Chegados ao final de Setembro é hora de o Olhares do Mediterrâneo – Cinema No Feminino voltar ao Cinema São Jorge, de 28 de Setembro a 1 de Outubro. Depois de o ano passado termos feito semelhante antevisão do festival, este ano prosseguimos a colaboração e destacamos quatro filmes que poderão assistir nos próximos dias na maior sala de cinema da capital. Três longas-metragens e uma curta, duas ficções e dois documentários, de Portugal a Israel passando pela Turquia. Mas muito mais há para descobrir. Consulte a programação do festival aqui e participe no nosso passatempo (onde oferecemos 5 bilhetes duplos para sessões à escolha do leitor).
Hemsire é o filme de abertura do Olhares do Mediterrâneo – que já completa quatro anos –, e como bom filme de abertura dá o tom para mais uma edição do festival, levantando temas que certamente serão tratados mais profundamente pelo vários outros filmes que compõem esta edição do certame (um total de 52 filmes de 17 países diferentes, incluindo seis títulos nacionais). Os temas colocados em discussão por Dilek Çolak são complexos: a obesidade e a sua relação com a percepção da beleza (pelas próprias e pela sociedade), a maternidade na sua relação por vezes problemática com o matrimónio, o emprego na sua relação com as hierarquias de poder e o espírito revolucionário na sua dupla qualidade auto-destruídora e construtiva. Tudo isto passa por este filme turco que retrata o encontro improvável de duas figuras diametralmente opostas (e onde se lê encontro poder-se-ia ler choque): ele homem, ela mulher, ela obesa, ele em greve de fome, ele preso, ela em liberdade, ela “presa” a um casamento infeliz, ele “livre” na sua imaginação, ele revolucionário, ela submissa, ela prática, ele sonhador…
Çolak está muito ciente destas oposições entre os seus protagonistas. Exactamente por isso, numa das primeiras cenas do filme, vemos uma fita branca sendo colocada no chão do quarto-cela onde o grevista de fome será internado. Fita branca que separará o apertado espaço em subdivisões imaginárias. Estamos em contexto de palco, é evidente, e aquele quarto é o espaço – com as fitas a funcionarem como marcas para a própria exposição dramatúrgica – do encontro entre antónimos. Outras cenas decorrerão, fora do espaço daquelas paredes, outros personagens terão a sua existência e outros entrarão naquele quarto, mas não será por isso que Hemsire deixará de ter o seu trunfo na teatralidade dos encontros fabulosos (no sentido de fábula) que ali ocorrerão entre ela e ele. E desse amigável digladiar de visões opostas do mundo – e de como andar nele – surgirá a possibilidade de renascimento de uma mulher que finalmente se rebela (a revolução é coisa que se pega) contra as impostas e auto-impostas coacções da sua felicidade. Tudo na mais calma das brancuras.
Ricardo Vieira Lisboa
Uma mão segura um cigarro. Uma câmara periclitante sobe da mão ao rosto enrugado de uma mulher que fuma à janela. Ar pensativo a olhar lá para fora, uma pequena varanda e no vidro da janela vão surgindo em hebraico palavras de um poema. Ouvimo-lo: “Quando dizem que a velhice é melhor do que a juventude, não acredites. Que tem as suas alegrias e vantagens, não acredites. Que se atingiu a sabedoria e a excelência, que se merece reverência e deferência, não acredites. A velhice é apenas melhor do que a morte (e mesmo isso, ainda está por comprovar).” As palavras pertencem a Julia Wiener, poetisa de quase oitenta anos e uma das amigas que Lina Chaplin filma em 80 and Counting. Não é por acaso que a isrealita Lina, também ela na casa dos oitenta, abre o seu filme com esta desfeita. O cinema sempre serviu para se saber o que são as coisas, fazendo-as, mostrando-as. Assim, entrar na casa dos oitenta não é sinónimo de imediata sapiência, cliché da juventude ao contrário.
Lina vai filmar também Naomi Polani, apresentada como directora e coreógrafa. Cara de índia, auto-estrada de rugas, ela é diabólica. Canta, dança, chama o seu computador pelo carinhoso nome de Yousef, e esparrama-se em frente à televisão vendo aqueles concursos de canções pindéricos. Ela acha tudo aquilo artificial e a juventude um partido ao qual se pertence. Lina riposta que esse partido já não é o delas, e Naomi diz-lhe que se aqueles jovens do glamour fake da televisão não pertencessem todos a um mesmo partido, até poderiam ser uma delas. Assim, não, “arrastam-nos para um esgoto de aborrecimento”. Lina contorna outro lugar-comum – os longos cabelos brancos e desgrenhados de Polani, a sua postura curvada e silhueta magríssima podiam contar a velhice como aquele índice corporal da transcendência, a decrepitude que é simultaneamente digna do fascínio e do carinho piedoso. Mas não, Poloni é uma performer e há-de sê-lo até ao fim.
A terceira das senhoras retratadas, e a mais velha, é Dalia Golomb, guia turística. Pode ficar sem trabalho se a guerra terminar, mas é a ira que a mantém activa. Ela não se aceita como pessoa velha, é antes uma jovem a quem aconteceu “algo irreparável”. Chaplin filma-a, olhos muito brilhantes, no dia do seu 87.º aniversário, numa ida lá a casa da cabeleireira: “a forma que a idade avançada toma é muito desagradável. Eu não fujo da velhice mas sim da forma que ela tem.” 80 and Counting, no seu conjunto, não deixa de ser um filme ameno. Não há a rebeldia das grandes formas, nem das estruturas arrebitadas. Contudo, mais do que mapear as diferentes formas do envelhecimento no feminino – o lado activo, a reflexão ao espelho ou as grandes tristezas e alegrias de um passado – Lina acaba por fazer um filme sobre viver com aquela idade. E ao vermos e ouvirmos esse viver há qualquer coisa que se desprende das representações no ecrã, qualquer coisa que, na sua heterogeneidade, poderíamos chamar “velhice”. Sem dramas ou euforias, apenas counting. Um contar do tempo e um contar das histórias desse tempo que passa.
Carlos Natálio
Embora Leonor Noivo já tenha uma nova curta-metragem – Tudo o Que Imagino (2017), estreada este ano no IndieLisboa – o filme que compete nesta edição do Olhares do Mediterrâneo é a sua anterior empresa, Setembro, que estreou o ano passado em Vila do Conde e que depois disso passou pelos prestigiados festivais de Locarno e Roterdão. Setembro é não só o mês que corre como o mês que se despede do Verão e dá as boas-vindas ao frio, caminhando. Setembro é também o mês da rentrée, do regresso às aulas, do novo ano laboral depois da pausa. Nessa medida o título do filme de Noivo é particularmente certeiro por encontrar a medida certa para o próprio filme, a saber, um objecto em equivalente transição sazonal que descreve o fim de algo e o início doutra coisa. Setembro é um desses filmes que começa a meio e termina antes do fim (de novo, como o mês que o intitula…). Há uma série de laços afectivos que ficam por atar, uma série de personagens que vagueiam num sentido que só eles conhecem, uma série de locais donde se antecipa um passado nunca revelado, uma série de sussurros que entradizem o que certamente eles conhecem mas nós não. É nesta malha de não-ditos que dois personagens se deitam – qual espreguiçadeira – uma mãe que terá fugido, abandonando um amor já feito memória romântica, e um filho que agora regressado se descobre alheado da realidade do seu país (e dos seus pais). É portanto um filme sobre uma vontade de regresso que desemboca em perda, perda das raízes, perda das ligações.
No entanto, é também um filme que descreve o momento em que se dá uma segunda hipótese, que se procura refundar algo que ruíra. A mãe busca o reatar de um relacionamento, o filha procura os seus pares quando se depara com a hostilidade desinteressada do seu pai. E tudo fica por aqui, pelo desintegrar seguido pela reconstrução. Mas se tudo fica por resolver – como se o filme fosse um excerto de um filme maior – Noivo não deixa pelo meio a delicadeza texturada da película em que rodou o filme. Pelo contrário, o trabalho de Vasco Viana procura uma e outra vez a expressividade máxima do celulóide, donde destaco três momentos que me marcaram pela abstracção: as sombras das árvores que passam através das janelas do comboio, a mancha verde em que se transforma a corrida desesperada do miúdo através de um bosque e a sequência da festa – e Noivo filma tão bem festas… – em que as luzes da discoteca alternam rapidamente de tom criando um efeito caleidoscópio hipnotizante. Tudo momentos que expressam simultaneamente a identidade naufragada de um adolescente desterrado e a alegria dessa mesma adolescência sempre fascinada com as sensações da vida.
Ricardo Vieira Lisboa
É bonito como o cinema nos faz ver o que nunca vimos. Às primeiras imagens deste documentário que segue os périplos da vida de uma guerreira que se agarrou ao cinema, depois da morte do marido, para conquistar e manter a sua independência, lembrei-me de um filme que nunca vi. Há uns anos contaram-me sobre um documentário de uma mulher que toda a vida dobrou e explicou filmes neo-realistas italianos numa cinemateca do leste da Europa (não me recordo bem do país; talvez Bulgária, seria?). O realizador leva a senhora pela primeira vez a Itália, mas ela, devido ao poder do cinema que faz ver, já tudo havia visto sem lá ter estado. Em Haisha Meacinematque parece acontecer o contrário: já não é o cinema que faz ver os sítios que não se percorreram. É o percurso da vida difícil de uma viúva, muçulmana, fundadora da primeira cinemateca árabe em Israel, que se verte em filme, “ofuscando” os filmes que todos os dias passam na sua sala de cinema.
Assim, o filme da realizadora israelita Nurit Jacobs-Yinon não pertence à galeria de obras que visam mostrar o amor pelo cinema e por dar a ver o cinema através das imagens projectadas desses filmes. Raramente os vemos, embora saibamos que são sobretudo sucessos de bilheteira árabes. Aqui esse amor é-nos sobretudo dado por esta vida-cinema, como se o seu esforço diário ilustrasse o que diz sobre as paredes: desde que haja uma livre, não importa onde, eu projectava filmes. O espectador faz isso, projecta em cada cena, os vários filmes da vida de Safaa Dabour. O seu cavalo como símbolo de aventura e obstinação, as sequências de acção em que Safaa tem de ir buscar bobines de um filme (como se fosse uma cena de tráfico de droga), o filme-processo em que se vê envolvida por denunciar uma situação de corrupção, a força de protagonista ao controlar com mão de ferro os seus funcionários e aqueles que querem transformar o seu espaço numa “cultura do álcool”. Finalmente, o drama da despedida, do seu filho e, com ele, de um projector da sua sala. Safaa Dabour, a senhora cinemateca, mostra-nos a sua força e, igualmente, as suas lágrimas. No resumo de todos os seus filmes, Haisha Meacinematque é uma obra política, sobre uma mulher que é um “homem com tomates”, como lhe dizem a dada altura. Uma mulher cuja religião e condição social e familiar a tornam na máxima heroína do cinema que a sustém.
Carlos Natálio