Steven Soderbergh inaugurou com Contagion (Contágio, 2011), aquilo que ele mesmo considerou como um desejo de fazer cinema de género que permitisse ao espectador divertir-se durante um bocado. De lá para cá já tivemos, para além do terror de fim do mundo do referido título, filmes de espiões e pancadaria [Haywire (Uma Traição Fatal, 2011)], comédia dramática [Magic Mike (2012)], um corporation thriller [Side Effects (Efeitos Secundários, 2013)], um biopic de época [Behind the Candelabra (Por Detrás do Candelabro, 2013)] e agora, no seu regresso, uma heist comedy, Lucky Logan (Sorte à Logan, 2017).
Ao longo da carreira de Steven Soderbergh, e de forma mais pronunciada depois de Traffic (Traffic – Ninguém Sai Ileso, 2000), os seus filmes vêm-se distanciando dos seus personagens num acto de desprendimento, cada vez mais pronunciado, ajudado pelas tramas: os trabalhadores do sexo – The Girlfriend Experience (Confissões de Uma Namorada de Serviço, 2009) e Magic Mike –, o perigo de contágio mortal – Contagion (Contágio, 2011) –, a coolness dos seus protagonistas que permitia ver pouco mais do que as próprias estrelas a gerirem o seu brilho – a trilogia Ocean’s–, a cinefilia autofágica – The Good German (O Bom Alemão, 2006), já anunciada na curta Equilibrium (2004) que é uma ode à fotografia dos noirs e à década de 1950 – e a droga como a forma mais eficaz de nos desligarmos do mundo – Side Effects. Muito do seu cinema se “liga” ao alheamento do mundo, talvez pelo medo que o realizador parecia ter dos seus personagens. E como é comum no seu cinema, tudo em Lucky Logan é uma anedota contada com um virtuosismo elegante e frio. Mas ao contrário do que lhe é característico, se aqui os seus personagens começam por parecer caricaturas de papelão (ele trabalha o universo white-trash-rust-belt-hillbilly a partir dos clichés do patriotismo chapeleiro de Trump, das corridas de carros, dos concursos de beleza infantis e dos jogos de feira rural), Soderbergh procura o que há de singular em cada um deles, humanizando-os. Nesse arco está o trunfo de Lucky Logan.
Lucky Logan tinge-se de contornos políticos quando contraria o binarismo político norte-americano.
Esse trunfo é tanto mais forte na medida em que resulta de uma releitura daquelas que são as obras mais conhecidas do realizador norte-americano, a trilogia Ocean’s Eleven, Twelve e Thirteen (2001, 2004 e 2007). Coisa que, aliás, Soderbergh tem consciência quando, a certa altura, num noticiário se relata o caso do filme como o Ocean’s 7-Eleven, que é como quem diz, o Ocean’s da loja do chinês. Esta qualidade “reles” está ligada tanto à mudança de classe social dos protagonistas (que passam dos sofisticados George Clooney, Brad Pitt e Matt Damon, para os rednecks dos estados do interior do EUA), mas também à natureza da própria produção do filme, que Soderbergh procura renovar em versão low cost (através do controlo criativo dos modos de produção e distribuição).
O trunfo em si revela-se quando Soderbergh afirma a equivalência entre estes dois mundos, isto é, quando demonstra não haver afinal grande diferença entre Clooney e o coxo ou entre Pitt e o maneta (e de forma mais lata entre o poder de entertenimento de um blockbuster milionário e uma produção independente). Esta equivalência tinge-se de contornos políticos quando o filme contraria o binarismo político norte-americano – democratas vs. republicanos – reencontrando a caricatura no liberalismo hollywoodiano e os “princípios morais” no sulismo acirrado, e vice-versa. Deste modo, Lucky Logan é possivelmente o filme mais esperançoso sobre a administração Trump.
No entanto, como referi aquando da estreia de Magic Mike (2012), o que me importava, acima de qualquer outra coisa, era perceber de que forma Soderbergh trabalhava o simbolismo do dinheiro e a sua ligação à propriedade – it’s all about the money. É importante perceber de que modo Soderbergh procede à materialização daquilo que é por natureza (ou por construção?) destituído de significado material. Daí que Magic Mike fosse sobre o processo de converter o corpo em trabalho e o trabalho em dinheiro e o dinheiro em símbolo (já destituído de qualquer peso laboral), numa parábola sobre os “mercados” e a forma como para estes o dinheiro é produto financeiro. Já em The Girlfriend Experience o interesse de Soderbergh era o mesmo, de novo um trabalhador do corpo e de novo a correspondência entre o tangível (as carnes de Sasha Grey) e o intangível (o dinheiro que quase nunca se vê).
Em Lucky Logan a relação com o dinheiro é igualmente fundamental, e nesse particular distingue-se dos filmes da série Ocean’s onde os ladrões eram tão abastados como aqueles que eram roubados. Fundamental por se traduzir de forma directa na qualidade de vida dos seus personagens – o dinheiro é-lhes realmente necessário (o desemprego, o roubo, a classe social, a reduzida educação, a custódia dos filhos, as sequelas da guerra…). Ainda assim, Soderbergh traduz esta relação entre dinheiro e a materialidade das vidas dos seus personagens através de uma outra equivalência, entre o dinheiro e o lixo. Não só porque o dinheiro que a pandilha rouba é transportado em sacos pretos do lixo, mas porque este é deitado fora, desbaratado, deitado fora. Mas como as outras coisas podres que sobram, mais cedo ou mais tarde os podres vêm ao de cima. O dinheiro nunca se perde, e há sempre quem ande à cata dos detritos dos outros. Esses são os “princípios morais” que Soderbergh parece defender.
Pena que este exercício respigador (económico e artístico) se fique por um filme meio anónimo, donde só a relação com a abertura do espaço é propriamente soderberghiana. Lucky Logan é um filme de um Steven Soderbergh preocupado em produzir um objecto acessível ao grande público, mas sem a ousadia de outros dos seus projectos de cinema de género.