A masterclass “Terror em Terra Quente” aconteceu no âmbito do MOTELX 2017, com organização do colectivo White Noise, sendo conduzida pelo walshiano Carlos Alberto Carrilho e Tiago Monteiro, com moderação da walshiana Sabrina D. Marques. O texto que se segue contém as intervenções de Carlos Alberto Carrilho, adaptando-as para o À pala de Walsh. “Terror em Terra Quente” procura traçar uma cartografia das construções visuais do cinema de terror da América Latina, integradas no seu contexto social, económico e político. Entre o trabalho pioneiro e a afirmação do género, são examinadas questões como a tradição e o hibridismo, estabelecendo afinidades e singularidades dentro desta área geográfica, mas também em relação aos declarados modelos canónicos europeu e norte-americano.
Em 1931, nos Estados Unidos, o estúdio Universal produzia Dracula (Drácula), dirigido por Tod Browning e protagonizado por Bela Lugosi. Durante a noite, nos períodos em que os cenários e as máquinas não estavam a ser utilizados por Tod Browning, George Melford dirigia uma versão em língua castelhana, apoiado por uma equipa de origem mexicana. Podem situar-se, aqui, os antecedentes do cinema de terror mexicano, não só como a primeira obra do género produzida maioritariamente com actores mexicanos e falada na língua oficial do país, mas também tendo em vista o enorme mercado latino-americano. Tomando Dracula de Tod Browning e a interpretação de Bela Lugosi como termo de comparação, poderá parecer extravagante ou mesmo camp esta versão latina protagonizada por Carlos Villarías, no papel de Dracula, e de Lupita Tovar, no de Eva Seward.
No entanto, também a excentricidade alimenta o filme de Tod Browning. Trata-se da adaptação americana da obra literária do irlandês Bram Stoker, recreada numa Transilvânia californiana; realizado na passagem do cinema mudo para o sonoro, por um americano pouco confortável com a transição – a “arte muda” vista como “perfeita cidade da imagem, […] adaptada ao constrangimento delicado do silêncio”, citando André Bazin -; a meio caminho entre o cinema sonoro e o mudo, Dracula apresenta longos períodos de silêncio e grandes planos dos actores, acentuando a expressão facial e o movimento do corpo, para construir o efeito dramático. A produção coube a uma família de origem alemã, os Laemmle, fundadora da Universal; a direcção de fotografia, e parte da realização, é de Karl Freund, responsável pela fotografia de títulos emblemáticos do expressionismo alemão como Der Golem, wie er in die Welt kam (O Golem, 1920) de Paul Wegener e Carl Boese, Der letzte Mann (O Último dos Homens, 1924) de F. W. Murnau ou Metropolis (1927) de Fritz Lang. Finalmente, a interpretação é dominada pela afectação e acento carregado do húngaro Bela Lugosi. Ao longo da exposição, reconheceremos questões relacionadas com a tradição e o hibridismo no cinema de género latino-americano, mas fica assinalado que, embora com cambiantes, ambas as características não estão expurgadas dos cânones europeu e norte-americano.
Até ao primeiro contacto com os europeus, em 1519, no território ocupado pelo actual México, floresceram uma série de civilizações pré-colombianas, como a maia ou a asteca, entre as mais conhecidas. Com a ajuda de armas de fogo, de outros povos nativos e de doenças pandémicas transportadas da Europa, os espanhóis dizimaram a civilização asteca que na época era dominante no espaço que temporariamente passaria a ser conhecido como Nova Espanha. Durante o período colonial, surgiu um novo grupo étnico, os mestiços, frequentemente resultado de violações sexuais perpetradas pelos conquistadores espanhóis sobre os povos nativos. Na nova pirâmide social, os europeus ocupavam o lugar mais alto, seguidos dos mestiços e, finalmente, surgiam os nativos.
A partir de 1821, concluído o processo de colonização e declarada a independência, o México atravessou um período de guerras, instabilidade política e uma ditadura, perdendo uma parte significativa do território a favor dos Estados Unidos, culminando na Revolução Mexicana, entre 1910 e 1920. Apenas a maior estabilidade política da década de 1930 impulsionou a cinematografia mexicana – de um filme produzido em 1931, passou para 21 em 1933 – culminando na “Era de Ouro do Cinema Mexicano”, entre 1936 e 1959, em que o país dominou a produção latino-americana e obteve o reconhecimento internacional, coincidindo com a estadia de dois cineastas ilustres que deixaram marcas: o soviético Sergueï Eisenstein para rodar o inacabado ¡Qué Viva Mexico! (1932), percurso poético pela história e cultura do México, desde a época pré-colombiana até à Revolução; e o exilado espanhol Luís Buñuel, entre 1946 e 1960, impregnando corrosão em tendências populares, como a comédia e o melodrama.
Durante o século XX, alcançado um período de estabilidade política, o México investe na definição de uma identidade nacional e no progresso social, através do desenvolvimento do espaço urbano, o que reverte em mudanças significativas de ordem política, cultural e social. O cinema de terror não foi indiferente a estas preocupações, sublinhando a tensa dialéctica entre o México da modernidade e o México da tradição, entre o México da ciência e México da religião. É algo que se reconhece em La Llorona (1933) de Ramón Peón, um dos primeiros exemplos do cinema sonoro mexicano e considerado o primeiro filme de terror local, anunciando nos créditos “uma versão moderna da lenda popular”. Em modo de flashback é apresentada a influência do mito popular da llorona sobre a história de uma família, apresentando duas versões da mesma narrativa. Um nobre espanhol rouba o filho à amante ou não lhe reconhece os direitos, conforme a versão, levando-a a suicidar-se e a vaguear pelas ruas à procura dos filhos, em busca de vingança.
Numa das versões, a mulher rejeitada é representada por uma mestiça, evocando feridas não saradas da violenta ocupação espanhola. Os elementos de terror são incipientes, misturados com apontamentos reconhecíveis, entre o drama e a comédia, adornados por primitivos efeitos especiais através da sobreposição ou dupla exposição de imagens. Embora La Llorona não apresente a serpenteante construção narrativa de flasbacks do clássico sueco Körkarlen (1921, O Carro Fantasma), realizado por Victor Sjöström em 1921, encontra pontos de contacto na figuração da morte através do espectro que abandona o corpo morto da amante e evoca essa estrutura labiríntica através da passagem secreta que serve de refúgio à llorona encarnada na ama.
Embora timidamente, La Llorona é o ponto de partida para atmosferas que poderiam agregar-se sob o titulo genérico de Cinema Gótico Mexicano, representado pelo contraste entre sombra e luz da película a preto e branco, povoada por monstros sobrenaturais ou alienígenas, mortes misteriosas, casas senhoriais decadentes ou em ruínas, zonas inacessíveis, passagens secretas ou nevoeiro que antes parece evaporação acelerada da água devido às temperaturas tropicais. O Cinema Gótico Mexicano avança pela década de 40 e atinge robustez entre as décadas de 50 e 60, não só buscando inspiração nos filmes de monstros da Universal e distribuindo pinceladas expressionistas, mas também firmemente amarrado a narrativas que encontram eco na sociedade mexicana da época.
Colaborador em dezenas de títulos, incluindo o argumento de El compadre Mendoza (1933), o segundo título da impressiva trilogia que Fernando de Fuentes realizou sobre a Revolução Mexicana, inspirado no trabalho de Sergueï Eisenstein e no expressionismo alemão, Juan Bustillo Oro é uma das figuras precursoras do Cinema Gótico Mexicano com o seu envolvimento, como argumentista em El Fantasma del convento (Fernando de Fuentes, 1934) e como realizador em Dos monjes (1934), El Misterio del rostro pálido (1935) e El Hombre sin rostro (1950). Recentemente programado no festival Il Cinema Ritrovato, organizado pela Cineteca di Bologna, Dos monjes foi exibido numa cópia restaurada que, a julgar pelas imagens, restitui a tez febril a uma obra centrada no êxtase do amor, mundano e religioso, elevada a peça-chave da transição do cinema mudo para o sonoro.
Em 1957, é lançado um título charneira desta vaga, El vampiro, realizado por Fernando Méndez, produzido por Abel Salazar e protagonizado pelo espanhol German Robles. Adaptando Dracula à realidade mexicana e evocando as paisagens sulistas de Son of Dracula (O Filho de Drácula, 1943) de Robert Siodmak, El vampiro não só popularizou estas figuras centrais do cinema de género mexicano, como o afirmou definitivamente, dentro e fora do país. Christopher Lee reconheceu a sua influência na produção do primeiro Dracula dos estúdios Hammer, dirigido por Terence Fisher, um ano mais tarde, apostando na pose felina, através dos dentes afiados e de uma figura ágil e esguia. El vampiro confronta a cidade com o campo, a ciência com a religião, representando um mundo rural indecifrável para o visitante citadino, com a sua vegetação luxuriosa, neblina, superstições e iconografia religiosa. Por outro lado, assinala a violência persistente da colonização, exemplificada na cena em que o vampiro, o descendente de húngaros que pretende restaurar o domínio de terror a partir da fazenda, ataca brutalmente dois campesinos. Fernando Méndez dirigiria dois outros filmes dignos de registo: a sequela El ataúd del Vampiro (1958), também produzida por Abel Salazar, e o belíssimo Misterios de ultratumba (1959).
Para além de actor, Abel Salazar produziu filmes com uma panóplia de criaturas e temáticas de terror que inundaram o mercado americano, incluindo as dobragens em inglês dirigidas aos Estados Unidos: cientista louco em El Monstruo Resucitado (1953) de Chano Urueta; mito de Fausto em El hombre y el monstruo (1959) de Rafael Baledón; vampiros nos títulos citados e em El mundo de los vampiros (1961) de Alfonso Corona Blake; feitiçaria em El espejo de la bruja (1962) e El barón del terror, ambos de Chano Urueta; múmias astecas em La cabeza viviente (1963) de Chano Urueta; e a llorona em La maldición de la llorona (1963) de Rafael Baledón.
No que diz respeito ao mito popular da llorona, foi submetido a diversas releituras, destacando-se duas obras da década de 60: La llorona (1960) de René Cardona e La maldición de la Llorona (1963) de Rafael Baledón, a já mencionada produção de Abel Salazar. La llorona (1960) é uma versão urbana e moderna em que um casal burguês é atormentado por esta figura do folclore local. A figura da llorona é corporizada na ama que chega para tomar conta da criança quando o casal decide retomar o estilo de vida moderno, que o casamento e o nascimento do filho veio interromper. A llorona vem sublinhar as novas tentações e perigos da vida moderna que fazem os pais esquecer as tradicionais obrigações na educação e segurança dos filhos.
La maldición de la Llorona emancipa-se da condição de remake e devolve a acção ao meio rural, em que um jovem casal urbano e sofisticado viaja a pedido de uma tia envolvida em rituais ancestrais de feitiçaria. O filme procura cumplicidades para além dos filmes de monstros da Universal, encontrando inspiração noutras geografias. A primeira cena repesca uma imagem icónica do cinema de terror italiano, La maschera del demonio (A Maldição do Demónio, 1960) de Mario Bava, em que Barbara Steele segura a trela de cães de grande porte e ar ameaçador. O romance policial The Hound of the Baskervilles (O Cão dos Baskervilles, 1902) de Arthur Conan Doyle, celebrizado no cinema pela adaptação da Hammer, espreita de perto.
A lucha libre ou wrestling é um dos mais importantes subgéneros do cinema de terror mexicano e o lutador Rodolfo Guzmán Huerta, mais conhecido por Santo, é o seu maior herói. Enquanto agentes da luta entre o bem e o mal, os praticantes de lucha libre dividem-se entre “rudos” e “técnicos”. Os “rudos” representam a transgressão e o ganhar sem olhar a meios. No lado oposto, os “técnicos” representam o cumprimento das regras e a honra. No ensaio «Le monde où l’on catche», incluído em Mythologies, Roland Barthes considera que o wrestling não é um desporto, mas um teatro do excesso, rico em significados éticos e ideológicos.
No México, a popularidade da lucha libre surgiu no início do século XX e atingiu o seu apogeu na década de 60, como meio de entretenimento das classes baixas e operárias. O lutador assume a imagem de super-herói, mascarando-se e revelando a identidade apenas se fosse derrotado. Então tiraria a máscara e não a voltaria a usar. A proibição pelo governo da exibição de lucha libre na televisão, afastando-a da classe média, motivou a sua passagem para o cinema de terror, onde cenas de mascarados a lutar contra as forças do mal que ameaçam a sociedade mexicana (vampiros, múmias, extraterrestres ou cientistas loucos) são intercaladas por inusitadas longas sequências de wrestling no ringue. Entre 1952 e 1983, perto de duas centenas deste tipo de títulos foram produzidos e a Santo coube o protagonismo numa parte significativa.
Personagem habitual nos filmes produzidos por Abel Salazar, a chica moderna é uma figura interligada com a ideia moderna de “mexicanidade”. Embora seja uma mulher jovem, independente e sofisticada, mantém-se virtuosa sexualmente: virgem até ao casamento e fiel depois. Os monstros do passado representam ameaças sexualmente corruptoras sobre a chica moderna através de propostas sexuais antes do casamento ou de adultério. Imoralidade e irresponsabilidade ameaçam a sua identidade, estabelecendo conflitos relativos ao seu estatuto de “mexicanidade” e, logo, de modernidade. Uma figura respeitada, o pai ou um familiar mais velho, habitualmente ligada à investigação ou à ciência, associando patriarcado com racionalismo, mantém a chica moderna sob a sua protecção.
Numa série de filmes que René Cardona dirigiu, entre 1962 e 1968, o conceito de chica moderna evoluiu para o de luchadora, numa variação da lucha libre em que lutadores mascarados e musculados são substituídos por luchadoras, mulheres atraentes que dispensavam estereótipos de passividade. Numa sociedade patriarcal, as luchadoras tomam o lugar dos lutadores masculinos no combate pelo bem, no ringue e no espaço público, enfrentando ameaças à sociedade e à “mexicanidade”. No entanto, não é totalmente afastada a ideia conservadora do estatuto da mulher: a imagem de uma mulher atraente com roupa justa, dirigida ao olhar fetichista de um público maioritariamente masculino. De resto, ainda que propondo uma crítica ao passado como deriva monstruosa capaz de destabilizar o progresso do presente, é igualmente promovida a ordem sexual e patriarcal.
Alejandro Jodorowsky, artista multifacetado de origem chilena, que trabalhou como cineasta, actor, encenador, compositor, poeta, ensaísta, autor de banda desenhada e mimo, depois de uma passagem por Paris, para contactar com o movimento surrealista, instalou-se no México. Aqui, dedicou-se, primeiro, à performance e ao teatro de vanguarda e, depois, ao cinema, através da realização das suas três primeiras longas metragens: Fando y Lis (1968), El topo (1970) e La montaña sagrada (A Montanha Sagrada, 1973). Fando y Lis expõe a passagem para a imagem em movimento das suas experiências na performance no âmbito do Mouvement panique, colectivo surgido como resposta à apatia do surrealismo.
Entre o psicadelismo, o surrealismo e o existencialismo, os happenings de Tadeusz Kantor, o teatro e o cinema, ou a narrativa fragmentada de Satyricon (1969) de Federico Fellini, El topo e La montaña sagrada desenham um cinema alucinado e alucinatório, susceptível de operar mudanças no estado de consciência do espectador e reproduzir imagens que o cineasta quer equiparar àquelas provocadas pelo consumo de alucinogénios. Numa das mais inventivas sequências de La montaña sagrada, a conquista do México é reconstituída num teatro de rua, utilizando iguanas e sapos (simbolicamente, a nobreza e a cobiça) no papel dos povos nativos e dos conquistadores, evidenciando, mais uma vez, os contornos sangrentos da História do México, na sua relação com a colonização.
Partilhando preocupações artísticas, Juan López Moctezuma entrou em contacto com Alejandro Jodorowsky, tornando-se produtor de Fando y Lis e El topo, numa época em que o hardcore ameaçava aproximar-se do mainstream, através do sucesso internacional de Behind the Green Door (Por Detrás da Porta Verde – O Filme, 1972) de Artie Mitchell e Jim Mitchell, Deep Throat (Garganta Funda, 1972) de Gerard Damiano e The Devil in Miss Jones (O Diabo em Miss Jones, 1973) de Gerard Damiano, lançando as mega-estrelas Linda Lovelace e Marilyn Chambers. Impelido pelo abrandamento da censura, o cinema de terror torna-se arrojado no tratamento do erotismo e desinibido na quebra de tabus, de modo a concorrer com a ousadia explicita do hardcore. Neste sentido, Juan López Moctezuma realiza as primeiras longas-metragens, filmadas em inglês e alinhando-as com as tendenciais do mercado internacional: The Mansion of Madness (1973), Mary, Mary, Bloody Mary (1975) e Alucarda, la hija de las tinieblas (1977). É um suspiro animador que não consegue resgatar da morte a época de ouro do cinema de terror mexicano.
No caso do Brasil, como nota Tiago Monteiro, “foi a estética da fome, de matriz neo-realista e materializada no período do Cinema Novo que projectou e legitimou uma imagem cinematográfica brasileira no exterior. Isso acabou por lançar à sombra inúmeras incursões feitas no âmbito do cinema popular e de género […]. Cabe à longa-metragem [À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) de José Mojica Marins] que introduziu o personagem do amoral coveiro Zé do Caixão no imaginário nacional e mundial o título de primeiro filme brasileiro a efectivamente assumir a gramática do género, sem disfarçá-la sob o véu da comédia ou do melodrama, como fizeram algumas produções da década de 50 […]. A década de 1970 configura-se como uma das épocas mais férteis nos termos das incursões do cinema brasileiro pelas veredas do horror. Parte expressiva desta produção possui raízes numa região do centro da cidade de São Paulo, sobretudo no quadrilátero delimitado pelas ruas da Vitória e do Triunfo, conhecida como Boca do Lixo […].
Segundo o investigador brasileiro, “na Boca do Lixo criminosos arraia-miúda, profissionais do sexo e poetas de sarjeta conviviam de forma harmónica com o pessoal do cinema, igualmente heterogéneo em sua constituição. […] Resultaram aproximadamente mil filmes, produzidos entre as décadas de 60 e 80, que transitavam entre a comédia de costumes e o thriller policial, entre o musical sertanejo e o western feijoada, e nos quais a presença do elemento erótico era uma constante, independendo do gênero em questão.” Jean Garrett (natural da Ilha das Flores, Açores), Rafaelle Rossi, Claudio Cunha, Antônio Meliande e David Cardoso são alguns dos cineastas que se destacam, juntamente com as starlets Helena Ramos, Aldine Muller, Nicole Puzzi, Zilda Mayo e Angelina Muniz.
A industria cinematográfica argentina é uma das mais pujantes da América Latina, tendo como rivais o Brasil e o México. Apesar de o cinematógrafo dos irmãos Lumière ter chegado à Argentina bastante cedo, em 1896, apenas um ano depois da sua apresentação em Paris, e de as primeiras experiências na realização de filmes datarem de 1897, La Bandera argentina de Eugene Py, o primeiro filme de terror produzido no país, Una luz en la ventana de Manuel Romero, surge tardiamente, em 1942, cerca de vinte anos depois de a Universal iniciar a exploração dos seus populares filmes de monstros. Se o começo de Una luz en la ventana se inspira claramente na comédia gótica de The Old Dark House (A Velha Casa Sombria, 1932) de James Whale, rapidamente se transfigura num formato do género “cientista louco”, neste caso interpretado pelo mítico Narciso Ibáñez Menta, actor de origem espanhola, nacionalizado argentino. Fascinado pelo universo dos adereços e da maquilhagem, o actor inspirou-se no trabalho de Lon Chaney, que chegou a conhecer pessoalmente.
Na década de 1950, Ibáñez Menta demonstra o seu talento em séries televisivas, como El fantasma de la ópera – nos Estados Unidos, igualmente celebrizado por Lon Chaney, em The Phantom of the Opera (O Fantasma da Ópera, 1925) de Rupert Julian – sobre a qual se conta que, durante a sua transmissão, as ruas de Buenos Aires ficavam desertas. Na antologia Obras maestras del terror (1960) de Enrique Carreras, interpreta três personagens diferentes, uma para cada capitulo, inspirado na obra de Edgar Allan Poe. Numa das histórias participa o seu filho, Narciso Ibáñez Serrador, que mais tarde se tornaria num célebre realizador de cinema de terror espanhol, responsável pelos clássicos La residencia (Internato de Raparigas, 1970) e ¿Quién puede matar a un niño? (Os Revoltados do Ano 2000, 1976). Regressado a Espanha, Narciso Ibáñez Menta haveria de protagonizar outra peça central da sua filmografia: La saga de los Drácula (1974) dirigida pelo argentino León Klimovsky.
Ainda, ao longo desta década, na produção argentina destacam-se outras obras: El vampiro negro (1953) de Román Viñoly Barreto, versão de M (Matou, 1931) de Fritz Lang, elaborado jogo de luz em que o permanente encadeado entre as cenas, ao contrário de circunscrever o mal, sugere a sua propagação por todas as esferas da sociedade; Si Muero Antes de Despertar (1952) de Carlos Hugo Christensen, exploração onírica do mito do folclore infantil hispânico do “hombre del saco”, figura que ao cair da noite recolhe as crianças que não regressam atempadamente a casa, a partir de uma oração repetida pelas crianças, que lembra a canção de embalar One, Two, Freddy’s Coming For You, popularizada pelos filmes de Freddy Krueger; e El extraño caso del hombre y la bestia (1951) de Mario Soffici, versão de Dr. Jekyll and Mr. Hyde com eficazes efeitos especiais.
Nos anos seguintes, o erotismo invade o cinema popular, de modo cada vez mais ousado. Entre as maiores estrelas do cinema erótico argentino destacam-se Isabel Sarli e Libertad Leblanc. O produtor e realizador Armando Bo juntou-se a uma antiga Miss Argentina e criou a primeira estrela erótica argentina, Isabel Sarli, cuja forma física a poderia integrar no universo de Russ Meyer. De educação católica, Sarli resistiu a expor-se nua. Quando as cenas de sexo envolviam outro actor, insistia que fossem as mãos do amante, Armando Bo, que tocassem no seu corpo. O resultado desta parceria é bem representada pelo filme Carne (1968). Seguindo um formato semelhante a Le sang des bêtes (1949) de Georges Franju, utiliza uma paleta de cores vivas para opor a pacatez dos ambientes campestres dos subúrbios à brutalidade de um matadouro. A sua aparente reflexividade torna-o num dos filmes mais curiosos do cinema erótico argentino. Claramente, é um veículo para a estrela sexual de Bo, que, parecendo consciente da sua condição, filma o seu corpo entre as carcaças imóveis dos animais abatidos.
Enquanto o cinema de terror mexicano, pela proximidade geográfica e a pensar no atractivo mercado latino dos Estados Unidos, demonstra uma forte influência do modelo da Universal, no caso do Brasil isso não é tão claro, antes apostando num erotismo mais explícito. A história do cinema de género argentino sugere uma intersecção entre os casos mexicano e brasileiro. Não renega a herança norte-americana, mas aplica um tratamento erótico ousado. Emilio Vieyra é um dos realizadores argentinos que melhor faz esse cruzamento entre cinema de terror e erótico, nomeadamente em Sangre de vírgenes (1967). Entre diferentes polos, representa, por um lado, a gravidade de um amor maldito entre vampiros e, por outro, a promessa de liberdade oferecida pela contracultura hippie. Embora, como em Vampyros Lesbos, que Jess Franco realizaria anos depois, em 1971, os tradicionais vampiros sejam substituídos por aves marítimas, o seu pesado negrume não poderia estar mais distante dos ambientes solares oferecidos pelo cineasta espanhol. Neste caso, o céu em que as gaivotas voam é tintado por vermelho-sangue.