Em Março de 1972, nas páginas no Diário de Lisboa, João César Monteiro escreveu um dos textos mais célebres sobre cinema português e, em concreto, sobre Manoel de Oliveira. A propósito da exibição em ante-estreia do filme O Passado e o Presente (1972) no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, “Um Necrofilme Português de Manuel de Oliveira”, traçava um diagnóstico que se revelaria premonitório e visionário para Oliveira e para o cinema português das décadas seguintes:
“O problema, de resto, é só este: o país tem (inexplicavelmente) um cineasta demasiado grande para o tamanho que tem. Portanto, das duas uma: ou alargam o território ou encurtam o cineasta. Como nos tempos que correm é difícil alargar um território sugiro que se apequene o cineasta cortando-o às fatias e servindo-o frio ao público do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.”
Nos anos posteriores, a estratégia dos meios de comunicação e dos responsáveis pelas políticas culturais passaria por “apequenar” o génio de Oliveira, ignorando-o ou mesmo insultando-o, como aconteceria no caso da recepção da sua versão do clássico Amor de Perdição (1978), cuja acesa discussão chegou às bancadas da Assembleia da República, acusando o autor do mítico Aniki-Bóbó (1942) de ter feito agora um “Aniki-Gagá”.
Mas tudo mudaria a partir dessa polémica. Paulo Branco parece ter lido as palavras premonitórias de João César Monteiro e decidiu investir na segunda hipótese: “alargar o território” do cinema de Oliveira, rasgando as fronteiras físicas e elevando-o à categoria de fenómeno transnacional. Depois de ajudar na conclusão de Amor de Perdição, Branco foi o responsável pelo lançamento em França do mesmo filme. Então programador da sala parisiense Action-Repúblique, Branco promoveu a estreia francesa de Amor de Perdição, em simultâneo com Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cardoso. A crítica francesa acolheu os filmes com grande entusiasmo e o prestigiado Le Monde dedicou mesmo espaço na sua primeira página ao filme de Oliveira.
Com Francisca (1981), Paulo Branco tornar-se-ia no produtor exclusivo de Oliveira. Até 2004, com Quinto Império – Ontem como Hoje, Branco produziu as 23 longas que Oliveira assinou no mesmo período. Garantindo importantes apoios estrangeiros (França e Itália), Branco produz os documentários Nice – A propos de Jean Vigo (1983) e Lisboa Cultural (1984), obras que reforçavam o prestígio internacional do realizador. O prestígio internacional cultivado por Paulo Branco, desde 1979, em torno da figura e da obra de Oliveira daria os seus frutos em 1984. Nesse ano, numa estratégia de expansão cultural francófona, o ministro da cultura francês Jack Lang aceitou a proposta de Branco/Oliveira para adaptar ao cinema o clássico Le Soulier de Satin, de Paul Claudel, numa mega-produção com quase 7 horas de duração e um orçamento total de 250 mil contos (quando o custo médio de uma produção era de 40 mil). Este mega-projecto de produção europeia reuniu financiamento francês, alemão, suíço e português (IPC e Ministério da Cultura).
A Faca no Rio foi apenas mais um projecto não-concretizado de Oliveira, mas foi pensado como um momento de ruptura no cinema português, ao pressupor a participação da atriz Anna Karina.
A estratégia das co-produções com parceiros internacionais e a entrada no circuito dos festivais de cinema de renome internacional haveriam de nortear definitivamente a carreira de Oliveira sobre a produção de Branco. Tornar-se-ia frequente, daí em diante, que os filmes de Oliveira fossem apresentados em diversos festivais de prestígio antes da sua estreia comercial em Portugal. A partir de 1995, a estratégia de Branco para Oliveira passou a privilegiar a participação de diversas estrelas mundiais nos seus filmes como forma de auto-promoção: Catherine Deneuve, John Malcovich, Irene Papas, Michel Piccoli, Marcello Mastroianni, Chiara Mastroianni, Lima Duarte ou Stefania Sandrelli.
Se esta história está feita, o que é praticamente desconhecido é o projecto que, em meados dos anos 60, António da Cunha Telles preparou para Oliveira e que poderia alterar radicalmente a carreira do autor portuense e também o rumo do cinema português: A Faca no Rio foi apenas mais um projecto não-concretizado de Oliveira, mas foi pensado como um momento de ruptura no cinema português, ao pressupor a participação da atriz Anna Karina, um dos rostos mais mediáticos da nouvelle vague.
A par da sua carreira enquanto “pai” do novo cinema português, produzindo as primeiras longas de Paulo Rocha, Fernando Lopes e António de Macedo, Cunha Telles tinha a consciência de que, face às limitações demográficas e económicas do mercado interno e à falta de investimento público, a internacionalização seria a alternativa para viabilizar a produção contínua de cinema em Portugal.
Para os mais cépticos, o projecto poderia parecer naturalmente megalómano ou irrealizável, mas Cunha Telles já tinha surpreendido antes, ao conseguir “trazer” a Portugal para filmar dois nomes relevantes da nouvelle vague: Pierre Kast [Vacances portugaises (Os Sorrisos do Destino, 1963); Le grain de sable (O Triângulo Circular, 1964)] e François Truffaut [La peau douce (Angústia, 1964)].
Anna Karina estava então no auge da sua popularidade, acabada de estrear Pierrot le fou (Pedro o Louco, 1965) no Festival de Veneza de 1965 e contando na carreira com filmes emblemáticos como Une femme est une femme (Uma Mulher É Uma Mulher, 1961), Vivre sa vie: Film en douze tableaux (Viver a Sua Vida, 1962), Bande à part (Bando à Parte, 1964) e Alphaville (1965), todos realizados por Jean-Luc Godard, com quem se manteve casada entre 1961 e 1967.
Quanto a Manoel de Oliveira, era nessa altura um proscrito em território de ninguém. Então com 58 anos, o cineasta portuense encontrava-se encurralado pela idade num combate entre os jovens turcos portugueses que propunham uma ruptura violenta com o velho cinema e com quase todos os seus resquícios: não se identificava com os “velhos” e os “novos” não o incluíam nos seus planos para o futuro. Alguns anos depois, sobretudo para convencer a Gulbenkian, os novos haveriam de “emendar a mão” e permitiram-lhe realizar O Passado e o Presente, o primeiro filme saído do Centro Português de Cinema, mas em meados dos anos 60 Oliveira era visto sobretudo como um “empecilho”.
O argumento ficaria a cargo do estreante Odylo Costa Filho, um jornalista brasileiro à época a viver em Portugal e Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Lisboa, e seria a adaptação da novela homónimo lançada no Brasil em 1965: No Nordeste brasileiro, no sertanejo vale da Parnaíba (no sul estado do Piauí), o viúvo João da Grécia [a interpretar por João Guedes, o “irmão” de Geraldo d’el Rey em Mudar de Vida (1966)] é um humilde criador de ovelhas que casa com Maria (a interpretar por Anna Karina), uma mulher 40 anos mais jovem. Devido a uma oportunidade irrecusável de negócio na extração de borracha na Amazónia, o ciumento João decide ausentar-se de casa e da família por quatro anos. Quando regressa a casa, a sua jovem esposa carrega um filho no colo.
Noutros cargos técnicos, Cunha Telles recrutaria alguns dos seus “fiéis escudeiros”: a fotografia ficaria a cargo de Augusto Cabrita [director de fotografia em Belarmino (1964), Catembe (1965) e As Ilhas Encantadas (1965)], a montagem de Margareta Mangs [editora em Os Verdes Anos (1963) e Mudar de Vida] e Fernando Matos Silva seria o assistente de realização (à semelhança do que fizera em Os Verdes Anos, Belarmino e As Ilhas Encantadas).
O projecto seria enviado ao director do SNI no dia 11 de Janeiro de 1966, solicitando um subsídio do Fundo de Cinema Nacional no valor de 250 mil Escudos, o que correspondia a cerca de 10% do orçamento do filme. A cumprir-se, o orçamento de 2.512,840 Escudos seria um valor estratosférico para um filme português. As rodagens parciais no Brasil, sobretudo os exteriores no Sertão nordestino e na Amazónia, eram um fator que encarecia bastante o projecto, assim como o cachet das duas estrelas: Cunha Telles previa gastar 750 contos com Anna Karina e 100 contos com o realizador Manuel de Oliveira. Só a título de comparação, o cachet da estrela dinamarquesa seria exatamente os mesmos 750 contos que custou produzir Os Verdes Anos, enquanto o custo total do filme corresponderia a cerca de 2/3 da dotação orçamental do Fundo do Cinema Nacional para 1968 (3.800 contos). Curiosamente, o filme seguinte de Oliveira, no caso O Passado e o Presente, custaria um total de 3 mil contos. Mais caro, na história do cinema português até então, só os 4.800 contos de Camões (Leitão de Barros, 1946) e os 6.000 contos d’A Severa (Leitão de Barros, 1931).
Mas o projecto não seria concretizado por Cunha Telles ou por Oliveira, e constaria apenas mais um perdido entre inúmeros nas suas gavetas, mas o argumento de Odylo Costa Filho seria adaptado, alguns anos mais tarde, ao cinema por George Sluizer sob o título João en het mes (A Faca e o Rio, 1972). Co-produzido entre o Brasil (Roberto Bakker Produções Cinematográficas) e a Holanda (Sluizer Films), o filme teria estreia mundial no Festival de Berlim em Junho de 1972. No Brasil, o filme estrearia em 18 de Agosto de 1973 com o título A Faca e o Rio, e seria ainda o candidato brasileiro ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro da Academia norte-americana. O papel previsto para Anna Karina seria interpretado pela jovem brasileira praticamente desconhecida Ana Maria Miranda.