O Futebol (2015) é uma história, ambientada numa invernosa cidade de São Paulo que recebe o Mundial de futebol, sobre um filho que revê o seu pai passados 20 anos. É o reencontro com o homem, com a cidade, com o país. Um Brasil outro – uma outridade – que Sergio Oksman, cineasta brasileiro radicado em Madrid, revela através de múltiplos dispositivos: o da viagem de carro pela cidade que enclausura os dois homens, o das palavras cruzadas que entretêm a memória de um homem que decidiu (?) esquecer os seus, o dos jogos de futebol, do passado e do presente, que filtram esta relação quebrada, distante. Dispositivos de ficção, ou melhor, construções ficcionais no coração do real? É o ordinário a convidar o extraordinário para uma festa. Só que esta é uma festa cinzenta. Por muito que a morte seja um fim, o Mundial não pára e o futebol continuará inevitavelmente a ser jogado e a ser jogo, dentro e fora das quatro linhas. Um jogo de 11 contra 11 em que no fim ganha a Alemanha. A conversa que se segue é feita sob o signo desta obra, estreada há pouco tempo no Cinema Ideal (última sessão hoje, às 20h00) pela mão do Doclisboa, mas que não deixa de atravessar os dois filmes-ensaio realizados anteriormente por Sergio Oksman.
Comecemos pelas origens. O Sergio é brasileiro, mas podemos dizer que a sua carreira como cineasta não é. Pode contar-me sumariamente a sua história?
Vai perceber pelo meu português que estou há muito tempo fora do Brasil. Já me equivoco com as preposições básicas. Tenho dificuldade com a língua, mas agora com um filho pequeno tenho falado português. Chama-se Nuno, por sinal. Não é um nome muito típico no Brasil, o que é uma prova de amor a Portugal.
Vivo em Espanha há quase vinte anos. Já tinha feito algum documentário no Brasil. Quando fui para Espanha fiz um documentário sobre o Ronaldo. Não o vosso Ronaldo. O “Ronaldo, o fenómeno”. Tive a sorte de pouco depois de chegar a Madrid conhecer um produtor, de alguma forma, um mito na história do cinema espanhol: Elías Querejeta. Ele foi produtor de Carlos Saura, Víctor Erice. Um dos nomes mais emblemáticos do cinema espanhol. De uma forma um pouco casual, comecei a trabalhar com ele. Trabalhámos cerca de dez anos juntos. O primeiro trabalho que ele me encomendou, quando nos conhecemos em 1999, foi um documentário sobre a vida do Pelé, para uma série sobre 22 jogadores, 11 americanos e 11 europeus. Faltava o capítulo do Pelé. Ele chamou-me, sem me conhecer, para fazer o documentário sobre o Pelé. Desde então, fiz filmes com ele, mas também abri uma pequena produtora e comecei a fazer, por um lado, documentários mais televisivos, para poder comprar o “arroz e feijão”, por outro, a partir de 2004/2005, comecei a tentar fazer cinema, fazendo filmes que não sabia fazer.
Vejo uma recorrência aí do assunto futebol. Ela foi procurada ou foi ela que o encontrou?
Não, nem gosto. Quer dizer, não há relação entre estes documentários mais elementares ou alimentícios que fiz sobre futebol e este filme, O Futebol. Na realidade, não vejo muito futebol. Agora sou obrigado a ver por causa do meu filho. Ele está obcecado por futebol. Há três meses gostava de pássaros. Em determinado momento trocou pássaros por futebol. Eu hoje em dia preferia pássaros. Pode sempre relacionar cabelos de jogadores de futebol e pássaros [risos].
Realizou este filme-ensaio, Notes on the Other (2009). Reminiscente do cinema de Chris Marker, trata-se de uma reflexão sobre Hemingway, o duplo, a passagem do tempo, a imagem fotográfica. Parece que, nesta altura, usa o cinema, como uma caneta, para registar reflexões avulsas. Almeja esta espécie de cine-caneta?
É curioso porque aos alunos sempre se diz: usar a câmara como uma caneta. Não é uma invenção nossa, mas sim. Primeiro, tenho de fazer uma ressalva, que é fundamental: os meus filmes são melhores do que eu, porque não são feitos só por mim. Tenho a sorte de trabalhar com Carlos Muguiro. Nós pensamos os filmes juntos há mais de 15 anos. Sofremos com os filmes em conjunto, perdemo-nos juntos nos filmes. Eu assino como realizador, mas eu sou parte de duas pessoas que criam.
Não sei como se desperta o nosso interesse por um assunto. Tenho dificuldade de rastrear para trás quais são os processos; inclusive de começar com uma certa história. Agora estamos a pensar no filme seguinte, mas não temos métodos. Usar o cinema como uma caneta? Não sei. É interessante tomar notas com uma câmara. Mas não tenho esse hábito. Quando filmo estabeleço regras muito férreas. Não temos um compromisso jornalístico. Partimos sempre do real. A partir daí aceitamos contar o que pode ter acontecido. Isso acontece com o Notes on the Other, mas com A Story for the Modlins (2012) também. Tudo é verdade, menos que não é. Em O Futebol também.
Em A Story for the Modlins há uma dimensão fantasmática. O Sergio isola esta figura enigmática chamada Elmer Modlin, um figurante no filme Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968). A partir daí entra num abismo que é a história de Elmer e a sua família. A incursão nesta história nasce, portanto, numa aparição.
Tudo são aparições. O Hemingway também é uma aparição em Notes on the Other. Os Modlins são uma aparição. O pai – em O Futebol – também é.
Há qualquer coisa de incrível nestas histórias. São quase demasiado incríveis para serem acreditadas.
É como em Borges ou em Kafka. É preciso partir do ordinário para chegar ao extraordinário. Não se pode chegar ao extraordinário directamente do ordinário. Em Notes on the Other interessava quem pode ter sido o Hemingway, não quem foi o Hemingway. Não é um documentário jornalístico. É uma especulação. O Futebol também é isso: e se aproveitássemos a Copa do Mundo e o cinema para permitir que um pai e um filho vivam uma vida quotidiana como nunca viveram. Esta é uma proposta louca, na verdade. Mas podemos usar o cinema para permitir que isso aconteça.
Não sei se teve ocasião de ler a crítica de Luís Miguel Oliveira sobre O Futebol.
Sim, sim.
Ele remata-a assim: “hesitamos em decidir se estamos no ‘documento’ ou na mais perversa ‘ficção’.”
As duas coisas. Tudo é documento e tudo é a mais perversa ficção. Partimos de uma situação real e imaginamos uma ficção. A ideia era a de fazermos um filme de ficção. O que significa fazer um filme de ficção? Significa que não queremos contar tudo. Queremos, de uma maneira muito controlada, permitir que um pai e um filho vivam um momento ou revivam – não me lembro se existiu – um momento doce na infância. Aqui entra a parte que, para mim, é a mais tenebrosa: esse conflito entre controlo, do realizador, e o acaso, a chuva, a morte…
Diz “o pai e o filho” e não diz “eu e o meu pai”. É a questão do outro, de novo.
É uma ficção. Neste caso, o processo de montagem alimenta-se do que eu vivi, mas não reflecte o que eu vivi. É uma construção. As pessoas tiram conclusões de como eu vivi a morte do meu pai a partir do filme. Não é assim. Como eu vivi a sua morte é uma coisa, como ela está retratada no filme é outra coisa. São decisões cinematográficas.
Vi o seu filme num streaming privado com legendas em inglês. Surpreendeu-me verificar no fim que o título em inglês escolhido é “On Football”.
Acho que é um erro. Parece mais uma coisa teórica… “Sobre” é académico. Está mal e arrependo-me de ter colocado o “on”.
Mas ao mesmo tempo pôs-me a pensar. Parece-me relevante a mudança do pronome “o”, que passa para a preposição “sobre”. Senti que este era mais um filme “pelo” futebol. “Pelo” no sentido de “através de”.
Acho que o futebol neste filme não é uma metáfora. O futebol dita as regras do filme.
É um dispositivo?
Sim, o futebol é um dispositivo. Tem regras férreas. Há um rectângulo dividido em dois, com duas equipas que jogam durante 90 minutos. O filme é isso: vai durar uma Copa do Mundo, pai e filho, uma divisão em dois. O futebol indica as decisões formais do filme.
E tem uma coerência muito forte: o tema da passagem ou erosão do tempo, fala-se do esquecimento e há as memórias do pai.
É interessante o que se esquece e o que se lembra. Dos jogadores de futebol não se esquece nunca. Nesse sentido, das coisas que mais gosto no filme são as palavras cruzadas. Estes milhares de palavras acumuladas, mas tanta dificuldade para formular frases.
Por um lado, o seu pai aparece a desafiar qualquer um a falar de futebol com ele. Por outro lado, quando é confrontado por si com memórias afectivas, ele diz que não se lembra.
Ele fugia. Não se esquiva quando está bêbado no bar e assume, de alguma forma e mesmo que não se entenda, o papel de pai. É uma coisa um pouco estranha. Ele está ali a falar sozinho. Existe uma espontaneidade tremenda. Ele esquecia-se da presença da câmara. Era um grande actor, eu sou um péssimo actor. Mas toda a ficção é documental. Não preciso de falar de Cassavetes. Quer dizer, o que é mais ficção e o que é mais documentário: Lumière ou Méliès?
O Godard dizia que o Lumière é ficção e o Méliès é documentário.
Sim, em Lumière há “posta em cena”.
Tal como há nas sequências em que está no carro com o seu pai. Inclusivamente, aquilo que diz parecer ser cirúrgico.
É cirúrgico. É cirúrgico porque está editado. Isso é muito importante: isto não é cinema directo. Está muito mais editado que o A Story for the Modlins. Cada frase que aparece, cada vírgula, está tremendamente meditada. O relógio parou e, no dia seguinte, ele [o pai] vai para o hospital. Cada frase é pesada numa balança. Como nos Modlins. Há um processo de ficção que é o de ordenar essas palavras cruzadas.
Quando é que começa a ver o filme final? Durante a montagem?
Nós decidimos fazer o filme duas semanas antes de começar a Copa do Mundo. Escrevemos um decálogo, com regras muito rígidas. Não tínhamos guião, mas tínhamos essas regras sobre o que queríamos e, principalmente, sobre o que não queríamos. É verdade que, durante o filme, eu voltava a essas regras formais várias vezes. Quando gravo o Hemingway em Pamplona [para Notes on the Other], eu passo dois anos ou mais a tentar encontrar o filme. Aqui, volto a Madrid e com o Carlos começo a trabalhar na montagem à distância, porque ele vive no norte. Mas foi rápido este filme: tivemos um ano a montar. Para o nosso padrão, é pouco tempo. Tivemos grandes discussões. Sabíamos que havia uma morte e a morte é uma surpresa na rodagem, mas não na montagem.
Tudo está concebido sabendo que há uma morte. Qual seria o filme se não houvesse uma morte? Seria melhor, seria pior? Não sei, mas tínhamos de pensar um final. Provavelmente o que mais nos custou foi tratar a morte. Não queríamos fazer, de alguma maneira, algo de nostálgico, estabelecer com o espectador emoções fáceis, convencionais. Queríamos outra coisa. Demorámos a descobrir que o que tínhamos de fazer era esvaziar o filme. A partir do momento no hospital, já não há palavras, tudo já foi dito. Demorámos seis meses a montar esta parte final. Tentámos tudo: desde ressuscitar o pai através de um ritual místico com as palavras cruzadas até fazer um filme criando uma mitologia brasileira a partir do “álbum de figurinhas” [cadernetas de cromos guardadas pelo pai].
Falou em esvaziamento. Este também é o retrato de um país em processo de adormecimento.
Era inevitável. Era inevitável que a morte do pai e o 7 a 1 [jogo da Alemanha contra o Brasil] estivessem próximos. Eu não queria que uma coisa fosse metáfora da outra. Mas era inevitável. Mais que isso, além de se filmar o pai, filma-se a cidade. Acho que a forma como São Paulo está apresentada rompe com todos os estereótipos do que é o Brasil de verde e amarelo. Para mim é fundamental a cena do pai cantando Aquarela do Brasil. Uma música tão emblemática. E o que se vê é a coisa mais triste e deprimente. Esta é a minha forma de ver o Brasil. Também o Brasil está construído. Os filmes também constroem cidades.
Há esta coincidência, feliz ou infeliz, entre um jogo trágico, que afastou o Brasil da Copa, e todo um país que entra num período de ocaso. Um país mergulhado num longo Inverno.
Sim, totalmente. É um filme cinza. De alguma forma, o país e o pai confluem. A decisão do carro…
Ia perguntar sobre ela.
Este é um homem sem lar, na verdade. O carro é esse lar que flutua pelas ruas. Ao mesmo tempo, cinematograficamente, o carro também permite uma intimidade, mas sem invadir, porque os rostos não estão a ser filmados. Não se pode pensar o cinema contemporâneo sem se definir o lugar do espectador num filme. Há uma falsa sensação de permitir que o espectador veja a intimidade total. Mas não vê os rostos, o que muda muito. O carro é isso: define a posição do espectador numa câmara fixa, que não se mexe. Os dois – filho e pai – estão presos no carro, não podem sair. Já tínhamos visto um carro no filme [caseiro] do casamento, quando ele [o pai] tinha tudo pela frente para ser feliz.
Depois do terceiro dia de rodagem, decidi abandonar o filme. Disse: “não é possível fazer este filme, porque ele não quer ver futebol”. Fui ver o material e quando vi o carro disse: “é ali”. Ao mesmo tempo, fiquei gelado. Mas a morte já estava aí. No banco de trás. Três dias antes do meu pai ter ido para o Hospital, no pequeno-almoço com a equipa perguntei: “qual o tema deste filme?” E responderam: “É o futebol”. Eu disse: “Não, este é um filme sobre a morte”. Antes da viagem [para o Brasil], o Carlos e eu escrevemos no decálogo: “este é um filme sobre uma despedida definitiva”. Não sabíamos evidentemente, mas brincar com o fogo é perigoso.
A morte aparece bruscamente.
Ele não estava doente, ninguém esperava a morte.
Há uma dureza grande nesse esvaziamento de que falava. A última vez que ouvimos o seu pai parece que se anuncia uma recuperação, mas depois é o vazio…
Estás 40 ou 50 minutos com um homem. De repente, morre. Mas o futebol não pára! Não só não pára como, tal qual ele previra, ganha a Alemanha.
O À pala de Walsh endereça um agradecimento especial ao João Ricardo Oliveira e ao Tomás Baltazar.