Anna Biller é uma realizadora cujos filmes já andavam a fazer o circuito internacional de festivais, e que agora se mostra pela primeira vez aos espectadores portugueses com a estreia comercial do seu mais recente The Love Witch (A Feiticeira do Amor, 2016). Uma carreira, com várias curtas-metragens e apenas duas longas, mas que apresenta um grau de coerência estética e temática raro, para a sua juventude. O seu cinema faz-se sempre em perspectiva com a história do cinema, trabalhando a ideia de género tanto cinematográfico como identitário. Os seus filmes são subversivas apropriações dos lugares comuns do cinema – do terror, do filme erótico, do musical… – vertidas segundo uma visão feminista, cheia de humor e ironia. A seguinte entrevista – realizada via telefone – versou também sobre a relação da realizadora com as artes plásticas, nomeadamente a pintura e a performance, áreas que o seu cinema explora amiúde. Anna Biller, que escreve, realiza, produz, actua, veste e decora a maioria dos seus filmes, é uma artista total que urge conhecer.
Entrevista realizada graças à colaboração com o distribuidor, Cinema Bold. O filme é exibido no dia 29 Outubro em cinco sessões únicas em algumas das capitais de concelho do país, e será editado a 2 de Novembro em DVD, VOD e em streaming na plataforma Filmin.
Depois de completar estudos em arte na University of California, Los Angeles (UCLA), estudou arte e filme na CalArts, uma instituição vocacionada para as artes visuais e performativas, fundada por Walt Disney, mas conhecida por ter entre os seus professores e alunos, figuras proeminentes da arte contemporânea como John Baldessari, Mike Kelley, Paul McCarthy, Allan Kaprow ou Barbara Kruger. De que forma a formação académica influenciou os seus futuros filmes?
É certo que a minha formação base é essencialmente em arte. A maioria dos meus filmes parte da vontade de compor um bom enquadramento da mesma forma que faria numa pintura. Tentei criar a ilusão de profundidade na minha pintura, o que era difícil porque vivia influenciada pelo fauvismo e pela pintura medieval italiana, conseguindo apenas formas planas. Isto interessava-me mais que a pintura ilusionista. Não conseguia criar volume, pelo que retornava à sua forma plana. Apesar de trabalhar com grandes blocos de cor, queria obter essa ideia de profundidade. Quando comecei a trabalhar em suporte de filme, essa ideia manteve-se. A minha obsessão era compor planos de grandes blocos de cor, mas criar profundidade através da luz, ou seja, procurava criar composições, em que através de lentes obtivesse essa profundidade. Finalmente, parece-me que consegui obter as imagens que queria alcançar com aquele tipo de pintura. É desta forma que faço filmes, como uma série de imagens com uma história, pensando no modo como, repentinamente, o espaço se transforma: em amarelo, azul ou a três cores. Depois de escrever uma história, volto atrás e tento descobrir as cores que encontrarei, organizando um argumento diferente, desta vez feito de cores.
Teve algum professor na CalArts que possa destacar como influência para o seu trabalho futuro?
O meu pai é pintor [Les Biller] e estava interessado no tipo de pintura em que comecei a trabalhar. Talvez, ele tenha sido a minha maior influência. Mas também a minha mãe [Sumiko], que é designer de moda. Os filmes glamorosos dos anos 30 e 40 serviram de inspiração e motivação para o seu trabalho em moda. Enquanto a acompanhava na costura, assistíamos a esses filmes, onde cresceu a minha obsessão pelo cinema clássico. Parece-me que, através do meu pai, interessei-me pela cor e, da minha mãe, veio o interesse pelo cinema clássico.
Nos seus filmes, os figurinos e os adereços são desenhados por si. Começou a pensar nisso quando acompanhava o trabalho da sua mãe?
Com ambos os pais. Enquanto crescíamos, éramos muito pobres, mas nunca nos faltou nada, porque eles mesmos produziam tudo. Como a minha mãe não tinha dinheiro para comprar vestidos bonitos, então ela mesma os confeccionava. O mesmo acontecia com o meu pai. Como se fosse magia, se queríamos alguma coisa, bastava produzi-la. Relativamente aos meus filmes, pensei que mesmo não tendo financiamento para os realizar, poderia produzir tudo e depois rodar. Enquanto muitas pessoas aguardam à espera de financiamento, eu passo o tempo a fazer coisas. Assim, não é preciso tanto dinheiro, porque muito do trabalho já está feito.
Desde 1994, com Three Examples of Myself as Queen, realizou duas longas e quatro curtas-metragens, algumas espaçadas no tempo. Foi uma opção sua ou condicionamento por questões de financiamento?
Considero a minha actuação como se fizesse parte de uma performance de arte.
Obter financiamento suficiente para filmes com tantos elementos visuais foi sempre um problema, pelo que nunca os poderia realizar se eu mesma não fizesse grande parte do trabalho. É realmente difícil conseguir um bom orçamento de pré-produção, porque facilmente pode ser duplicado. Nunca consegui o financiamento adequado. Para o meu próximo filme, espero conseguir um orçamento maior do que o de The Love Witch (A Feiticeira do Amor, 2016), sem passar tantos anos na preparação. Apesar de perder controlo criativo e ter de trabalhar com outro tipo de actores, parece-me que estou preparada para esse passo. No entanto, estou consciente do risco que corro, ao trabalhar segundo este modelo com outros meios de produção, de os meus filmes serem parecidos com tantos outros…
Um dilema…
Pode ser óptimo, mas realmente depende. Simplesmente, não gosto de me apressar. Neste momento, tenho um argumento para o próximo filme, estou à procura de financiamento, enquanto pinto e continuo a trabalhar nele. Quando obtiver o financiamento e começar a rodar, espero que grande parte do trabalho planeado venha a ser concretizado. Mesmo que trabalhe com um designer de produção que execute tudo o que planeei e em que estou a trabalhar agora, já poderei produzir outro guião apenas constituído pelas indicações artísticas. A diferença será que, esperançadamente, não tenha que repetir todos os pontos de costura [risos].
Ao contrário dos seus anteriores filmes, em The Love Witch já não representa o principal ou um dos principais papéis. Samantha Robinson é a actriz principal. O que instigou esta mudança?
Tenho de confessar que não gosto de representar. Considero a minha actuação como se fizesse parte de uma performance de arte. Não é que não seja gratificante, mas descobri que odeio realizar quando não posso olhar para o monitor. Na minha primeira longa-metragem, Viva (2007), quase que não houve movimentos de câmara, porque não os podia monitorizar, o que me fazia sentir limitada. Quando estou dispersa por tantas tarefas é difícil concentrar-me na representação, pelo que me parece que ela sofre. Entre as múltiplas tarefas que desempenhava nos filmes, a representação foi a primeira que considerei largar.
Pensando na componente visual, em The Love Witch tudo parece perfeito, como uma perturbante cópia ideal. Já não sentimos que os actores usam peruca como em Viva.
Obviamente que, quanto mais nos concentrarmos na realização, melhor o resultado. Por outro lado, o director de fotografia tinha uma ideia muito clara do que eu pretendia, o que ajudou bastante. Pude trabalhar com a actriz principal até conseguir uma representação perfeita. É verdadeiramente importante ter um realizador que possa olhar por nós, enquanto actores. Quando tenho de representar, como não tenho outro par de olhos, isso não acontece. Por mais qualificada que possa ser, é difícil manter a objectividade sobre o meu desempenho. O melhor que fazia, quando representava e não tinha outro realizador, era tentar sentir no momento e esperar que parecesse credível. Com os outros actores, posso observá-los e dirigi-los, não tanto para alcançar um desempenho autêntico, mas preciso. Não me dirigia para ser muito precisa porque receava parecer falsa. Então, apenas procurava ser real e sentir como se fosse real. Às vezes funcionava, outras não o sentia. Não me parece que representação tenha a ver com sentimento, mas antes com apresentação. Se for apenas uma parte de nós que consegue sentir e é assim que lá chegamos, então óptimo. Senão, temos de encontrar outra forma de conseguir um bom desempenho. Trata-se de uma técnica que sei utilizar nos outros mas não em mim.
Já conhecia Samantha Robinson, a actriz principal de The Love Witch, ou utilizou um processo de casting?
Na verdade, tive quatro intensos dias de castings em que falei com, pelo menos, cem actrizes. Estive com Samantha Robinson no segundo dia e não fiquei convencida. Quando a conheci, não senti que tivesse encontrado a minha “feiticeira do amor”. Tive de esperar e ver outra vez todas as candidatas. Foi apenas nesta segunda vez, que comecei a interessar-me por ela…
Parece perfeita para o papel…
Sim, mas é devido à representação. Apesar de, inicialmente, não o parecer, ela assumiu o lado performativo. Quanto a mim, na audição, nenhuma das actrizes entendeu o que eu procurava, pelo que foi tão difícil o processo de casting. Tinha de confiar que, quem escolhesse para transformar na “feiticeira do amor”, seria a pessoa certa: séria sobre o acto de representar e interessada em colaborar, não apenas interessada no que consistia o seu trabalho habitual. O que requer uma parte de sinceridade e outra de artifício, algo difícil de conciliar.
O seu trabalho é apresentado como “feminismo narcisista”. Pode comentar? Sente-se próxima dos estudos de género?
As referências fazem parte da criação artística. Os filmes clássicos servem de referência para os novos filmes.
Sim, sinto e penso que é correcto dizer que, nos meus filmes, eu procure lançar um olhar feminista e narcisista. Parece óbvio que, quando uma mulher olha para outra mulher num filme, não está a olhar para aquela mulher do mesmo modo que um homem a olharia. Alguns estudos foram tão mediatizados, que esta ideia se transformou em senso comum [risos]. Não é preciso entrar em densas teorias de género para perceber que, nos meus filmes, é esse o caso. Mas, parece-me mal interpretado. Hoje em dia, quando se tenta criar uma mulher bela e glamorosa, isso é mal interpretado. As pessoas pensam que apenas se faz isso para agradar ao homem. E porque o faria? Na verdade, nem sei como o faria, por não saber do que um homem realmente gosta. Tudo isto me parece estranho. Trabalho a partir da sinceridade, autenticidade e daquilo que gosto de ver no ecrã. Penso que, por vivermos numa cultura em que não confiamos no feminino enquanto valor, temos de nos treinar para regressar ao senso comum, regressando à ideia natural em que uma mulher admira outra mulher, amando como ela se parece e querendo se parecer com ela. Para mim, era mais fácil fazer isso do que seria para outras mulheres, porque cresci a observar essas rainhas do glamour. Nesses filmes, é muito natural que as mulheres adorem olhar-se. Vi a minha mãe fazer isso, como eu, e nunca o vi filtrado através do que um homem pensa.
Trabalhando a partir de filmes de género e de convenções, o que diferencia o seu trabalho da paródia ou do pastiche?
Acho que muita gente confunde paródia e sátira. Admito que os meus filmes são sátira social. Por exemplo, considero que seja satírica a imagem de uma mulher que quer encontrar o verdadeiro amor, enquanto os amantes morrem [como em The Love Witch]. A paródia acontece quando se brinca com uma convenção. Digamos que, quando dizem que faço paródia, querem dar a entender que brinco com a forma como os filmes eram filmados nos anos 60. Na verdade, não compreendo isso, porque quanto mais aprendo sobre o meu oficio, mais melhoro o storyboard ou consigo melhores planos. Assim, também o filme parecerá mais de época, mais antigo e mais parecido com os que amo. Apenas tento criar bons filmes. Se alguém os vê como pastiche, não tenho mais a acrescentar. Apenas copiar ou brincar com algo, está longe das minhas intenções. Quando escrevo, por vezes, estabeleço ligações com o cinema clássico, mas não com o propósito de criar uma paródia ou uma homenagem. As referências fazem parte da criação artística. Os filmes clássicos servem de referência para os novos filmes. Se realizamos um filme, inspiramo-nos noutros filmes. Há tantos filmes para ver, que não vejo os mais recentes por não gostar deles. Não tenho consciência de que esteja a copiar um filme antigo. Para mim, é o processo natural de criação em cinema.
Na primeira cena de The Love Witch, observando Samantha Robinson a conduzir o carro, lembrei-me de Julie Harris em The Haunting (A Casa Maldita, 1963) de Robert Wise.
Vi esse filme há muitos anos, gostei, mas não me lembro bem dele. Se quisermos procurar um filme especifico em que pensava, seria Psycho (1960) de Alfred Hitchcock: na cena em que Janet Leigh foge no carro, com o dinheiro roubado que tem na carteira, olhando culpada para o espelho retrovisor.
Lembrei-me de Julie Harris porque, tal como Samantha Robinson, também fala sobre vontade de mudança na sua vida. Em The Love Witch, minutos depois, Samantha Robinson volta a referir essa vontade.
Esse diálogo aconteceu a partir das minhas notas para a personagem. A voice over não fazia parte do argumento original. Acrescentei-a na montagem. Senti que os sentimentos mais íntimos da personagem não estavam devidamente representados, porque a actriz não é muito expressiva e os seus amantes dominam os diálogos. Tinha uma descrição tão complexa da personagem, mas parecia-me que não era suficientemente mostrada. Então, escrevi algumas linhas e espalhei-as pelo filme como pensamentos da personagem para o espectador ter uma melhor visão dela.
Começámos por falar em arte. Qual é o papel que atribui à arte? Acha que a arte pode mudar o mundo?
Sinto-me próxima de muitos cineastas da época clássica, de todas as partes do mundo.
A arte faz parte da cultura pelo que, definitivamente, pode. A cultura molda a forma como somos, o que pensamos de nós próprios e do mundo em que vivemos. Desde há muito, que a indústria cinematográfica não tem a ver com criação artística, o que é deprimente. É como se as pessoas já não lessem livros ou visitassem museus. Obtêm tudo na internet e os filmes são consumidos como junk food. Penso que me teria suicidado se não fosse o cinema clássico e os muitos livros que li. Não teria sobrevivido porque viveria num mundo vazio, sem tudo aquilo que salvou a minha vida. Não consigo imaginar os jovens de hoje, sem livros, cultura ou bons filmes. Realmente, não vejo como se sustentam espiritual ou culturalmente. A minha missão é tentar fazer filmes que os jovens possam ver e elaborar uma ideia diferente das possibilidades que existem no mundo. Não apenas no campo das ideias, mas também em termos de formas que possam ser realizáveis. Actualmente, os filmes não são produzidos com tempo e atenção ao detalhe. Apesar de, alguém como Luis Buñuel ter filmado Belle de jour (A Bela de Dia, 1967) em pouco mais de duas semanas, o que não consigo compreender pois a qualidade de produção é tão elevada, que toda a equipa teria de estar ao mesmo nível: actores, técnicos, argumentistas e, claro, realização. Quando o nível é tão elevado, em tão curto espaço de tempo, fico chocada. Actualmente, produzem-se apressadamente filmes sem se tentar perceber as ideias que estão por trás. Luis Buñuel pode parecer uma excepção porque é um grande realizador mas, até mesmo no caso de filmes considerados medíocres, são geralmente bons. Podem ter uma boa direcção de fotografia, mas também exibem um certo humanismo no modo como olham para as pessoas, por meio de um belo acto de criação.
Costuma acompanhar a actualidade cinematográfica? Sente proximidade com alguma cinematografia ou algum cineasta?
Sinto-me próxima de muitos cineastas da época clássica, de todas as partes do mundo. Se eu disser nomes, percebe-se que são os melhores, mas também os óbvios, aqueles que todos amam, como Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman, Howard Hawks ou Josef von Sternberg. Poderia estar dias a listar nomes. Em termos de cineastas contemporâneos, destacaria Guy Maddin e Matthew Barney, artistas que criam filmes como eu, e Catherine Breillat, feminista com um trabalho conceptualmente rigoroso que aprecio. Lembro-me também de The Neon Demon (O Demónio de Néon, 2016) de Nicolas Winding Refn, que tem em comum com outros grandes filmes, a mistura de fantasia com realidade, questionando o que é o sonho e o real, mas também lidando com a feminilidade de uma forma que me interessa, nomeadamente a nível de competição, fornecendo verdadeiro material para o “mundo das raparigas”.
Para terminar, pode adiantar algo sobre os seus novos projectos?
O meu próximo projecto é inspirado nos filmes noir, principalmente dos anos 40 e 50, em que homens manipulam psicologicamente mulheres para testar a sua sanidade mental [gaslighting], tornando-se assassinos. Ou em que mulheres descobrem que estão casadas com assassinos. Falo de filmes como Gaslight (Meia Luz, 1944) de George Cukor, Sudden Fear (Medo Súbito, 1952) de David Miller, mas também de Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo,1968) de Roman Polanski. Também me agradam os filmes de Alfred Hitchcock, Dial M for Murder (Chamada para a Morte, 1954) ou Shadow of a Doubt (Mentira, 1943), em que existe um medo crescente que um homem provoca sobre uma mulher. Espero poder filmar os exteriores em Londres. Dei-me conta que vivo obcecada por estes filmes, que os posso rever vezes sem conta, porque neles existe algo de primitivo em termos da condição da mulher, no modo como abriram caminho para o slasher, sublinhando a ideia da mulher em perigo que é morta e mutilada. Os filmes antigos partiam do ponto de vista da mulher, sem a ideia de morte ou mutilação. O meu projecto parte de um thriller com um homem perigoso, mas na forma de um “filme de mulheres”. É esta ideia que me interessa explorar.