It’s a good thing that the people in Hollywood have no souls, so that they don’t have to suffer through the lives they lead.
David Mamet, On Directing Film, 1992
É conhecida a frase de Godard: “o cinema é a mais bela fraude do mundo”. David Mamet não gosta de Godard, mas gosta – e muito – de fraudes. Os seus filmes lidam com jogadores e vigaristas (conmen) que procuram levar a sua avante. Os cenários mudam – pode ser uma casa de jogos, uma sala de audiências, uma esquadra da polícia ou uma rodagem de um filme -, mas o gosto pelo truque e por manobras de diversão mantém-se intacto. Diria até que é estrutural na sua maneira de conceber o mundo. A verdade interessa-lhe pouco. Ela aborrece e corporiza, como diz o realizador encarnado por William H. Macy a certa altura, uma “perspectiva estreita” sobre a vida. O ardiloso logro é sedutor, perto de irresistível quando devidamente tratado por um profissional. Pode ser este um psiquiatra, um criminoso, um detective, um actor, um argumentista ou um realizador. Está visto, portanto, que ao oitavo filme (sétimo para cinema) Mamet teria de recuar alguns passos sobre o que estava a fazer para atacar o mais óbvio e um dos mais fascinantes simulacros: a Sétima Arte, em geral, e o seu antro sagrado, a babilónica Hollywood, em particular.
Para haver cinema, tem de haver objectivos (goals), assinala repetidas vezes Mamet em palestras, entrevistas e nos seus ensaios. Pois aqui está o primeiro e último goal deste State and Main (State & Main, 2000): transformar a rodagem de um filme numa sucessão burlesca de incidentes – Mamet diz “incidentes”, mas eu leio “acidentes”. A inspiração parece ter vindo de um dos seus heróis, do também writer director Preston Sturges, em especial do seu Sullivan’s Travels (A Quimera do Riso, 1941), visão satírica sobre um realizador (Joel McCrea) que, insatisfeito com o statu quo da indústria de Hollywood, parte para o interior americano para viver a vida tal como ela é. State and Main dá-nos um pedaço desta angústia, desde logo, a do cineasta que quer criar para lá das circunstâncias, as mesmas que invariavelmente o contrariam (o realizador quer fazer um filme chamado The Old Mill, mas não tem – e não terá – à sua disposição um velho moinho). Na senda de Sturges, também aqui mergulhamos na chamada Americana, em particular, na localidade de Waterford, Vermont. É aí que toda a equipa de produção do filme dentro do filme se reúne para que a magia aconteça. O teatro de uma rodagem como motivo para a mais sulfurosa gargalhada – é este o goal de Mamet, conhecido por ser um dos mais brilhantes dramaturgos americanos da sua geração e para quem o cinema é um extra, mais um palco para o puro “faz-de-conta”.
O ataque satírico a Hollywood vem de alguém vindo de fora – os anos passaram e o próprio Mamet, em entrevista no programa de Charlie Rose, confessa que é no teatro que se sente feliz e que nunca se sentiu verdadeiramente parte da família do cinema. Para Mamet, a distinção metodológica entre teatro e cinema sempre foi ténue. Escreve Yannis Tzioumakis, num artigo intitulado «The Poetics of Performances in the Cinema of David Mamet: Against Embellishment»: “Na prática da realização de David Mamet (…) o argumento tem o mesmo nível de finalidade que a peça tem no teatro, o que faz de Mamet porventura um caso singular no cinema americano contemporâneo”. A teatralidade manifestada como princípio de escrita. Para Mamet, tudo parte e é rigorosamente ditado pelo argumento. Não espanta que algumas das suas personagens sejam escritoras – Lindsay Crouse, na pele da protagonista de House of Games (Jogo Fatal, 1987), obra de estreia de Mamet, é autora de um best-seller no domínio da psicanálise, ao passo que, noutro filme, o provocador Oleanna (1994), a obra do professor interpretado por William H. Macy é objecto de contestação por parte de uma aluna (Debra Eisenstadt). Ao mesmo tempo, os filmes de Mamet abordam questões relacionadas com a transmissão do conhecimento, entre tutor e aluno, ou melhor, entre uma forma de tutor e uma forma de aluno. Os domínios da escrita e do ensino instauram nos filmes de Mamet normalmente o que Robert Skloot, em «Oleanna, or, The Play of Pedagogy», denomina de “pedagogia dos oprimidos”.
Portanto, sim, podemos dizer que os filmes de Mamet trazem consigo uma espécie de bibliografia ou um conjunto de ensinamentos associados a esta, porque, essencialmente, eles são feitos de escrita. E a escrita é aqui um instrumento fundamental de sedução. Apetece dizer que é nela e por ela que esse conman chamado argumentista joga a sua cartada decisiva. Em State and Main, Mamet encontra o seu alter ego na personagem de Philip Seymour Hoffman, o dramaturgo tornado argumentista que se perde de amores pela livreira local (interpretada pela mulher de Mamet, a actriz e cantora Rebecca Pidgeon). O coração derrete e o cérebro entra em colapso. Um autêntico “bloqueio de escritor” vai atormentá-lo durante a rodagem do filme dentro do filme. Mamet compreenderá bem o desespero, já que, para si, a escrita é um trabalho de recolhimento e aturado burilamento, logo, uma actividade pouco compaginável com o lufa-lufa de uma rodagem. Neste sentido, não vejo como Mamet pode subscrever a divisa inscrita na almofadinha-talismã de William H. Macy em State and Main: “shoot first and ask questions afterward” (“disparar/filmar primeiro e perguntar depois”). Mamet pergunta tudo o que há a perguntar antes de rodar, procurando fazer ver o filme directamente no texto. O trabalho de rodagem, excluindo a direcção de actores, é entregue a técnicos da sua máxima confiança, começando pelo director de fotografia: “Existem alguns realizadores que são mestres visuais – eles trazem ao cinema uma grande acuidade visual, um sentido visual brilhante. Eu não sou uma dessas pessoas.”
Numa masterclass dada recentemente em Jerusalém, na Maleeh School of Television, Film & the Arts, David Mamet reforça esta ideia: “é preciso que o texto agarre a plateia.” A qualidade do filme decide-se ali, a partir da página em branco. Mamet pauta os seus filmes com os seus diálogos e situações que vertiginosamente se sucedem. A escrita é um ofício ou mesmo um truque que se pratica várias vezes até que nada falhe – como não falham os truques de cartas do seu actor predilecto, o fabuloso Ricky Jay, a quem Mamet dedicou um filme que eterniza uma das suas actuações ao vivo, Ricky Jay and His 52 Assistants (1996). State and Main é o filme de Mamet em que mais coisas falham, em que pouca coisa progride e, por isso, é o seu único filme abertamente cómico e implacavelmente corrosivo. No seu On Directing Film, livro lançado em 1992, peça fundamental para se perceber o pensamento de Mamet, é-nos dada, preto no branco, a receita para uma boa prática fílmica. Um filme deve ser como uma casa sólida, que se quer habitada. Acrescenta: “Um bom escritor melhora unicamente quando aprende a cortar, a remover o ornamento e especificamente o sentimento profundo e o que é muito significativo.” Tudo o que não participa na construção das fundações da história, deve sair. O que resta é um texto sem gorduras, que os actores deverão muito simplesmente dizer, sem imputarem àquele segundas leituras.”Não deixem o protagonista contar a história. Vocês contam a história; vocês realizam. Não temos de estabelecer a sua ‘personalidade.'”
Na superfície da escrita jaz o filme, inteiro, pronto a ser habitado. Um filme é basicamente um objecto de design, chega a enunciar. Mamet costuma trabalhar com os mesmos actores de filme para filme (uma trupe composta por William H. Macy, Ricky Jay, Rebecca Pidgeon, Joe Mantegna, J.T. Walsh, entre outros) e, com eles, a direcção obedece sempre à mesma política anti-Método, anti-Lee Strasberg, na medida em que, ao contrário desta, para Mamet tudo está no texto. O actor deve seguir as indicações do guião, dentro da boa pedagogia conhecida por K.I.S.S.: Keep It Simple, Stupid. “O bom actor realiza as suas tarefas tão simples e tão pouco emocionalmente quanto lhe seja possível. Esta é a essência do bom teatro: o bom teatro é as pessoas realizarem tarefas extraordinárias da maneira mais simples possível.” Com isto, nasce uma coisa chamada voz. Como em Whit Stillman, Woody Allen e Ernst Lubitsch, em Mamet parece haver uma voz comum às personagens – mais do que isso, comum aos actores. Uma voz que tanto é usada por eles como faz uso deles. Os famosos diálogos mametianos, secos, velozes e, por vezes, ásperos, e as acções contidas das personagens/actores produzem um tipo de interpretação altamente identificável que se impõe: veja-se como Steve Martin entra no colete-de-forças mametiano em The Spanish Prisoner (O Prisioneiro Espanhol, 1997), sacrificando vários dos traços expressivos que caracterizam a sua comédia física.
Mamet gosta de psicanálise e, por vezes, compara a criação de um filme à estruturação de um sonho. Aos seus alunos da Universidade de Columbia, Mamet lança, a certa altura no citado livro, o desafio de se imaginarem “como num sonho”. Portanto, o Professor David Mamet não pede para dizerem o que pode acontecer àquela personagem naquela situação na vida vivida, mas para dizerem o que poderia acontecer se essa personagem “fossem vocês num sonho”. Desde logo, por aqui se vê como é importante que a acção seja filtrada por uma qualquer ideia de simulacro, sendo o sonho o mais interessante dos segundos palcos da vida para Mamet. Por entre uma rígida disciplina de escrita, nasce um modo de existir e até uma certa atmosfera (como qualquer coisa de inefável ou menos definível) no universo mametiano. State and Main não é o exemplar mais perfeito desta atmosfera, ou modo de existir, mas há nele, de facto, um qualquer “efeito aquário” que descobrimos nos demais filmes – personagens aos círculos, que de vez em quando páram para pensar, como peixinhos tontos nadando de um lado para o outro, mas interrompendo o movimento de vez em quando para, perto da superfície, irem buscar alimento.
Este é um filme sobre segundos palcos, mas o filme dentro do filme versa sobre outro tema: o das segundas oportunidades. “A única segunda oportunidade que temos é cometer o mesmo erro duas vezes.” É aqui que Mamet parece revelar alguma da sua amargura em relação a Hollywood. Se a receita do seu cinema é tão imbatível, como parece acreditar em On Directing Film, como se explica que Mamet nunca tenha conseguido sair das margens de um cinema de autor entendido e apreciado por uma minoria? Perto do fim desse livro, ele desabafa: “Os filmes americanos contemporâneos são quase universalmente desleixados, triviais e obscenos. Se o vosso objectivo é ser bem sucedido na ‘indústria’, o vosso trabalho e alma serão expostos a todas essas influências destrutivas.” State and Main faz testemunho (falso? O que é falso num universo de meias verdades?) desta dimensão auto-destrutiva. No seio de uma equipa de rodagem, que almeja fazer um filme sobre a pureza, corroem os vícios da carne e as imperfeições da alma. A pedagogia dos oprimidos dá lugar à opressiva pedagogia do ethos hollywoodesco – Hollywood é, aliás, arrasada por Mamet num livro mais recente, Bambi vs. Godzilla: On the Nature, Purpose, and Practice of the Movie Business. Não muito diferente de um jogo de poker – nunca saímos da “casa de jogos” do primeiro filme -, tudo em Hollywood é negócio, tudo em Hollywood é negociável. A verdade, para começar.
State and Main passa amanhã (dia 20 de Setembro), às 19h00, no Espaço Nimas, no âmbito do ciclo, organizado pelo À pala de Walsh com a Medeia Filmes e Leopardo Filmes, Quem és tu, cinema?. Segue-se à projecção uma conversa com Pedro Mexia (escritor, cronista, crítico literário e responsável pela cultura na Presidência da República) e Tiago Rodrigues (encenador, dramaturgo e director artístico do Teatro D. Maria II). A moderação fica a cargo do walshiano Luís Mendonça.