L’existence n’a guère d’intérêt que dans les journées où la poussière des réalités est mêlée de sable magique, où quelque vulgaire incident de la vie devient un ressort romanesque.
Marcel Proust, À la recherche du temps perdu – À l’ombre des jeunes filles en fleurs
A versão correcta de La La Land
Com um início tão semelhante ao de Les demoiselles de Rochefort (As Donzelas de Rochefort, 1967) e um final absolutamente reminiscente de Les parapluies de Cherbourg (Os Chapéus-de-chuva de Cherburgo, 1963), ambos de Jacques Demy, era inevitável que o debate em torno de La La Land (La La Land: Melodia de Amor, 2016) se resumisse a tentar perceber se este filme se tratava de hommage (correspondente a uma avaliação positiva) ou pastiche (correspondente a uma avaliação negativa). É evidente que o fenómeno não é novo. Brian De Palma tem sido alvo da mesma discussão há décadas. No entanto, e independentemente de se gostar, ou não, dos filmes, é sempre motivo de entusiasmo quando o pastiche, ou a hommage, consegue lançar alguma luz sobre o original. La La Land fá-lo em relação a Parapluies.
Perto do final do filme de Damien Chazelle, oferece-se ao espectador uma recapitulação imaginária e alternativa dos acontecimentos mostrados entretanto, muito distinta daquela a que efectivamente se assistiu. Nessa sequência, é-nos transmitido que tudo correu mal, mas que teriam bastado alguns pequenos gestos e ajustes para que tudo tivesse corrido bem. Ao fazer isto, o filme não está apenas a dizer que “tudo poderia ter acontecido de outro modo”, mas está, sobretudo, a afirmar-se pela negativa: “o filme que viu não é aquele outro que poderia ter visto”. Em suma, o filme anuncia-se, no final, como o negativo de um outro filme, o filme ideal, do qual este é a versão errada.
O final recuperado de Demy apela à reconsideração de Parapluies como o filme errado que ele, afinal, também pode ser. Por defeito, todas as narrativas incluem em si infinitos reversos, mas materializando um deles na sequência final, e fazendo-o no contexto de um cruzamento explícito com o filme de Demy, La La Land apela a uma nova perspectivação de Parapluies enquanto uma obra que – construída sobre descoincidências, diferimentos e défices – tematiza justamente tensões (fundamentais tanto na construção artística quanto na delineação das vidas humanas) entre abertura e fechamento, o todo das possibilidades (o informe) e a escolha (a forma).
A ausência
A primeira meia hora estabelece as coordenadas românticas segundo as quais o filme se desenvolverá. Geneviève é uma rapariga de dezassete anos que ajuda a mãe a vender chapéus-de-chuva, e que inicia um relacionamento amoroso com Guy, um rapaz de vinte anos que trabalha como mecânico numa oficina. O namoro desenrola-se candidamente, com idas em conjunto à ópera (Carmen, de Bizet), e com danças e bebidas não-alcoólicas num bar. Quando o par decide casar, a mãe da rapariga mostra-se céptica, não só em relação à viabilidade prática daquele casamento (para além de ambos serem demasiado jovens, ele é pobre, e ela é pouco mais rica, e a mãe sabe que uma vida a dois requer estabilidade económica), como em relação à própria verdade daquele amor. A Geneviève, estas reservas assumem um traço de monstruosidade, em particular porque questionam a verdade de sentimentos que descem, inequívocos, sobre ela, questionando também, por necessária consequência, o seu próprio ser (o que fazer no caso de se confirmar o cenário em que o amor que ela sente não é, afinal, real, contrariando a evidência de ela o sentir tão fortemente?). Os jovens mantêm o desejo de casamento, mas o fantasma da guerra da Argélia interpõe-se entre eles quando Guy é destacado.
Depois de dormirem juntos na noite antes da partida, Geneviève descobre estar grávida. A distância física entre ela e Guy é preenchida pelo emblema do diferimento que são as cartas, através das quais chega uma outra marca distintiva da ausência: a fotografia dele, vestido com o uniforme militar. Alguns anos depois de Parapluies, Catherine Deneuve interpretaria o papel principal de La sirène du Mississipi (A Sereia do Mississipi, 1969), de François Truffaut, em que um homem, Louis Mahé, trava conhecimento com uma mulher, Julie, através da página de anúncios sentimentais de um jornal, iniciando uma relação que se prolonga na troca de retratos e, finalmente, numa reunião física que visa concretizar o casamento. O desenvolvimento do filme revela que a mulher que apareceu a Mahé não é a mesma mulher com quem ele trocara correspondência e que aparecia na fotografia que lhe fora enviada, trabalhando assim o filme no sentido de sugerir que os regimes da escrita e da imagem são do domínio da espectralidade, e que o tráfego de cartas e de imagens equivale, na verdade, a um tráfego de fantasmas do qual a ordem do real não sai impune.
No filme de Demy, e embora numa circunstância narrativa distinta, as cartas e a fotografia também têm em Geneviève o efeito de instalar a dúvida em relação à realidade (física, material) de Guy, uma vez que essas figuras servem o propósito de realizar a manifestação aguda da ausência dele. Esta perturbação ontológica é reforçada pela situação de guerra em que Guy vive, e que é exposta por ele numa carta na qual conta que, não obstante considerar-se relativamente livre de perigo, três dos seus colegas foram mortos recentemente. Ao ler estas palavras, Geneviève apercebe-se de que a probabilidade de as cartas e a fotografia serem as últimas coisas que vê de Guy é mais alta do que lhe seria desejável, sendo que ele pode morrer e nunca mais regressar. Assim, numa oposição simbólica à ausência, à dúvida e à sombra da morte, ela tem a evidência violentamente material de um ventre que cresce, contendo um filho que necessitará do pai que ameaça não voltar.
Surge então um novo homem na vida de Geneviève, Roland Cassard, que é rico, gentil, estável e, acima de tudo, alguém que está presente. Mas este é também um homem que ela não ama, um ser que se lhe apresenta como uma versão diminuída de Guy, com a vantagem única em relação a este de poder afirmar-se pela presença – o que não é, comprovará o filme, uma vantagem insignificante.
Por tudo isto, a ausência revela-se um dos tópicos fundamentais de Les parapluies de Cherbourg. Algum tempo depois da separação, Geneviève diz: “A ausência é uma coisa estranha”, afirmando logo depois que, por vezes, ao olhar para a fotografia de Guy, esquece-se de como ele era realmente. Esta afirmação causa espanto porque embate no carácter icónico da fotografia segundo o qual a imagem que nela se vê constitui um perfeito duplo da realidade visível sua referente, e que estaria na origem do poder extraordinário de a fotografia funcionar como memento. A evidência da fotografia deve activar a memória visual, e não o contrário. O que Geneviève anuncia, porém, é que, agora, quando pensa em Guy, não vê o homem, mas sim a fotografia dele: a imagem é tudo o que lhe resta dele (“c’est tout ce qui me reste de lui”).
Ou seja, neste momento da narrativa, ao criar uma imagem mental de Guy – em si mesma uma imagem de segundo grau –, ela já não tem como referente o rosto de Guy, mas a sua fotografia; o que, aumentando os níveis de diferimento (a imagem torna-se de terceiro grau: a imagem mental faz-se a partir de uma imagem fotográfica, que se faz a partir de um rosto), reforça a distância, o efeito da ausência, e, assim, a qualidade fantasmagórica de Guy, que se transforma, para Geneviève, na imagem de uma imagem.
A escolha de Geneviève
Num passo de Une vie (A Vida de uma Mulher, 2016), de Stéphane Brizé, a protagonista, Jeanne, vasculha a correspondência da mãe, recentemente falecida, encontrando cartas de um amante com quem aquela terá mantido uma relação amorosa no passado. Os risos ou sorrisos que esta sequência suscita da parte do público, enquanto reacções espontâneas a um momento inesperado de exposição da leviandade de uma velha baronesa, revelam, porventura, uma certa incapacidade de apreender a carga dramática da situação.
Segundo o que se lê nas cartas, a relação extra-conjugal que a mãe de Jeanne manteve por pouco tempo foi baseada num grande amor, verdadeiramente recíproco, e que, contudo, nunca foi assumido por ela com vista a evitar a destruição da estabilidade da sua família. Ao escolher a família e assumir a responsabilidade pelo sangue dos outros, num gesto de abnegação e auto-sacrifício, Adelaïde revela-se um contraponto importante ao núcleo narrativo principal, no qual a filha, em quem o filme se centra, acumula sofrimentos provocados, por regra, pelos actos negligentes dos que estão à sua volta. O efeito melodramático torna-se, assim, assinalável: a mãe sacrificou o que nos é apresentado como a verdadeira felicidade no amor por um casamento ordinário, em tom pianíssimo, porque a primeira implicaria a infelicidade de outrem.
O riso dos espectadores não revela necessariamente, ou não revela apenas, uma incompreensão das subtilezas dramatúrgicas postas em acção no filme de Brizé. Ele revela também que uma coisa pode ser em simultâneo várias coisas: a descoberta da vida oculta, totalmente insuspeita, da mãe – personagem que retém todos os traços da honradez e da decência – é um catalisador que banaliza as infidelidades do marido de Jeanne, e que virá a normalizar também as repetidas mentiras do seu filho. De um certo ponto de vista, o filme aproxima-se neste momento-chave, enganadoramente, da maquinação irónica típica da comédia de enganos.
Regressando à cena de Parapluies em que Geneviève discute a fotografia de Guy, é importante notar que a mãe da jovem conclui que Guy representou apenas um ideal, sem reais condições para encarnar, e que Roland Cassard é o homem que, sem poder almejar ao estatuto de ideal, pode no entanto proteger Geneviève e oferecer-lhe uma vida. E diz-lhe também algo que talvez o espectador risonho de Une vie apreciasse ouvir, caso fosse acusado de passar ao largo da severidade do filme de Brizé: “Se já não podemos fazer uma piada, minha filha, estás perdida”. Não é credível que a mãe queira dizer que a situação vivida por Geneviève contém em si um fundo humorístico, mas parece, sim, que ela procura apelar a uma certa ligeireza sem a qual determinadas dores se tornariam insuportáveis. Em suma, a melancolia não é a única resposta para a desilusão.
Logo depois, Madame Emery declara que, no passado, também viveu um grande amor por outro homem que não o pai de Geneviève.
“Devias ter casado com ele”, responde a filha.
“Tens razão, mas deves compreender que quero que sejas feliz, e que não arruínes a tua vida como eu arruinei a minha”, é a resposta.
Este diálogo instala no filme uma estrutura de repetição clara. No entanto, não se identificam perfeitamente as correspondências. A situação de Geneviève, entre Guy e Roland, espelha a situação da mãe, entre o pai e o amante. E a filha diz: “Devias ter casado com o outro”, mas não se sabe precisamente a quem corresponde o outro. A mãe casou com o equivalente de Guy (o ideal) ou com o de Roland?
Podendo argumentar-se em favor de ambas as hipóteses, interessa-me ressalvar que ela se arrependeu (“Tens razão, eu deveria ter casado com o outro”), e que, como consequência deste acto, a sua vida com o marido e com a filha não pôde senão ser assombrada pelo fantasma de uma outra vida que nunca existiu porque, no momento em que ela escolheu um homem, sentenciou o outro ao domínio (fantasmagórico, é claro, mas bem real) do e se… A mãe de Geneviève põe assim em evidência uma ideia que, não obstante consistir aparentemente num truísmo, é fundamental para que o melodrama possa cumprir o objectivo de, como a tragédia, provocar terror e piedade: as decisões da vida são tomadas sem conhecimento do porvir. Isto é, vive-se às cegas. E fica assim aberto o caminho para a incerteza e para a sombra (e, potencialmente, os efeitos reais) do erro.
É por ter aprendido isso que a mãe apela à ligeireza. Tendo vivido o seu melodrama, ela sabe que o arrependimento virá, provavelmente, de qualquer uma das formas, uma vez que, seja qual for a vida escolhida por Geneviève, o facto de ter entrado neste dilema existencial, em que dois caminhos inconciliáveis se vislumbram no horizonte, é o suficiente para firmar o contrato: haverá sempre pelo menos uma vida fantasma, paralela àquela que é vivida. É isto que o final de La La Land revela ter compreendido em Demy.
A vida póstuma
No fim da sequência em que me tenho detido, Geneviève retoma os acordes da canção-tema da sua relação com Guy, ao som dos quais ela tinha cantado antes: “Não poderei viver sem ti”, e canta agora: “Porque é que a ausência é tão difícil de suportar?”. Atentar na actualização que a letra da música sofre do primeiro momento para o segundo revela a transição de um estado em que a espera está no futuro (“estarás ausente, mas esperarei por ti”) para um outro em que ela está no presente (“A tua ausência é difícil de suportar”). A ausência pressentida transforma-se assim, justamente, numa ausência presente, real e tangível. Ao cantar esta melodia antes da partida de Guy, Geneviève tinha ainda cantado: “Sem ti, morrerei”; e neste segundo momento, ela recupera o tópico da morte, ao terminar a canção, dizendo: “Eu teria morrido por ele. Porque não estou morta?”
O plano seguinte, que situa a acção num novo marco temporal (Abril de 1958), consiste num travelling sobre o céu, de baixo para cima. Surgindo imediatamente depois de Geneviève manifestar o desejo de estar morta, este não deve ser entendido como mero establishing shot que nos diz que “passaram alguns meses, há flores nas árvores, é Primavera”. Este plano recupera um célebre plano de Vampyr (Vampiro, 1932), de Carl Dreyer, no qual temos acesso ao ponto de vista de um morto que, enquanto é transportado no seu caixão, olha o céu. Somos levados a compreender que, no fim da conversa com a mãe, durante a qual Geneviève percebe que terá de casar com Roland Cassard, ela sofre efectivamente uma espécie de morte. A partir de então, teremos, assim, acesso a uma vida póstuma. Na sequência seguinte, ela recebe um anel de Roland Cassard (sinal de contrato matrimonial), passeia com ele no mesmo cais onde havia passeado com Guy (sinal da efectivação do processo de substituição), e depois casa-se.
No plano imediatamente anterior ao do casamento na igreja, a câmara acompanha em travelling a mãe a passar por diversos manequins vestidos de noiva, até chegar à filha, no fundo da sala, com um véu posto, numa sugestão pouco subtil, mas eficaz, de que Geneviève é simbolicamente dotada da mesma inanidade dos manequins, numa nova consubstanciação simbólica do trabalho da sua morte (de mulher que sente, a matéria morta de efígie). Complementando o plano subjectivo de Geneviève enquanto morta que descrevi, o plano dos manequins termina com um régard caméra de Catherine Deneuve, e a relação entre estes dois planos parece reforçar simultaneamente a afinidade de ponto de vista entre ela e o espectador (o plano subjectivo, no primeiro caso) e, no segundo caso, a ideia de que ela é um espelho no qual o espectador se pode ver a si mesmo: a morte de Geneviève é também a de todos nós, ou pelo menos daqueles de nós que, desejando viver o sonho, foram obrigados a aceitar uma existência em que o sonho não pode ser vivido, mas apenas sonhado. São estes, os sonhadores, simultaneamente as personagens e os destinatários dos filmes de Demy.
Logo depois realiza-se, na igreja, o casamento. O marido e a esposa trocam anéis ao som, não da marcha nupcial de Mendelssohn, mas de música fúnebre. O casamento é feito equivaler a um velório. Depois disso, para completar a situação com uma citação cinéfila, a saída da igreja redirecciona visualmente para o pomposo funeral no fim de um outro filme sobre a vitória da realidade sobre o sonho, Imitation of Life (Imitação da Vida, 1959), de Douglas Sirk.
A importância dos substitutos
O núcleo do filme de Demy parece ser indiscutivelmente o amor vivido por Geneviève e Guy. Contudo, tal como o relacionamento do passado da mãe de Geneviève serve o propósito de oferecer um contraponto que de alguma forma permite desvalorizar o drama bigger than life da filha (porque “tudo passa…”), as personagens de Roland Cassard e Madeleine (o primeiro casa com Geneviève, a segunda casa com Guy) parecem servir igualmente esse propósito.
No texto que escreveu para o À Pala de Walsh sobre o filme de Demy, João Lameira avança a hipótese de os verdadeiros heróis desta história serem, na verdade, Roland e Madeleine. Que Lameira use o termo “verdadeiro” para qualificar os heróis é interessante, justamente porque implica que Geneviève e Guy sejam falsos heróis, num exercício que vai ao encontro da minha proposta inicial de ver o filme de Demy enquanto obra que se constrói sobre descoincidências e incompatibilidades.
É evidente que não importa resolver a questão de quem são os verdadeiros heróis do filme. Contudo, importa compreender que alterar o ponto de vista permite o acesso a outra versão daquela história, e que esses outros filmes de que Roland e Madeleine são protagonistas lidam com a afirmação dos substitutos.
Guy, que, como fiz notar, se fantasmagorizara após a partida para a Argélia, reaparece na terceira parte do filme, apropriadamente intitulada “Le retour”, anunciando-o como revenant. Depois de saber-se preterido por Geneviève e substituído por outro homem, Guy ingressa num movimento de autodestrutição que envolve o despedimento do emprego, a perda de laços com as pessoas à sua volta, o alcoolismo e o recurso à prostituição.
Ao acordar de manhã, depois de uma noite passada com uma prostituta, Guy deita-se junto dela e chama-a Jenny. Ela responde: “Se quiseres, podes chamar-me Geneviève”. Ele olha o vazio e repete: “Geneviève”. E ela responde: “Vais dizer-me que te faço lembrar alguém”. Torna-se então evidente que Guy chamou Geneviève a Jenny durante a noite em que partilharam o leito, e que ele a escolheu, de entre todas as prostitutas disponíveis, por ela ser aquela que mais se assemelhava à mulher perdida. No fim desta curta sequência, Jenny diz: “Podes regressar quando quiseres”, como se dissesse: “Posso voltar a ser Geneviève para ti sempre que precisares”. Talvez devido a certas particularidades da sua profissão, que lhe permite envolver-se com homens com base numa exclusiva transacção de dinheiro e não de emoções (isto é, profissionalmente, e não pessoalmente [em nome próprio]), Jenny é a única personagem do filme que manifesta ter plena consciência do seu estatuto de substituta. Ao conceber esta situação, Demy permite-nos perceber que todas as quatro personagens são, de alguma forma, substituintes, reforçando a sua permutabilidade e sublinhando, assim, a relatividade contingente dos dramas.
Roland e Madeleine são os exemplos paradigmáticos disto. Depois da partida de Guy, Geneviève toma Roland como seu marido enquanto ainda ama Guy, ou a ideia de Guy, como a mãe bem percebe (Em Les demoiselles de Rochefort, uma situação análoga será encenada com as personagens da irmã gémea loira e do marinheiro pintor). Roland substitui, assim, Guy, cuja vocação para ser substituído estava já, aliás, contida na acepção do seu nome em inglês: um “tipo”.
Algum tempo depois de regressar a França, e perante a ausência de Geneviève, que ele também ama ainda, Guy decide casar com Madeleine, a rapariga que tomava conta da tia doente, entretanto falecida, do mecânico. Madeleine (a alusão a Vertigo [A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958], outra história de substitutos, não pode ser desconsiderada) passa a ocupar, assim, o lugar que estava inicialmente atribuído a Geneviève.
A situação destas duas personagens é, como identificou Lameira, singular, pois elas amam pessoas que não as amam de volta. Lameira afirma que elas são as únicas “que souberam conquistar a felicidade”. Porém, é de notar que a felicidade que estas personagens encontram parece estar inevitavelmente envenenada pelos fantasmas daqueles que elas substituíram na vida dos cônjuges. No universo de Demy, a felicidade aparece quase sempre chamuscada.
De alguma forma, Guy substitui a sua tia na vida de Madeleine. Depois da morte da mulher idosa de quem ela cuidara, o filme insinua que ela passará a cuidar de Guy, numa sugestão perversa que já encontrávamos em All that Heaven Allows (Tudo o que o Céu Permite, 1955), de Douglas Sirk, em que, ironicamente, uma mulher de meia-idade consegue emancipar-se da condição de mãe para abraçar a condição de amante no preciso momento em que o objecto do seu amor fica acamado. E também Geneviève não se livra do espectro da substituição, porque Roland Cassard vem da primeira longa metragem de Demy, Lola (1961), onde desenvolvera uma paixão obsessiva que – percebemo-lo numa cena em que ele canta (numa melodia recuperada da banda sonora do filme anterior) a história desse amor em over, enquanto a câmara repousa sobre o espaço que testemunhou a frustração definitiva do seu amour fou por Lola – não está completamente extinta no momento em que se aproxima de Geneviève.
O que estes movimentos permitem perceber é uma verdadeira poética da substituição em Demy, em que as personagens são intercambiáveis, triunfando a lógica da coincidência própria do melodrama sobre a lógica do destino mais característica da tragédia. Esta é uma forma de Demy afirmar a sua visão aparentemente ligeira, mas profundamente melancólica, do mundo e das relações humanas, que se gere justamente em dinâmicas complexas entre a entrega ao sonho e o abandono à vida, e em confrontos permanentes entre cenários ideais e a evidência violenta do real.
Contudo, e isto é notório no seu cinema, para Demy o sal da vida é o sonho, a magia, o excepcional. No final de Parapluies, Geneviève e Guy reencontram-se pela primeira vez desde a separação antes da partida para a guerra, quando ela pára para abastecer o seu automóvel numa bomba de gasolina gerida por ele. Enquanto Geneviève conta a Guy a sucessão de acasos que a conduziram ali, o funcionário da bomba pergunta-lhe se ela deseja que ele encha o depósito com gasolina super ou normal [super ou ordinaire], ao que ela responde que “não importa”. Mas o funcionário reforça a pergunta, no que significa também sublinhar a retórica desenvolvida pelo filme de que, ainda que não importe, é sempre necessário escolher, porque a narrativa, como a vida, se gera num movimento decisório, numa sucessão de acções particulares, sem espaço para a ambiguidade. Ele avança uma proposta: “Mas o que prefere a senhora? Super?” Ao que ela responde, sem convicção, mas afirmativamente: “Sim”. Na vida póstuma de Geneviève há ainda a possibilidade, mesmo que desencantada, de reconhecer a preferência pelo sonho. Talvez esta seja uma imagem justa do cinema de Demy.