemporânea vista pelo cinema. Mas é isso que acontece em Stop Making Sense: o fato gigante, a introdução progressiva dos vários elementos do grupo juntamente com o próprio cenário, a presença convulsiva de Byrne, o trabalho de luz… tudo trabalha a favor dessa ideia de grande espectáculo de palco.
E se falei em esgotamento e convulsão não o fiz inocentemente. Byrne é uma figura esganiçada que saltita, imparável– qual João Baião, não seria mais o contrário? –, numa explosão de energia que, passados mais de 30 anos, continua a impressionar. Tenho para mim, qual haiku que eu próprio não sei bem interpretar, que “o cinema é temperatura e o teatro calor”. Stop Making Sense é a estranha fusão entre os dois meios (e dois meios fazem um), a repetição da celulóide que fixa as presenças, e depois as presenças que parecem quebrar essa fixidez. É essa dinâmica entre o cinema (e Demme aqui quase se apaga, salvo um ou dois planos) e o bicho de palco suado e excêntrico (que era Byrne) que faz do filme um objecto ainda fresco. Mas não nos enganemos: aqui o cinema está na plateia, assistindo. O que interessa está muito além das potencialidades das imagens em movimento: a fisicalidade de um artista em estado de graça. Um reboliço emocional ontologicamente anti-cinematográfico.
Ricardo Vieira Lisboa