Ninguém sabia muito bem como nem quando entraram na coleção da Cinemateca os “filmes do Dr. Doyen”, mas a sua fama já era grande quando os vi pela primeira vez, por volta de 2002. As imagens datavam do início do século XX e mostravam operações cirúrgicas pavorosas, breves, mas grotescamente sanguinolentas. Podia ver os filmes se quisesse, mas devia saber, recordavam-me os colegas mais antigos, que um deles havia desmaiado durante um visionamento. Tratava-se, portanto, de uma história de terror de arquivo.
Pelo sim, pelo não, antes de me atirar às cópias nitrato, atirei-me à biblioteca da Cinemateca para tentar saber mais sobre o Dr. Doyen e completar a identificação dos filmes: afinal, o que retratavam eles? Eram entretenimento ou ciência? E seriam raros? A pesquisa revelou que o Dr. Eugène-Louis Doyen (1959-1916) era um médico francês que foi um dos cirurgiões mais conhecidos do seu tempo e um dos primeiros a filmar-se enquanto operava. Apenas três anos após a célebre sessão dos irmãos Lumière na cave do Grand Café, em Paris, já Doyen assinava um contrato com o operador de câmara Clément Maurice – que intermediou e assegurou a bilheteira daquela mesma sessão. Entre 1899 e 1906, Maurice filmou mais de 60 cirurgias de Doyen e acompanhou o médico em congressos por toda a Europa, incluindo Lisboa, onde mostrou os seus filmes no Congresso Internacional de Medicina e Cirurgia de 1906.
O cinema foi decisivo para a reputação internacional de Doyen, mas também seria o motivo da sua queda em desgraça. Doyen defendia algumas técnicas cirúrgicas inovadoras que o cinema ajudava a exemplificar junto dos seus pares, mas Doyen e a sua equipa de assistentes também via frequentemente os filmes das suas operações com o objetivo de melhorar os seus procedimentos coletivos – a cirurgia era uma “coreografia” de movimentos que o visionamento retrospetivo ajudava a afinar. Era por este motivo, ainda, que os filmes de Doyen são filmados em plano americano, mostrando não apenas o campo operatório, mas também a própria equipa e, com grande destaque, ao seu centro, o próprio Doyen, transmitindo concentração, competência, autoconfiança e uma destreza manual invejável segundo me garantiram vários cirurgiões dos nossos dias, e uma tranquilidade de quem está em controlo total e até tem tempo, em mais do que um filme, de fazer uma pausa para sorrir diretamente para a câmara. Como escreveu Doyen, não era possível compreender e muito menos aprender as suas técnicas sem “ver o mestre” em ação.
A reputação de Doyen estava nos píncaros quando alguns dos seus filmes começaram a ser vistos em feiras, lado a lado com espectáculos de “aberrações” da natureza. Doyen, cuja personalidade sempre motivara controvérsia e inveja junto da comunidade médica francesa, viu então o seu nome arrastado na lama devido ao oportunismo de Ambroise-François Parnaland, com quem colaborara brevemente antes de Maurice e que uma investigação judicial provou ser o culpado pelo uso não autorizado dos filmes. Destroçado e esgotado por um longo processo judicial, o cirurgião tomou a decisão radical de nunca mais mostrar os seus filmes, não sem antes preparar entre 1906 e 1911 várias coleções temáticas de cirurgias que vendeu depois à distribuidora Eclipse na condição de serem apenas mostradas em universidades e eventos científicos. A essas três coleções Doyen chamou “conferências cinematográficas” porque a sua projeção devia ser acompanhada da leitura de um texto descritivo expressamente preparado para cada uma delas.
Ora os “filmes do Dr. Doyen” que existem no arquivo da Cinemateca correspondem, justamente, a duas destas três conferências cinematográficos, de seus títulos “Extirpation des tumeurs encapsulées” (com 6 filmes, compilados em 1906) e “Les opérations sur la cavité crânienne” (4 filmes, compilados em 1911). São as mais completas coleções de filmes-cirurgia de Doyen atualmente conhecidas em todo o mundo. Os filmes foram restaurados pela Cinemateca em 2002 após um longo trabalho investigação e um ainda mais longo processo de inspeção e comparação das várias cópias de cada coleção (havia mais do que uma de cada coleção, umas com intertítulos em francês, outras em castelhano).
Os filmes foram restaurados no laboratório fotoquímico da Cinemateca com o apoio financeiro de um grupo de cirurgiões portugueses e viajariam depois um pouco por todo o mundo. Não deixa de ter a sua graça que filmes que não são nada fáceis de ver tenham sido, naquela altura, um dos restauros mais populares da Cinemateca. Mostrámo-los, por exemplo, em Lisboa, na própria Faculdade de Medicina onde Doyen esteve em 1906 – uma oportunidade criada pela minha querida ex-colega de curso, Madalena Esperança Pina, que nos deixou cedo demais –, numa sessão evocativa na Sociedade de Geografia de Lisboa; ou em Bolonha, numa sessão do festival de restauro Il Cinema Ritrovato, em que muitos arquivistas profissionais achariam precioso o meu conselho, antes de começar a sessão, de decorarem a localização da saída mais próxima do seu lugar; ou ainda, e para mim a grande cereja no topo deste restauro, a apresentação dos filmes na Cinémathèque québécoise (Montréal), em que se acompanhou a projeção da leitura dos textos originais de Doyen escritos para cada compilação, e que foi um sucesso, ou não tivessem sido vários dos assistentes mais próximos de Doyen alguns dos maiores representantes da importante escola de cirurgia montréaloise do início do século XX. Paris-Lisboa-Montréal: estava resolvido o mistério dos “filmes do Dr. Doyen”.
Todas as imagens: Col. da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.