Imaginem um mundo sem Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, Monte Hellman, Jonathan Demme, John Sayles, Dennis Hopper, Peter Fonda, Robert De Niro, Jack Nicholson… O cenário apocalíptico teria sido possível não tivesse existido um homem que queria fazer os filmes que queria fazer, da maneira que os queria fazer. Pelo rebelde Roger Corman, realizador especializado na acção, no fantástico e no “estrambólico”, passou toda a história moderna de Hollywood. A designada Nova Hollywood não teria sido a mesma sem ele – teria, de facto, existido? Por isso, no documentário Corman’s World (2011) muitos destes – como lhes chama nesta entrevista – “amigos” celebram e até choram a sua inconformidade, resiliência e generosidade. Roger Corman esteve em Lisboa para apresentar duas sessões e dar uma masterclass no festival de terror MOTELX. O encontro que se segue foi marcado pela comovente afabilidade do entrevistado, uma que dificilmente se transmite a quem não esteve lá. Só um homem assim, generoso, paciente e prático, podia ter congregado tanta gente à sua volta. As fotografias são da autoria de Mariana Castro.
Começava com uma fala dita por Peter Fonda em The Wild Angels (1966): “We wanna be free; We wanna be free to do what we wanna do.” De que maneira não será este o seu mote enquanto realizador e produtor ao longo de todos estes anos?
Essa fala reflecte um pouco o meu próprio pensamento. É interessante que as pessoas se lembrem dessa fala. Tem sido citada amiúde. Foi, até certo ponto, o tema dos Hells Angels [clube de motociclistas retratado no filme]. Eles eram trabalhadores de classe média que se estavam a rebelar contra as suas posições na sociedade. Queriam ver-se livres das restrições que a sociedade lhes impunha. Em certa medida, eu sou um reflexo disso. Sempre fui independente, mesmo que tenha feito alguns filmes para estúdios grandes. Mas no geral eu quero ser livre para fazer os filmes que quero fazer da maneira em que os quero fazer.
Temos de falar do passado durante esta entrevista. Estamos aqui, num hotel chamado Hotel Vintage. Realizou dezenas de filmes e é uma espécie de figura paterna na história da chamada Nova Hollywood. É mais justo dizer-se que Roger Corman é um nome vintage ou um nome moderno?
Espero que seja os dois [risos]. Por outro lado, faço menos filmes neste momento do que fiz antes. Mas espero continuar. Continuarei a fazer filmes. Eu fui um de vários jovens que mudaram Hollywood. As pessoas normalmente falam de mim dessa maneira – como uma figura paterna – mas eu penso nisso apenas como um trabalho feito com amigos.
Li que rodou The Little Shop of Horrors (A Loja dos Horrores, 1960) em dois dias e uma noite. No final dos anos cinquenta atingiu este incrível número de nove filmes rodados por ano. Em que medida é esta produção veloz importante para conferir um sentimento lúdico e despretensioso aos filmes que realizou e produziu?
As minhas rodagens são rápidas porque sou eu a financiar os meus filmes. Não tenho assim tanto dinheiro [risos]. Por isso, tenho de fazer filmes baratos, o que significa rodar rápido. Mas o segredo para mim reside sempre na pré-produção. Sei que só vou ter umas semanas para rodar o filme. Por isso, tento planear o mais que posso. Não quero ir para o set e tentar perceber onde vou colocar a câmara. Quero ter isso planeado antecipadamente, por forma a poder passar o tempo a rodar e não a pensar em como rodar. Por outro lado, eu sei que nunca conseguirei filmar exactamente como planeei. Surgem coisas durante a rodagem que te forçam – que te inspiram – a mudar o teu plano para gerar novas ideias.
Qual a fase de produção que considera mais criativa: a pré-produção, a rodagem ou a pós-produção?
A mais criativa para mim é escrever a história original e o argumento. Tudo resulta do argumento, sabendo, contudo, que nunca filmarás exactamente de acordo com ele. Portanto, o processo criativo acontece em toda a linha, mas ele começa logo no princípio.
Em relação ao tema dos seus filmes, por vezes, eu sou levado a pensar em arte e, especificamente, em cinema. Por exemplo, A Bucket of Blood (O Balde de Sangue, 1959), funciona como uma sátira sobre o mundo do underground e todos os seus tiques. Da mesma maneira, X: The Man With the X-Ray Eyes (O Homem com Raios X nos Olhos, 1963) – filme que será mostrado neste MOTELX – é um filme sobre uma espécie de cinefilia danada; sobre alguém que vê para lá do que consegue racionalizar. É importante para si “aterrorizar” a linguagem e o meio de que também faz parte?
É importante. Não diria “aterrorizar”, mas tem que ver com ir através e ir para o que está por trás da linguagem. Este é, até certo ponto, o tema de X: The Man With the X-Ray Eyes. Ele vai para lá da superfície, através e pelo seu interior. Ele não só acaba a ver coisas físicas como coisas psicológicas. Há um conceito filosófico subjacente a isto, também. Stephen King viu o filme e escreveu um ensaio sobre ele. Ele escreveu um novo desfecho. Eu li-o e pensei: “o seu desfecho é melhor que o meu!” [risos].
O Roger é, por vezes, etiquetado de cineasta de culto, mas é também um cinéfilo bastante sofisticado [enquanto distribuidor levou até à América filmes de cineastas europeus, tais como Ingmar Bergman ou Federico Fellini]. Será que o espectador deve ter também essa capacidade de ver para lá da superfície de uma linguagem de género?
Eu apenas reflicto a realidade da situação. Penso que cada filme é diferente para cada pessoa, porque o processo de assistir a um filme consiste em ver o que um realizador colocou no ecrã e, depois, consciente ou inconscientemente, oferecer as suas próprias ideias, a tua própria reacção a isso.
Na história do cinema existe este conflito eterno entre arte, política e negócio. É curioso verificar como o Roger consegue lidar tão bem com este frágil equilíbrio. Pode dizer-me qual é o seu segredo?
Não lhe chamo um segredo, mas é reconhecer que o cinema é tanto uma arte como um negócio. Se pensares unicamente como uma forma de arte, poderás ter alguns problemas. Se pensares unicamente como um negócio, isso é pior. Estás condenado a fracassar. Porque é uma forma de arte. Uma das poucas em que negócio e arte se conjugam. É uma equação complicada de se resolver.
Mas, por exemplo, um filme como The Intruder (1962) foi um sucesso artístico mas um fracasso comercial. É também um filme com uma muito actual mensagem contra o racismo nas profundezas da América. Como é que vê o filme hoje em dia?
É interessante que pergunte porque me têm perguntado isso muitas vezes. O filme vai ser reexibido no Netflix e em outras áreas. Têm-no comparado com a situação hoje em dia. Não é uma comparação linear. Acho que as coisas evoluíram desde os anos 60, mas não evoluíram tanto como deveriam. Penso que, neste momento, o senhor Trump e os seus acólitos têm recuado. De qualquer maneira, não penso que a história progrida seguindo uma linha recta. Neste momento, assistimos a uma desaceleração. Espero que seja uma desaceleração temporária.
Ao mesmo tempo, olhando para o seu trabalho – por exemplo, The Masque of the Read Death (A Máscara da Morte Vermelha, 1964), que passa neste MOTELX – parece-me que nutre um fascínio por vilões. Acho que os sabe compreender e retratar. Será isto algo que devemos fazer mais: tentar compreender melhor o que, por vezes, nos perturba tanto?
Sim, porque penso que é muito fácil dizer de alguém que é inteiramente mau. Ninguém é inteiramente mau. Tal como ninguém é só bom. Nós todos existimos em tons de cinzento. É muito importante compreender aqueles que não concordam contigo.
Continua a produzir muitos filmes, nomeadamente para o canal Syfy. Estes são filmes sci-fi de baixo orçamento que me recordam um pouco os títulos fantásticos dos anos 50. Qual destas produções recentes o orgulha mais?
O último filme que fiz: Death Race 2050 (2017) [realizado por G.J. Echternkamp]. Eu fiz um filme em 1975 chamado Death Race 2000 (Corrida da Morte no ano 2000, 1975) [realizado por Paul Bartel]. Ele retratava o mundo no futuro. Era um filme de acção que também tinha um pouco de comentário social e algum humor. Vendi os direitos de remake à Universal. Eles refizeram-no algumas vezes, mas não seguiram as minhas ideias iniciais. Conversei com eles e sugeriram que fizesse mais um. E assim fiz: produzi Death Race 2050. É interessante verificar do ponto de vista do negócio: o primeiro Death Race estreou-se em sala, este novo foi feito para a Universal, mas passou no Netflix. Não terá lançamento em sala.
Aceita bem esse facto?
Preferia ter tido estreia em sala. Mas a verdade é que o mercado em sala está dominado por filmes de 100 ou 200 milhões de dólares. Só ocasionalmente filmes de médio ou baixo orçamento conseguem furar.
Falava de Death Race 2000 e eu pensava no seu legado enquanto cineasta. A referência mais óbvia é Joe Dante. Mas há outros realizadores a reconherem-no como uma inspiração, tais como Tim Burton e Paul W.S. Anderson. Quais os realizadores que sente estarem mais próximos do seu universo?
Tim Burton, em certo sentido. Mas Christopher Nolan, sob outra perspectiva. Lembro-me de ver Memento (2000). Pensei nessa altura que este era um filme de médio ou baixo orçamento que tinha uma boa visão. Ele desenvolveu-a e mexeu-se em diversas direcções. Realizou filmes de ficção científica incrivelmente bons e mudou de direcção com Dunkirk (2017), que é, na minha opinião, um dos melhores filmes de guerra alguma vez realizados.
Podemos dizer que Hollywood mudou tanto que já não há espaço para o mundo de Roger Corman?
Não diria que não há espaço. Diria que há um espaço mais pequeno. As ideias e coisas que eu e os meus amigos e contemporâneos fizemos nos anos 50, 60 e 70 estão a ser feitas agora pelos grandes estúdios, com grandes orçamentos.