Dos quatro primeiros dias de Queer Lisboa 2017 – Festival Internacional de Cinema Queer deixo aqui as minhas notas sobre quatro filmes que me passaram pela vista.
Primeiro plano de God’s Own Country, uma casinha no meio da paisagem bucólica do norte da Inglaterra. Segundo plano, um rapaz vomita para a sanita. Pouco falta para que ao vómito se junte o mijo, o escarro. Logo depois uma mão inspecciona o útero de uma vaca antecipando o sexo anal “operacional” num curral sobre rodas. Ainda não passaram cinco minutos e o filme de Francis Lee já nos ofereceu um buquê aromático onde se descrevem os diversos fluídos e orifícios que temos à disposição na Natureza. Mais adiante virá o leite, o sangue e as lágrimas, para que nada fique por descrever. Este parece ser o princípio definidor por de trás do filme de estreia do realizador: a versão rough do “melodrama delicodoce” do outro Lee… Ang Lee, Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005). O problema está em que nem o filme de Ang era delicodoce, nem o filme de Francis é assim tão rough. Pelo contrário: a rudeza do universo agrícola que o filme convoca está mais perto do fetiche (farm boys) do que da descrição naturalista de um meio sócio-económico. Assim, por exemplo, a primeira cena de sexo entre os dois personagens principais é tintada por elementos oníricos exactamente através da lama que conspurca tudo.
A sujidade é portanto elemento cénico, coisa decorativa. Daí que o final do filme – os seus últimos 20 minutos – se revele afinal a pujança romântico-cliché promovida pela música (que estivera quase sempre ausente, ou atenuada), pelas frases feitas, pelo choro e pelo happy ending. Tudo coisas que o outro Lee sabia, e muito bem, deixar de parte. Fica-me, no entanto, uma imagem do filme que vale pela sua força simbólica: um carneiro nasceu debilitado e necessita de uma manta para se manter quente; outro carneiro morreu, do seu cadáver extrai-se o pêlo que serve de casaco ao primeiro. Um carneiro com pêlo de outro carneiro, como que escondido entre iguais. Esse momento espelha de forma certeira o próprio protagonista, as suas frustrações, o seu fechamento aos demais e a sua decadência física e psíquica. Tudo isso motivado por uma diferença auto-percepcionada – elemento curioso, num filme sobre coming out onde nunca se ouve ou vê qualquer forma de discriminação.
Jean-Claude Bernardet é um dos críticos de cinema mais importantes do Brasil. Amigo próximo da geração do Cinema Novo – primeira pessoa a escrever sobre o movimento, no livro Brasil em tempo de cinema: ensaios sobre o cinema brasileiro (1967) –, Bernardet foi também um professor marcante para uma geração de cineastas que estudaram no final dos anos 1980 e durante todo os anos 1990. A essa dupla qualidade que não encontra par na realidade portuguesa – talvez Alberto Seixas Santos? –, junta-se também a sua faceta de romancista e de actor. Os realizadores, Claudia Priscilla e Pedro Marques, cedo despacham a questão da importância do seu personagem para se concentrarem naquilo que lhes interessa verdadeiramente: os processos da auto-mitificação. Há cerca de dez anos que Jean-Claude deixou de escrever sobre cinema, tornando-se exclusivamente actor, em projectos de cineastas marginais. Recluso da figura de homem sábio, Bernardet procurou fazer implodir a sua imagem pública num movimento que é tanto de novelização mitológica da sua biografia, como, inversamente, é cândido no que revela da sua intimidade.
O título, A Destruição de Bernardet, é particularmente bem achado na medida em que os realizadores testemunham esse processo de reconfiguração de um homem perante os outros e perante o seu próprio passado. O dispositivo encontrado é o da confrontação com os documentos (gravações de voz que o próprio foi produzindo ao longo dos anos – uma espécie de diário falado – e as suas presenças como actores nos vários filmes em que surgiu – primeiro como cameos, depois como actor de corpo presente). Confrontação que, no entanto, se faz pelo apaziguamento. A Bernardet não interessa apagar, interessa sim reescrever. E a cena em que ele tinge as suas roupas de vermelho – o mesmo vermelho que lhe sairá do ouvidos e da boca, mais para o fim do filme? – é sintomática desse processo: rever o passado através de um filtro contemporâneo. Que Bernardet tenha sido crítico de cinema e que hoje em dia a velhice e a fragilidade física (relacionado com a sua infecção pelo VIH) lhe modifiquem o corpo só ajudam nessa transformação (propriamente cinematográfica). O envelhecimento como performance cinéfila – qual Norma Desmond – surge na sua máxima força quando os realizadores encenam com o seu actor uma entrevista (confrontacional) dele com ele próprio. Tudo se revela afinal, na exacta medida do que quer revelar.
O primeiro nome que surge no ecrã, nos créditos de abertura, é o do produtor: Álex de la Iglesia. Os que vêm depois também são familiares, vários dos actores recorrentes do primeiro. De certo modo Pieles enquadra-se facilmente no universo de Iglesia, a começar pelo equilíbrio instável entre o sério e o burlesco, entre o riso e o horror, entre o ordinário e o delicado. Mas cedo se percebe que estamos noutra competição — ainda que o alvo seja semelhante, a Espanha conservadora – e que o cinema de género e as suas convenções (a comédia, o terror, o thriller) não são a matéria de trabalho de Eduardo Casanova. Ainda assim, o seu trabalho é igualmente sobre as convenções de género (e não só), só que não necessariamente cinematográfico. Numa narrativa de puzzle com diversos personagens todos ligados entre si, o realizador compõe uma “caderneta de cromos” à la Tod Browning que inclui uma rapariga que tem o ânus na boca e a boca no ânus, um adolescente que rejeita as pernas por desejar ser uma sereia, uma anã obrigada a trabalhar como peluche numa série infantil, uma prostituta com diamantes em vez de olhos, uma lésbica obesa com prisão de ventre, uma mulher com metade da cara descaída, uma velha meretriz toda nua só com uma saltos transparentes, entre outros.
Esta série de personagens – alguns recolhidos das curtas-metragens anteriores do realizador, que se estreia agora na longa – poisam numa casa de bonecas em tons de rosa, lavanda e marron, que aproxima Casanova de Wes Anderson (no trabalho meticuloso da direcção de arte). O coro canta uma mensagem clara: respeita a diferença e respeita-te enquanto diferente (nunca através da uniformização, pelo contrário, através da exaltação das singularidades). Há, infelizmente, uma contradição de base no filme de Casanova: uma ambivalência entre o desejo pelo tratamento equitativo de todos e o desejo cómico-fetichista pelos seus freaks. O controlo obsessivo sobre os décors do filme (e não só) traduz uma visão do mundo que não é necessariamente malva. Visão essa que se sobrepõe a qualquer propósito político que o filme procure explorar. Isto é, há um prazer perverso do realizador na construção destas personagens “deformadas”, um prazer de petite provocateur que procura chocar e mexer com a suposta sensibilidade conservadora do espectador. Uma instrumentalização da diferença como ferramenta oratória em modo fábula, sempre indecisa entre levar-se a sério (e quando faz pende para a novela televisiva) ou nem tanto assim. Ficam-me os quadros kitsch em movimento (descendentes de Pierre et Gilles) e a ambiguidade inteligente que Casanova chama ao desenlace do filme.
A recepção e circulação do cinema de Bruce LaBruce é para mim um mistério. Tanto ou mais trash que John Waters nos seus tempos áureos, filho das manhosas câmaras digitais e cantor do esdrúxulo narrativo, o seu cinema contraria tudo aquilo que caracteriza o bom gosto do cinema de autor que faz o circuito dos festivais (de lembrar que este seu mais recente filme estreou na última edição do Festival de Berlim). Nessa medida é um cineasta verdadeiramente queer no ascendente mais directo do termo. Ulrike’s Brain é o produto improvável de uma mente improvável: uma espécie de final do episódio dos Power Rangers, quando o monstro renasce em versão gigante e os heróis fazem o mesmo, só que aqui o combate é entre as reencarnações de duas figuras históricas maiores (e em extremos políticos opostos) da história recente da Alemanha, Ulrike Meinhof e o líder neonazi gay Michael Kuehnen.
Se o pressuposto é inusitado, LaBruce levá-lo-á avante recorrendo a diversos “dispositivos mediáticos”, seja o talk show, o concurso televisivo, o filme de época, o melodrama [a cena de abertura junto ao submarino com as letras garrafais dos créditos faz lembrar, de forma muito distante, The Revolt of Mamie Stover (Mulher Rebelde, 1956) do padroeiro Raoul Walsh] o detective thriller, as imagens de arquivo, o filme de terror místico, o sci-fi ou a reportagem de telejornal. Tudo (não-)articulado a favor da criação de um objecto heteróclito e inclassificável que procura forçar (pelo simples prazer de o fazer) os limites da gramática e dos padrões de qualidade do “bom” cinema. Há, por isso, qualquer coisa profundamente anacrónica em algum do trabalho recente de LaBruce, por parecer ser oriundo de uma resistência estética já datada dos anos 1960 e 1970. Ulrike’s Brain é cinema undergroung contemporâneo que não precisa de várias décadas (e da pátina da película e demais obsoletismos) para encontrar o culto do “tão mau que é bom”. Isto é, camp – palavra tão querida à relação entre o cinema o universo queer – instantâneo, basta juntar água (com pózinho para o enjôo).