Depois dos primeiros quatro dias, deixo aqui as minhas notas sobre quatro filmes que me passaram pela vista nos quatro últimos dias do Queer Lisboa 2017 – Festival Internacional de Cinema Queer.
Les Îles foi o vencedor do prémio para Melhor Curta-Metragem nesta edição do Queer Lisboa. Curiosamente o filme havia estreado este ano na Semana da Crítica em Cannes na mesma sessão especial onde foi exibido o filme de Carlos Conceição, Coelho Mau (2017), que recebeu a menção especial do mesmo júri. É óbvio o que aproxima os filmes: um mesmo gosto decadente pelas imagens barrocas, pelas iluminações marcadas, pela encenação do excesso, pela subversão dos géneros cinematográficos, e de um ponto de vista temática, ambos retratam a sexualidade na sua vertente mais performativa e em ambos se explora o sexo como acto transitivo de relacionamento. Ambos convocam o sexo qual palco onde se encenam as fantasias dos espectadores (e Gonzalez literaliza isto em Les Îles tanto com o palco de teatro, como com outros palcos, os do crusing, os do voyeurism – que aqui se faz auditeurism com o seu gravador de cassestes – e os do próprio cinema), fantasias essas que substituem (ou catalisam) a própria experiência do sexo.
O filme organiza-se em três actos abstractos altamente cenograficos onde a influência do cinema erótico europeu dos anos 1970 e 1980 (à cabeça Jess Franco, mas poderiam ser muitos mais) é semelhante àquela que “atormenta” outros realizadores franceses contemporâneos como Bertrand Mandico ou Shanti Masud. Sexo (mais soft do que hard core), gore, freeze frames, encadeados fundidos longuíssimos, tintagem, banda-sonora electro-pop… tudo a favor dessa ideia fundamental em redor do intervalo que se estabelece entre o espectador e a vida. Gonzalez cria um filme de câmara (no sentido musical, entenda-se, mas também no sentido fotográfico), qual alegoria da própria posição do espectador: sempre distante, sempre desejoso de proximidade, incapaz de perceber que tudo não passa de um simulacro. Porque o cinema não tem toque, nem cheiro (o esperma e a merda, como se ouve a certa altura), nem dor, nem sangue. E no entanto Le Îles canta tudo isso, sabendo que o cinema é apenas a mais elaborada das masturbações.
André Téchiné é mais conhecido por Les roseaux sauvages (Os Juncos Silvestres, 1994), o filme coming of age gay avant la lettre que o consagrou internacionalmente – logo após Ma saison préférée (A Minha Estação Preferida, 1993) – como realizador LGBT nos anos 1990. Quand on a 17 ans, estreado na competição do Festival Internacional de Berlim do ano passado, tendo agora sido apresentado no festival lisboeta no âmbito de uma ante-estreia comercial, é em certa medida o regresso ao mesmo universo da adolescência, da descoberta da sexualidade, das amizades de liceu e da vida numa pequena cidade rural francesa. Mas este regresso procura reencontrar a frescura e a doçura de um amor juvenil e pastoral num ambiente contemporâneo francês com o pano de fundo da guerra do Iraque, do bullying na secundária ou das aplicações de smartphone para encontros sexuais esporádicos. Esta presença dos elementos actuais é particularmente curiosa quando o realizador encara o fenómeno do bullying como uma manifestações das frustrações sexuais dos seus personagens: a violência como a primeira resposta de um “coração encurralado”.
Aliás, é neste último ponto que o filme propõe um olhar interessante sobre a sexualidade, ao fazer a analogia com o negócio da pecuária que ocupa a família de um dos protagonistas. Isto é, tudo em Quand on a 17 ans se faz de oposições, a mais evidente entre o rapaz da cidade filho de uma médica e o rapaz da montanha filho de trabalhadores do campo. O rapaz do campo tem dificuldades na escola que o outro vai ajudar a superar, inversamente, o segundo desconhece “as maravilhas naturais” que o primeiro lhe vai dar a conhecer. É portanto uma história que se faz entre a qualidade primitiva do desejo (a necessidade não-lógica do outro) e a castração auto-imposta pela consciência social (que deriva em violência). O problema está na banalidade com que esta “história bonita” nos é contada, banalidade da narrativa clássica em três actos que depois falha uma e outra vez em desvios episódicos e na banalidade da realização centrada nos protagonistas que desleixa a maioria dos personagens secundários (com excepção da mãe médica).
Être Cheval é um documentário que tem essa excelente capacidade classicamente atribuída ao documentário de dar a conhecer uma realidade que não se conhecia sem fazer qualquer tipo de juízos de valor sobre aquilo que nos apresenta. E que realidade exótica é essa? Chamam-lhe pony play, e consiste numa forma muito específica de fetiche sado-masoquista em que um elemento é tratado (e se comporta) como um cavalo e o outro como domador. Clément-Wilz acompanha um aluno desta prática, Karen, professor reformado pelos seus cinquenta anos, pai de filhos e de origem francesa, que se dirige a um dos estados do interior dos EUA onde um “homem do sul” – com típica barba branca, bochechas rosas e cara de moonshine – aceitou treiná-lo. É um processo de várias semanas que procura negar sucessivamente as qualidades propriamente humanas de Karen, a favor da novas qualidades cavalares: devido ao freio na boca está impedido de falar (apenas um relincho meigo), devido às palas quase não vê, devido aos saltos altos/cascos dificilmente anda, devido às rédeas todos os seus movimentos são controlados pelo domador. Sobra o olfacto e a forte respiração.
É uma actividade de enorme esforço físico e que nunca se sexualiza de forma evidente (isto é, nada ali é erógeno de uma forma comum). O fetiche prende-se portanto no prazer que existe na entrega do poder sobre o próprio corpo, isto é, na total submissão que paradoxalmente acontece como acto de máxima liberdade. Karen fala, a certa altura, que o verdadeiro grilhão não é aquele que ele coloca sobre a cabeça antes de cada aula, mas sim aquele que prende as pessoas a trabalhos, famílias, pessoas e vidas que não as satisfazem. Ele libertou-se desses constrangimentos sociais e agora decide, por vontade própria e na medida do seu querer, quando colocar amarras no seu corpo (mas nunca na sua vida). Jérôme Clément-Wilz consegue encontrar uma intimidade não-invasiva que se coloca dentro da narrativa procurando ainda assim não a influenciar demasiado. Uma claridade no olhar que dá a ver Karen de forma transparente: ele na sua submissão libertadora.
Leio o que escrevi aquando da passagem de Que Horas Ela Volta? (2015) de Anna Muylaert na Mostra de Cinema da América Latina 2015 e encontro uma série de indícios do que Mãe Só Há Uma acaba por ser: já aí se retratavam as diferenças entre a “mãe de sangue” e a “mãe afectiva” (que era a empregada de casa, figura que reaparece de novo, neste filme, de forma discreta mas amorosa), já aí se encontrava “um certo histerismo emotivo vindo da telenovela”, já se anunciava que “as linhas com que o filme se cos[ia eram] complexas e por vezes o discurso e a forma segu[iam] direcções trocadas” e criavam-se as mesmas “situações extremamente incómodas” nos choques classistas. O se perdeu então? “Um formalismo de câmara que se evid[enciava] nos enquadramentos altamente arquitecturados e na elegância de certos planos contínuos quase sempre fixos.” Isto é, este mais recente filme de Muylaert prossegue os interesses da realizadora no retrato de um certo desfasamento da sociedade brasileira no que diz respeito às falsas estruturas da família tradicional e da relação destas de um ponto de vista do rendimento (e da influência deste nos mecanismos da justiça e da felicidade).
Mas se o “universo” é o mesmo (com as devidas distâncias, é certo, entre o rapto ilegal deste filme e o “rapto” sentimental do outro) a forma não encontra qualquer paralelo. Mãe Só Há Uma é um filme sem ideias de cinema – onde o cinema fica à porta da sala –, tudo ali respiga os formalismos da reality TV, a câmara saltita sem freio por todos os lados, as imagens são cinzentas e pastosas, a narrativa desmultiplica-se em milhentos personagens à procura de um tom coral à la Renoir, mas que na verdade não vai além da coralidade do Jersey Shore. Um filme que se vale do seu tema social – o qual trabalha de forma inteligente, no modo como nunca vitimiza os seus personagens e, pelo contrário, é capaz de encontrar os pontos positivos da mais devastadora das situações – e que por isso parece esquecer-se de que além de conteúdo é necessário forma. Ou como disse uma vez Louis B. Mayer: “se [só] tens uma mensagem para pôr num filme, envia um telegrama, não faças um filme.”