A antevisão guiou uma parte dos nossos visionamentos durante este MOTELX. Luís Mendonça (LM) e Ricardo Vieira Lisboa (RVL) percorrem alguns dos títulos vistos nesta que foi a 11.ª edição do festival mais cool de Lisboa.
Super Dark Times (2017) era vendido como um cruzamento entre Stand By Me (Conta Comigo, 1986) e Donnie Darko (2001). Sim, a fórmula é correcta. O problema começa quando o filme não passa disso e aplica a receita tão à risca que acaba por esgotar qualquer margem para inovar ou renovar. É verdade: esta história de uma adolescência interrompida, por um evento traumático, deriva numa história sobre a impossibilidade de amar. O trauma degenera numa forma de impotência. O filme bloqueia a certa altura nesta ideia, que, convenhamos, era pelo menos surpreendente. O problema é que a tentação para o “sangue fácil” é grande. Tão grande quanto a vontade de encontrar um vilão devidamente identificado e fazer do final um laço desconchavado para um embrulho sem brilho. Nada se acrescenta aqui. Super Dark Times é ainda mais oco e inconsequente quando comparado com um filme chamado It (2017), que, por sinal, pisa bem melhor o terreno da adolescência. O filme de encerramento a dar tabefes ao filme de abertura? Parece-me que foi isso que aconteceu. (LM)
Para quem vem acompanhando a obra de Álex de la Iglesia – realizador querido do MOTELX, ao qual já foi dedicada uma pequena retrospectiva há um par de anos e do qual os filmes vêm sendo mostrados com regularidade – não se surpreenderá com El bar (2017). Isto porque vários, senão todos, dos elementos que pintalgam a sua visão do mundo e do cinema estão aqui de novo representados, a saber: a reflexão sobre a televisão e os seus malefícios manipuladores (agora estendido também às redes sociais), a visão do Estado como figura subversiva (ou o subversivo com um estado), o coro de personagens que espelha a Espanha e a fixação ao classicismo em modo irónico-gore. Se o leitor tiver passado pelos canais do cabo terá encontrado o filme anterior do cineasta no Cinemundo – Mi gran noche (A Minha Grande Noite, 2015) que teve estreia directa para TV – e nele terá encontrado uma homenagem hispano-sanguínea a The Party (A Festa, 1968) de Blake Edwards. Pois bem, El bar é então uma homenagem a Lifeboat (Um barco e nove destinos, 1944) de Alfred Hitchcock – realizador que de la Iglesia cita uma e outra vez, em particular em La comunidad (A Comunidade, 2000). Um conjunto de personagens representantes de várias classes sociais (do hipster ao mendigo, passando pelo fetichista de meia idade, a senhora viciada em jogo, o cozinheiro seboso, a jovem rica empretigada, entre outros) encontram-se presos num bar de onde não podem sair. A situação extrema faz flutuar, como se esperaria, os vários preconceitos, fobias e idiotíces (acalentadas pela paranóia mediática do terrorismo e das pandemias), colocando-os uns contra os outros. A empresa de de la Iglesia tem um propósito simples e profundamente niilista: independentemente da classe, da educação, do estatuto, da cor ou do género, todos somos uma merda. Não é por acaso que à medida que o filme avança os personagens se vão afundado nos esgotos, o excremento torna-se a arma de arremesso do realizador, a sua ferramenta de uniformização social. E depois da merda, a hipótese de uma tábua rasa. (RVL)
É interessante ver como os filmes comunicam dentro da programação de um festival. Veja-se, por exemplo, como o cativeiro de Hounds of Love (2016) se alimenta de uma psicopatia vácua que é substituída, com pungência, no filme de outra australiana por uma interrogação que nos trespassa a todos: será que todas as relações amorosas não serão uma forma de cativeiro, logo, uma forma de agressão, digo, de agressão extrema? O filme de Ben Young é clínico, chantagista, desleal – com as personagens e espectador – onde o filme de Cate Shortland – abaixo analisado por Ricardo Vieira Lisboa – tende, nos seus melhores momentos, para um desconcertante – e verdadeiramente terrífico – olhar compreensivo sobre o que as suas personagens fazem. Sobre o que fazem por amor, pois é. Mas Hounds of Love, como um exemplar de cinema austríaco (Haneke, claro) em plena Austrália, é um survival movie embevecido com o modo como exerce poder sobre as suas personagens-títeres. Elas são como peças de um teatro sádico que, com vaidade, faz do mundo território para a mais vã exibição de virtuosismo estético e técnico – todo o slow motion cosmético que abre o filme é símbolo do que vem a seguir. Uma filha-da-putice de filme que me deixou indisposto. (LM)
Talvez o leitor se recorde de Lore (2012), a primeira longa-metragem de Cate Shortland que se estreou pelas salas portuguesas há quatro anos. As pontes possíveis com Berlin Syndrome (2017), o seu novo filme, são várias e produtivas. De novo a realizadora adapta um romance, de novo esse romance foi escrito por uma mulher, de novo passado na Alemanha (numa produção australiana, de onde é originária a realizadora), de novo uma história que versa sobre uma jovem e a sua luta com um meio que a degrada. O Carlos Natálio escreveu, na altura da estreia, que Lore era “coming of age puro” – que é como quem diz, a descrição exacerbada do momento em que o adolescente se faz adulto. Pois bem, Berlin Syndrome é por sua vez a pura expressão dos medos de uma jovem adulta na iniciação sexual, isto é, o passo seguinte na meta-narrativa composta pela curta obra da realizadora. O título faz-se do trocadilho com os conhecidos síndromes de Estocolmo e Oslo (o primeiro sobre o sentimento amoroso que a vítima desenvolve pelo opressor, o segundo sobre processo auto-punitivo que a vítima desenvolve, responsabilizando-se pela situação imposta pelo opressor): de novo uma vítima e um carrasco – em que as inversões essas duas posições nunca são totais, mas balançam alegremente nos dois sentidos –, de novo uma psicologia perturbada pela violência, pelo desejo, pela opressão e pela inocência. Cate Shortland é particularmente hábil a desenvolver personagens em que se consegue acreditar, criaturas com uma psicologia e uma individualidade que nunca se simplificam nem caricaturam. Essa desenvoltura dramática é aquilo que agarra verdadeiramente em Berlin Syndrome, apesar de a realização ser banal (com uns planos au ralenti que estão a baixo disso) e do desenlace ser de um revanchismo simbólico óbvio e previsível (ainda que gostoso para o espectador). Fica, mais que qualquer outra coisa, a relação entre desejo, nojo e fotografia, como um perturbante espelho do cinéfilo. (RVL)
Abra a boca para um filme com todos os condimentos de um bom giallo à Fulci ou à Bava. Mas não, não fala italiano. Excitação é apenas uma das várias centenas de obras produzidas na Boca do Lixo, contexto de produção localizado em São Paulo que nos 70 e 80 juntou em equipas de rodagem intelectuais, criminosos, vagabundos e trabalhadores perto de analfabetos. O filme de Jean Garrett, realizador de origem portuguesa considerado por Tiago Monteiro – investigador brasileiro que esteve no MOTELX – um dos mais refinados cineastas desse contexto de produção, é feito à imagem do seu tempo e da sua circunstância. Uma excêntrica junção de elementos – sexo, assombrações e computação – filmados com grande imaginação pelo seu realizador. Zooms ou grandes planos sobre o rosto – que me lembraram intensamente Fulci -, saltos bruscos de montagem que fazem pandã com uma banda sonora groovy deliciosamente datada, algumas cenas de antologia que põem fantasmas a manobrar electrodomésticos – será que Kleber Mendonça Filho viu este filme? -, Excitação foi uma das boas surpresas deste MOTELX, deixando água na boca para a descoberta de mais produções com a chancela Boca do Lixo. (LM)
O debate é um bocadinho geek, confesso-o, mas como pode um zombie correr? Sou da velha guarda, desse tempo em que os monstrinhos do senhor Romero cambaleavam lentamente – putrefactamente – e como tal a sua perigosidade vinha, acima de tudo, de um efeito cumulativo: a ideia de horda de zombies como um mar lento mas asfixiante. Um filme de zombies versava sempre, entre outras coisa, sobre o movimento dos vivos que procuravam a “terra prometida” e sempre a perdiam para o lento magma carnívoro que lhes seguia o encalço. Um medo que vinha não tanto dos monstros mas do seu efeito estabilizador, eles impunham que não houvesse sítios seguros, que não houvesse descanso. Eles venciam pelo esgotamento. A partir de certa altura, vá-se lá saber porquê, os mortos-vivos começaram correndo e foi uma alegria para o terror de acção mainstream que passou a deliciar-se em perseguições parkour. Busanhaeng (Train to Busan, 2016) é a mais recente incursão na mitologia do corredor falecido-ambulante, acrescido de uma nova e mui útil novidade, a cegueira nocturna. Os zombies em Busanhaeng são já, e de forma totalmente despudorada, apenas desculpa: elemento sinóptico da ameaça e do medo. Daí que se deixem manipular à medida das necessidades dramatúrgicas e narrativas do realizador. O alvo (sentado) de Sang-ho Yeon? A especulação financeira. O personagem principal é um gestor de fundos e daí tudo se pinta com contornos de parábola sobre a recente crise financeira que eclodiu e contagiou todo o mundo. Pena que o realizador (neste que é o seu primeiro filme de imagem real, já que o seu trabalho anterior se fazia no reino da animação) se perca no melodramatismo de pacotilha que tem o desplante nada auto-irónico de salvar apenas (cuidado com o spoiler) a criancinha e a grávida, símbolos da pureza imaculada. Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013) meets 28 Days Later… (28 Dias Depois…, 2002) – este último, um dos piores filmes de zombies dos últimos tempos (não fosse de um dos piores realizadores da actualidade, Danny Boyle). (RVL)
Lembro-me bem da primeira vez que vi Psycho (Psico, 1960). Andava desesperadamente à procura da oportunidade, mas o mercado VHS era miserável em Portugal. As sessões de cinema que passavam nas madrugadas da SIC – programadas por Manuel S. Fonseca e Emídio Rangel – salvaram-me a vida. Tive de acordar a meio da noite para accionar o gravador, que tinha o alarme avariado. Depois, vi o filme de Hitchcock uma, duas, três vezes. A certa altura, deixei de ver o filme todo para me concentrar somente na famosa sequência do duche. Arranjei a sequência em papel, decomposta fotograma a fotograma, e afixei-a num painel de cortiça – ainda a tenho aqui, à minha frente, enquanto escrevo. Portanto, sim: dá perfeitamente para realizar um documentário inteiro que gravite em torno destes escassos – mas tão inspiradores – minutos. Este documentário é um elogio a um momento de pura inspiração do mestre Hitchcock, que, auxiliado pela música de Bernard Herrmann e pelos storyboards de Saul Bass, desenhou um dos mais assombrosos objectos de cinema e é ele que, quase como um ready-made, aqui se expõe. Com a precisão de um relógio, Hitchcock encenou a morte da protagonista, a estrela Janet Leigh, que, julgava o espectador, não podia morrer. Muito menos daquela maneira. Realizadores, actores e historiadores dissecam os múltiplos cortes que Bates, travestido de mulher, dá a Leigh, perdão, que Hitchcock e Herrmann desferem na película. O realizador Alexandre O. Philippe sabe cingir-se ao essencial: ao invés de inundar a explanação da sequência com anedotas de produção – algumas mais do que conhecidas -, 78/52 (2017) detém-se e não sai das imagens, exaltando a forma como a montagem faz do puro medo linguagem fílmica. Fundamental para todos os amantes de Hitchcock e do cinema. (LM)
It (2017) é o filme do momento. O investimento em publicidade é notório – não houve um dia em que o MOTELX não nos lembrasse que este era o filme mais antecipado da temporada. As referências a It estavam por todo o lado. A expectativa era grande, ainda que as imagens do trailer me fizessem torcer o nariz. Ora, sob algumas perspectivas, sim, é verdade que estamos na presença de um suculento naco de cinema de terror. A força do vilão e a densidade psicológica dos pequenos protagonistas – que parecem saídos de outro filme adaptado de um livro de Stephen King, Stand By Me (Conta Comigo, 1986) – são muitíssimo apreciáveis. Desengane-se aquele que pensa vir a encontrar em It uma mera colecção de sustos. Este filme é, aliás, um olhar pungente sobre a entrada na adolescência e uma paródia ácida contra o mundo hipócrita dos adultos – os pais, no filme, ou são parecidos ou são mais sinistros que o palhaço aterrorizador. De qualquer modo, o terror puro também passa por aqui. E aí é preciso sublinhar o trabalho admirável do sueco Bill Skarsgård. Algures entre Jack Nicholson e Robert Englund, está aqui encontrado um vilão capaz de aguentar um longo novo franchise. A jogar contra o filme está a algo extenuante duração do mesmo e a relativa dispersão dramática inicial – que faz com que o filme aponte para várias direcções, naqueles que são os seus minutos menos interessantes. Ainda assim, é preciso salientar a capacidade de Andy Muschietti de renovar uma obra de culto, estreada na televisão em 1990, sabendo misturar nostalgia, sentido de fábula, terror psicológico e frenesim audiovisual. Enfim, eis um louvável carnaval do medo que fecha com chave de ouro este MOTELX 2017. (LM)