Nesta Civic TV explico como é que o canal TVCine 4 ouviu os meus desejos mais imediatos e parece ter respondido à presença de Roger Corman em Portugal. Não houve melhor altura para se contemplar a mais recente produção de Corman, mesmo que esta deixe muito a desejar. Ainda com os olhos presos a um filme que vi em Agosto, durante um ciclo dedicado ao western que passou no canal FOX Movies, regresso a um realizador sobre o qual já escrevi umas linhas neste espaço: o homem da violência elegante e cool, o britânico Michael “Death Wish” Winner.

Até parece que os canais TVCine leram a minha entrevista ao “senhor Nova Hollywood”. A carreira de mais de cinco décadas de Roger Corman foi percorrida, como um raio, em míseros 20 minutos. O mérito é menos meu que do entrevistado. Corman foi sucinto a responder. Como um bom “vendedor”, disse o que precisava de ser dito no mínimo tempo possível. Máxima eficiência, máxima satisfação. Mas não houve nada nele de brusco ou robótico. A sua afabilidade é o que mais guardo deste encontro e é difícil fazê-la transpirar no texto final. Posto isto, e repetindo, parece que os canais TVCine ouviram a resposta a uma das últimas questões que coloquei a este rebelde com mais de noventa anos: das suas inúmeras produções recentes, para TV, on-demand ou DVD, Corman destacou a última, Death Race 2050 (2017).
Os olhos de Corman brilharam quando falou deste objecto em que tudo é duvidoso: do conceito – repegar e actualizar um clássico cheapie dos anos 70 depois de este ter sido retomado, com algum sucesso, por Paul W. S. Anderson – à estética de tudo – um histrionismo insuportável, hipertrofia de som e imagem que faisca por todo o lado e que se faz notar logo no cartaz. Não dava para enganar: Corman estava a vender-me um produto. Mas dava, dava para enganar. Eu, babado, ainda ouvi parte da resposta como se o carinho de Corman por aquele objecto fosse mais da ordem do coração que do mastercard.
A verdade é que ver o filme no TVCine 4 é “prova dos nove” suficiente para percebermos que Corman continua em grande forma. E por alguma razão ele manteve e mantém uma das carreiras mais bem sucedidas – e estáveis – no campo da produção. Death Race 2050 é puro lixo cinematográfico, injustificado reboot do “clássico” dos anos 70, filme de Paul Bartel cheio de, como escreveu Manuel Cintra Ferreira na folha da Cinemateca (escrita por alturas da retrospectiva dedicada a Corman, em 2007), “burlesco, subversão e paródia”. Esta obra produzida por Corman e realizada por um tal de G. J. Echternkamp não tem burlesco, não tem subversão e paródia… tem, a rodos. Uma paródia sobre o vazio de si mesmo, contra um vazio gritante, tão cheio de coisas.

Já tinha discorrido um pouco sobre o fenómeno do cinema série B produzido directamente para a televisão aquando do furor em torno de Sharknado (Sharknado: Tubarão Assassino, 2013). Death Race 2050 é um filme da mesma natureza. Objecto comercial produzido a correr, com pouco dinheiro, e sem grandes pretensões. A estratégia comercial passa aqui por ancorar uma obra direct-to-TV num filme de culto celebrado por uma certa minoria cinéfila ou, mais ainda, na realidade, servir de continuação a um reboot realizado por um nome relativamente proeminente da indústira, no caso, Paul W. S. Anderson [Death Race (Corrida Mortal, 2008)]. Corman tem razão quando afirma que o filme de Anderson marca um desvio no espírito – eivado de humor – do original. Death Race, filme de acção distópico protagonizado por Jason Statham, é mais negro e sério que o original. A corrida de morte que encena é um imparável rollercoaster cinético.
O filme de Bartel, Death Race 2000 (Corrida da Morte no ano 2000, 1975), o original produzido por Corman, é um poço de ironia. O que lhe interessa, acima de tudo, é rir do despotismo cultural das “Províncias Unidas da América”. As personagens interpretadas por David Carradine (o herói mascarado, e estropiado pelas várias corridas em que participou, de nome Frankenstein) e Sylvester Stallone (Machine Gun Joe Viterbo, o rival de Frankenstein com mais looks do que jeito para o volante) são fundamentalmente cómicas ou auto-irónicas. É verdade: o filme de Paul W. S. Anderson – o seu cinema em geral – tem pouco sentido de humor. Pelo menos para Corman.
Winner aportou isso a Hollywood: uma seca e fleumática visão acerca da violência dos homens e das mulheres (os mais carismáticos) e a força da sua presença no mundo.
Corman não gostou do que viu e lançou-se para este Death Race 2050: “Eu fiz um filme em 1975 chamado Death Race 2000. Ele retratava o mundo no futuro. Era um filme de acção que também tinha um pouco de comentário social e algum humor. Vendi os direitos de remake à Universal. Eles refizeram-no algumas vezes, mas não seguiram as minhas ideias iniciais. Conversei com eles e sugeriram que fizesse mais um. E assim fiz: produzi Death Race 2050.” O resultado é um videogame histriónico, entre o jogo Carmageddon e a animação Wacky Races, que tem romance, gore, aventura, mas tudo artificialmente produzido em imagens geradas por computador. A graça do original também estava na sua dimensão concreta. Algumas sequências de corrida parecem ter inspirado Quentin Tarantino no seu Death Proof (À Prova de Morte, 2007). Os carros são velozes e furiosos, e pertencem a um mundo parecido com o nosso, de carne e osso, de asfalto e gravilha. O novo Death Race é um jogo de computador desligado de qualquer realidade, de qualquer concretude. Obrigado, mas não, senhor Corman.

Lateralmente, não podia fechar esta crónica sem deixar de referir mais uma vez o nome de um realizador que considero subestimado: o do britânico Michael Winner. Mais conhecido por ter realizado os muitíssimo polémicos três Death Wishes, com Charles Bronson, Winner assinou outros títulos dignos de registo – a meu ver, alguns melhores que o primeiro, e ainda hoje acutilante, Death Wish, filme que merecerá um remake por Eli Roth, com Bruce Willis, a sair em breve. Por exemplo, escrevi já nesta crónica sobre The Mechanic (O Mecânico, 1972) – por sinal, filme refeito recentemente e com Jason Statham. Este filme de Winner é de uma precisão impressionante. A longa sequência inicial cabe, perfeitamente, numa galeria de excelentes instantes de cinema inspirados em Jean-Pierre Melville.
Continuei a minha exploração descontraída sobre o cinema de Winner graças a um ciclo da FOX Movies dedicado ao western. Ao lado de grandes clássicos, como Gunfight at the O.K. Corral (Duelo de Fogo, 1957), lá passou discretamente um tal de Chato’s Land (Desforra Apache, 1972). Primeiro filme de Winner com Charles Bronson. É surpreendente que este seja o princípio de uma “beautiful friendship” no ecrã. Bronson, na pele de Chato, praticamente não diz palavra durante o filme todo. A sua presença é tão sóbria quanto o seu irrevogável bigode, de pêlos finos, quase imperceptível, mas eloquentíssimo. Bronson é um índio Apache perseguido por um bando de caçadores de prémios, alguns especialmente carniceiros, por causa de um crime que este, efectivamente, cometeu – não há cá meios ajustes nestas coisas no universo muito “pão, pão; queijo, queijo” de Winner. Este é mais um exemplo clássico de caçador virando caçado.

Os homens brancos, chefiados por um homem atormentado interpretado por Jack Palance – ele que se vai dividindo moralmente sobre o que está a fazer -, são arrastados para um território índio controlado por Chato. A piada é fácil, mas preciso de a fazer: Chato’s Land é um filme magnificamente chato. Digo que é piada, mas não é para ter muita graça. O filme é lento e solene. Um ritual de morte vai tomando conta da história, à medida que o grupo de caçadores brancos apodrece moralmente. Os homens brancos vão confrontando-se entre si e com a sua própria natureza à medida que o cerco de Chato aperta.
Palance, Bronson. O cinema de Winner está cheio de actores de grande presença. Trabalhou com Marlon Brando, com Orson Welles, com Robert Ryan, com Burt Lancaster, com Robert Mitchum e com James Stewart. Também prolongou a vida no ecrã da “antigas musa” de Hollywood Ava Gardner no estranho filme de terror The Sentinel (A Sentinela, 1977). Vimo-la velha também pela câmara de Winner – que gosta de cada uma das rugas das suas stars. Isto deveu-se sobretudo ao facto de, antes de tudo, Winner ter sido um admirador das grandes estrelas de Hollywood. Ainda petiz, escrevia para uma coluna de mexericos sobre os actores e actrizes de Hollywood. (O gosto pela escrita e comunicação valeu-lhe mais tarde uma espécie de “reforma dourada” na qualidade de crítico de restaurantes para o The Sunday Times e entertainer de televisão. Sobre a vida e obra de Winner recomendo a leitura desta entrevista ao Senses of Cinema.)
Foi a partir desta devoção às velhas estrelas do star-system que Winner encontrou as chaves para, sorrateiramente, entrar no meio. O seu cinema ainda acredita nestas grandes presenças, nesta monumentalidade do actor clássico. Veja-se o remake de The Big Sleep (À Beira do Abismo, 1946), que fez com Robert Mitchum em Londres. Trata-se de uma versão desglamourizada e violenta do célebre noir de Howard Hawks com Humphrey Bogart e Lauren Bacall que tem como principal força o facto de saber como celebrar o distanciamento cool – a imperturbável verticalidade – do seu protagonista. Winner aportou isso a Hollywood: uma seca e fleumática visão acerca da violência dos homens e das mulheres (os mais carismáticos) e a força da sua presença no mundo.