A pouco menos de uma semana do começar mais uma edição do Doclisboa, as mãozinhas dos walshianos Carlos Alberto Carrilho, Carlos Natálio, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa juntaram-se para um abraço cinéfilo colectivo em torno do muito que há para ver nesta edição do festival. Siga connosco este percurso pelos seus principais destaques e vá-se preparando, física e mentalmente, para o que aí vem.
Qualquer proposta de programação funciona como itinerário. No caso de um festival internacional de documentário este pode ter muitas dimensões, por isso resolvo escolher para apresentar a secção um imaginário percurso geográfico em que cada espaço nos convida a pensar e sentir uma dada realidade. Começamos em Portugal e com duas co-produções portuguesas. A primeira, a estreia no formato longo de Filipa César, com Speel Reel, leva-nos à Guiné Bissau e ao passado-presente que se articula a partir um trabalho evocativo com o arquivo audiovisual do país, no período entre 1976-1980. A outra proposta é Milla, uma coprodução com a Terratreme Filmes, vencedora do prémio especial do júri no último festival de Locarno, e realizada por Valérie Massadian. Trata-se de um documentário ficcional, um amor adolescente numa pequena cidade junto do canal da Mancha. Não muito longe, chegamos a selva de Calais, onde Nicolas Klotz, Elisabeth Perceval filmaram L’héroïque lande – La frontière brûle, obra de grande fôlego sobre o tumultuoso processo de desmantelamento de parte da cidade, o que poderia ser, como se escreve, um episódio ignorado da “Odisseia” de Homero. Ainda do norte de França (e sudeste de Inglaterra) podemos ver People Pebble da dupla Jivko Darakchiev e Perrine Gamot, um trabalho sobre a matéria, a sua relação com o homem e a “matéria audiovisual” de premeio. Não nos podemos despedir de França sem mencionar a tentativa de Juliette Achard passar um tempo com o irmão, em Saule Marceau, no difícil processo de montar um negócio rural numa vila dos subúrbios de Paris.
Um saltinho até à Suiça de onde vem Mirador, fascinante curta de Lucia Martinez sobre os lugares de pertença e de observação de um jovem que sai de uma casa de acolhimento. Pausa nas geografias stricto sensu para entrar na geografia afectiva que liga algumas outras obras em competição. Três delas curtas. Em Horta, Pilar Palomero retoma um retrato interrompido do sítio onde cresceu em Espanha, após uma importante perda. A belga Fairuz Ghammam, escreve uma carta em árabe e vai lê-la à sua avó, residente na Tunísia (Oumoun), e Manel Raga Raga recorda o avô Manel em Manel lives in Sarajevo. Por fim, Chjami è rispondi é um duelo ao sol do realizador Axel Salvatori-Sinz que vai até à Corsega confrontar o pai que não vê há dez anos. Continuemos a viagem através de dois ensaios documentais sobre a criação e suas dificuldades. O título é auto-explicativo, Why is Difficult to make Films in Kurdistan, mas o filme da jovem Ebrû Avci é-o pouco, é antes uma incrível reflexão sobre o poder da imagem e da condição feminina (fenómenos apartados) no Curdistão. Do cinema à literatura com um registo diarístico de Preferiría no hacerlo de Ileana Dell’Unti, pelo qual o cinema surge como espelho de confronto com o processo da escrita.
Estratégias aparentemente semelhantes seguem o já nosso conhecido Eric Baudelaire (ganhou já por duas vezes o prémio especial do júri do festival: em 2012, com L’anabase de May et Fusako Shigenobu, Masao Adachi et 27 années sans images, e em 2014 com Letters do Max) e a norte-americana Lee Anne Schmitt. No primeiro, Also Known as Jihadi, Baudelaire filma, somente através das paisagens por onde passou, o processo de suposta radicalização de um jovem na sua passagem entre França e a Síria. No segundo, Purge This Land, Schmitt assina um extraordinário trabalho de documentação e evocação, a partir de planos “vazios de acção”, sobre a vida do abolicionista John Brown. Ainda dos Estados-Unidos, concorre End of Life, de John Bruce e Paweł Wojtasik, um tocante registo dos cuidados de cinco pessoas em fim de vida. Saltemos até à América Latina de onde nos chega Interior, de Camila Rodríguez Triana, todo passado entre as paredes de um quarto de uma pensão colombiana, entre os viajantes que chegam e partem. Filmado na cidade do México temos também El Pez, do francês Martin Verdet, descrito como um “conto mexicano contemporâneo”, entre o barulho e o silêncio, entre o real e o sobrenatural. Do Brasil poderemos ver Martírio do cineasta antropólogo Vincent Carelli que, quase trinta anos depois de ter filmado a luta dos índios Guarani-Kaiowá pela restituição das suas terras, regressa agora ao tema testemunhando o agravar da situação.
E termino esta viagem-relâmpago pela competição internacional do Doclisboa com a impossibilidade de viajar. Mais concretamente com o filme grego Tripoli Cancelled do cineasta Naeem Mohaiemen que, baseando-se num episódio real da vida do pai, imagina um homem vivendo há uma década num aeroporto, sem dali poder sair. (C.N.)
A presença portuguesa
Dos 229 filmes que compõem o programa do festival, 44 são portugueses ou feitos no âmbito de co-produções portuguesas. Distribuídos um pouco por todos os recantos do certame, da sessão de abertura à de encerramento – com Ramiro (2017) de Manuel Mozos numa, e o novo filme do realizador de Branco Sai, Preto Fica (2014), uma co-produção com a Terratreme e fotografia de Joana Pimenta, noutra – ao Heart Beat – com o novo filme de Tiago Pereira e DIÁLOGOS ou como o Teatro e a Ópera se encontram para contar a Morte de 16 Carmelitas e falar do Medo (2017) de Catarina Neves, que já conhecíamos pelo enormes títulos e pela ligação entre o palco e o cinema –, passando pelos Riscos – com a última curta-metragem de João Salaviza e o documentário Quem é Bárbara Virgínia? (2017) de Luísa Sequeira, que se faz acompanhar de dois filmes/fragmentos da “primeira” cineasta portuguesa, A Aldeia dos Rapazes e Três Dias sem Deus (ambos de 1946) – pelo Da Terra à Lua – com esse triunvirato chamado Todas as Cartas de Rimbaud (2017) que junta o poeta do título, Maria Filomena Molder e o realizador Edmundo Cordeiro (professor da Lusófona e habitual argumentistas de Jorge Cramez) e a estreia na realização a solo de Anabela Moreira – e ainda, claro, os Verdes Anos que este ano se desmultiplicam em cinco sessões nacionais, com novos trabalhos de realizadores e realizadoras emergentes como Maria Ganem, Pedro Koch, Giuliane Maciel e Flávio Ferreira.
Mas como seria de esperar os mais antecipados filmes nacionais estão na… Competição Internacional. Como já vem sendo habitual nos últimos anos, quase sempre há um filme português que integra a restrita competição internacional do festival. Depois de É na Terra não É na Lua (2011), E Agora? Lembra-me (2013) e Correspondências (2016), este ano o festival tem não um mas dois: Milla, o novo filme da realizadora de Nana (2011), Valérie Massadian, – que estreou no último festival de Locarno, outra co-produção Terratreme – e a primeira longa-metragem da realizadora Filipa César – artista plástica a viver em Berlim –, Spell Reel (2017) que estreou na Berlinale deste ano. Conhecemos Filipa César primeiramente pelo Grande Prémio do Curtas com Mined Soil (2015), e o anterior, Transmission From The Liberated Zones (2016), esteve na competição nacional de curtas do IndieLisboa.
Já na Competição Nacional, e também com um percurso pela vídeo-arte (como César), À Tarde (2017) de Pedro Florêncio – o realizador de Banana Motherf*ucker (2011), sim, eu sei… – que compõe um filme observacional sobre a luz e os gestos do quotidiano. Igualmente entre artes, Catarina Botelho – nomeada para o prémio EDP Novos Artistas – oferece-nos Notas de Campo (2017) que reflecte sobre a situação sócio-económica de Portugal nos últimos anos de austeridade através de uma viagem ao Saara. Se quase todos os filmes da Competição Nacional se apresentam em estreia mundial, António e Catarina (2017) de Cristina Hanes não o faz pelas melhores razões, estreou no festival de Locarno onde arrecadou o Pardino d’oro para melhor curta-metragem internacional. Esta é também uma secção composta por regressos: Diário das Beiras (2017) de Anabela Moreira e João Canijo é uma espécie de sequela de Portugal – Um dia de cada vez (2015), Dom Fradique (2017) é o novo filme da realizadora de Deportado (2012), Nathalie Mansoux, e O Canto do Ossobó (2017) o regresso da realizadora de Bafatá Filme Clube (2013), Silas Tiny . I don’t belong here (2017) é o mais recente filme de Paulo Abreu, director de fotografia e realizador com carreira nas curtas – O Facínora (2012), Varadouro (2013) – e que se estreara na longa com Phil Mendrix (2015) no DocLisboa de há dois anos. Também com carreira nas curtas, e estreante na longa, BARULHO, ECLIPSE (2017) de Ico Costa que assinou Quatro horas descalço (2012), Antero (2014) e, este ano, apresentou Nyo Vweta Nafta (2017) no festival de Roterdão, no IndieLisboa e venceu o Cinéma du Réel. Por fim, Vira Chudnenko, o novo filme de Inês Oliveira – depois das duas longas Cinerama (2010) e Bobô (2013) –, Foretes de Margaux Dauby – aluna do programa de mestrado tríptico, DonNomas, cujo anterior Whisper (2016) estreou no Visions du Réel – e ainda o “primeiro filme” de Diogo Pereira, Espadim (2017). (R.V.L.)
Retrospectiva Věra Chytilová
Em colaboração com a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, o doclisboa’17 apresenta uma retrospectiva dedicada a Věra Chytilová, com curadoria de Boris Nelepo, que em 2015 foi responsável pela mostra da obra completa de Želimir Žilnik. Antes dos estudos de cinema na FAMU (Praga), Věra Chytilová estudou Filosofia e Arquitectura e trabalhou como modelo. A sua postura crítica relativamente ao papel da mulher na sociedade checoslovaca, tanto no filme de graduação, Strop (Ceiling, 1962), como na primeira longa metragem, Pytel blech (A Bag of Fleas, 1962), levou as autoridades a bani-los temporariamente, tendo sido, posteriormente, reunidos num único título, U stropu je pytel blech. Inspirada pelo cinéma verité, utilizou actores não profissionais e improvisação para criar a ilusão de realismo, apesar de não prescindir da ideia de encenação. Os filmes seguintes, O necem jinem (Something Different, 1963), Sedmikrásky (Daisies, 1966) e Ovoce stromu rajských jíme (The Fruit of Paradise, 1969), continuam a observar e questionar a realidade a partir de um olhar feminino inovador e radical, colocando-a no centro da nova vaga de cinema checoslovaco, como a única mulher num mundo de homens: Miloš Forman, Juraj Jakubisko, Jaromil Jireš, Pavel Juráček, Ján Kadár, Oldřich Lipský, Jiří Menzel, Jan Němec, Ivan Passer ou Evald Schorm. Alguns destes, emigraram quando os tanques da União Soviética e de outros parceiros do Pacto de Varsóvia invadiram o país, pondo fim ao curto período da Primavera de Praga e das reformas politicas e sociais. Věra Chytilová manteve-se firme na Checoslováquia, entendendo que a resposta adequada seria fazer filmes, o que não impediu que a obrigassem a estar longos períodos sem realizar. Pela singularidade do olhar, que a coloca entre as maiores realizadoras feministas do seu tempo, e pela extensão da retrospectiva, composta por trinta e três títulos, a mostra anuncia-se como um dos mais apetecíveis momentos cinéfilos do ano, a que regressaremos com mais impressões no final do festival. (C.A.C.)
Retrospectiva Uma Outra América – O Singular Cinema do Quebeque
São mais de três dezenas de filmes vindos da província do Quebeque, Canadá francófono. Até apetece dizer, espreitando os filmes seleccionados: Canadá orgulhosamente francófono. Os filmes aqui trazidos, começando desde logo pelos filmes pioneiros de Michel Brault e Pierre Perrault, lidam com questões ligadas à identidade, à tradição e à língua. É um grupo de filmes que está, portanto, inextricavelmente ligado à história do Quebeque no século XX, nomeadamente ao desejo pela independência do seu povo – algo que pode trazer alguma luz sobre os acontecimentos recentes na Catalunha. São estes filmes as peças – nem sempre devidamente conhecidas – que completam o puzzle da história do cinema directo – filmado com câmaras móveis e com som capturado in loco – no século XX, que têm como “outra metade” os mais celebrados filmes dos americanos Robert Drew, Richard Leacock, Al e David Maysles. Posto isto, estes filmes produzidos no Quebeque são também desafiantes casos de hibridez entre a ficção e o documentário. Les ordres (1974), de Michel Brault, ou Les désoeuvrés (1960), de René Bail (filme raro, há muito retido na Cinemateca de Quebeque por conflito de interesses, que encontra neste Doclisboa uma oportunidade para se mostrar), são apenas dois dos filmes que, como diz José Manuel Costa no texto publicado no programa da Cinemateca, “nascem no documentário”, mas que já são qualquer outra coisa que se deixa infiltrar pela ficção e por um experimentalismo formal menos visto no puro documentário político/etnográfico. Um realizador aqui trazido, Claude Jutra, é outro exemplo de uma carreira dedicada ao cinema de ficção enraizado na realidade.
A directora do festival Cíntia Gil refere, no texto publicado no catálogo do festival, que a programação deste ciclo procurou obedecer a um método “anacrónico”, isto é, a um olhar não linear sobre a história, que busca uma contemporaneidade virtual entre filmes produzidos e exibidos em décadas diferentes. Saltar-se-á de géneros e de anos de uma projecção para outra, ou mesmo, por vezes, na mesma sessão com mais de um filme. Procuram-se ecos entre as obras, um diálogo transhistórico que permitirá entender a riqueza e diversidade de propostas contidas neste vasto grupo de obras. Apesar de ser importante que o espectador se perca nesta programação, estando, para isso, convidado a descobrir filmes que há muito não eram exibidos, sugiro aqui alguns títulos que não deverão, de maneira alguma, fugir à atenção do leitor. Numa lógica simples, progressiva e pedagógica, o espectador não deverá deixar de ver as sessões com obras como Les raquetteurs (1958), curta-metragem documental que lança oficiosamente o movimento no final dos anos 50, Pour la suite du monde (1963), primeira produção documental de longa-metragem rodada pelo par Brault/Perrault, e À tout prendre (1963) de Claude Jutra, (auto-)retrato da juventude na cidade de Montreal. Sobre Jutra, um dos nomes maiores deste movimento, importa notar que ver a sua obra hoje constitui uma raridade no panorama internacional. Os escândalos de pedofilia que postumamente mancharam o bom-nome do realizador azedaram gravosamente a relação da Cinemateca do Quebeque (e o meio em geral do cinema da província) com a memória do seu cinema. Há mais casos destes, oportunidades que não podem ser desperdiçadas. Uma delas é a passagem de filmes de animação do Quebeque, com o intuito – diz José Manuel Costa em texto – de “não isolar” estas obras em capítulo autónomo. Um desses filmes animados é o resultado de uma parceria entre Jutra e o famoso cineasta da animação Norman McLaren: A Chairy Tale (1957), história de uma cadeira que recusa ser sentada que foi nomeada para os Óscares em 1958. É desta inconformidade, diversidade e ousadia que enforma todo este ciclo de grande cinema feito nas fronteiras entre o documentário e a ficção. (L.M.)
Passagens Sharon Lockhart. My Little Loves
Realizadora convidada da secção Riscos no doclisboa’16, Manon de Boer programou uma sessão de filmes em diálogo com a sua última obra, An Experiment in Leisure (2016), belíssima meditação sobre a relação entre lazer e criação, e com a restante programação do festival. Juntamente com The Role of a Lifetime (2003) de Deimantas Narkevičius, Podwórka (2009) de Sharon Lockhart foi outro dos títulos propostos por de Boer para a sessão no Pequeno Auditório da Culturgest. Na edição deste ano, cabe a Sharon Lockhart preencher a secção Passagens com o programa “Sharon Lockhart. Meus Pequenos Amores”, a inaugurar no Museu Colecção Berardo, com curadoria de Pedro Lapa. Como nota a organização do Festival, a secção Passagens considera “a passagem do filme para os museus e a inclusão do documentário na arte contemporânea”, reflectindo sobre a “complexidade que redesenhou a prática do documentário” e, ao mesmo tempo, “questionando categorias e disciplinas dentro das artes visuais”. Estes movimentos não são novos, bastando lembrar como os filmes de Andy Warhol sempre circularam livremente entre a galeria de arte e a sala de cinema, mesmo em Portugal, onde, no distante ano de 1990, a obra do artista teve uma mostra alargada no Museu do Cinema – Cinemateca Portuguesa. Por outro lado, são intersecções que também atestam o compromisso do festival de cinema (e, porque não, do museu) em multiplicar conteúdos e públicos segundo lógicas imputadas pelos mecanismos de apoio financeiro (e de disciplina), secundarizando-se a análise e discussão sobre as realidades que fazem parte dos actuais modelos e instituições. Na edição do ano passado, Terceiro Andar (2016) de Luciana Fina consistia numa vídeo-instalação no Museu Calouste Gulbenkian, em forma de díptico com projecção continua. Posteriormente, em Junho de 2017 foi exibido em sala, no contexto do evento “4.doc | Doclisboa no Cinema Ideal”. Cabe agora à obra de Sharon Lockhart fazer o mesmo percurso, mas em sentido inverso. Podwórka faz a passagem da sala de cinema para o museu, numa exposição que lhe junta fotografia, Rudzienko (2016), a sua obra mais recente, Antoine/Milena (2015) e Mir kumen on (Children must laugh, 1936) de Aleksander Ford, filme institucional dirigido à recolha de fundos para as praticas inovadoras do Vladimir Medem Sanatorium, onde crianças executam as diferentes tarefas de governança, como o cultivo, o tratamento de animais ou a participação em aulas de ciência.
No Pavilhão da Polónia, da presente Bienal de Veneza, Sharon Lockhart apresenta o projecto Mały Przegląd [Little Review], inspirado no trabalho visionário de Janusz Korczak, que procurava dar voz às crianças, afirmando os seus direitos. Fundado por Korczak, entre 1926 e 1939,” Mały Przegląd” [Little Review] foi um suplemento da publicação “Nasz Przegląd” [Our Review], totalmente escrito e editado por crianças de diferentes zonas da Polónia e a elas dirigido, contendo observações sobre política, desporto ou cultura. O trabalho de Lockhart consiste numa instalação que reúne exemplares de “Mały Przegląd” [Little Review] traduzidos, pela primeira vez, para inglês e um conjunto de fotografias, que espelham a colaboração da artista com as jovens do Youth Center for Socio-Therapy de Rudzienko. Depois de anos a trabalhar em torno da perenidade das condições de trabalho sob o capitalismo tardio, em projectos como Exit (2008), Lunch Break (2008) ou Double Tide (2009), também o trabalho anunciado para o Museu Berardo, parte da longa estadia da artista na Polónia e do envolvimento no quotidiano dos jovens que representa através do filme ou da fotografia, tornando-os parte activa do seu trabalho artístico. Podwórka é composto por cinco quadros que retratam pátios dos prédios de Lodz, onde a vida urbana e o mundo adulto parecem estar em vias de extinção, que abrigam crianças envolvidas em jogos intermináveis que parecem querer desafiar as leis da gravidade e a moldura impositiva do plano fixo, não só descodificando a natureza do medium, ao abordar questões de espaço e de tempo, como sublinhando a própria condição infantil enquanto infindável depósito de recursos criativos. (C.A.C.)
Nova secção com os “peixes graúdos” do cinema documental, ou aqueles filmes para o cinéfilo que gosta de jogar pelo seguro. Talvez seja imperativo começar pelo maior dos maiores, Frederick Wiseman, que escolheu filmar a Ex Libris – The New York Public Library. Depois duplo Bing. Não é jogo, são dois filmes novos do cineasta chinês depois de, em 2012 e 2014, ter levado o prémio principal do festival. O primeiro é Ku Qian, do ano passado, sobre o crescimento voraz e as precárias condições de vida no leste da China. Já deste ano é Fang Xiuying , que venceu o Leopardo de Ouro em Locarno: Bing acompanha os últimos dias de uma senhora que sofre de Alzheimer e que se rodeia dos seus familiares antes do fim. Bill Morrison também tem um filme novo, assim como o histórico Claude Lanzmann. O primeiro, Dawson City: Frozen Time, sobre um conjunto de filmes dos anos 10 e 20, perdidos durante meio século e encontrados agora numa piscina subárctica no Canadá, e o segundo, Napalm, acerca de um “brief encounter” entre um francês convidado a ir à Coreia do Norte em 58 e uma enfermeira de Pyongyang.
Nesta secção curiosidade ainda para ver o novo filme sobre culturismo de Denis Côté, Ta peau si lisse, e o follow-up de Laura Poitras sobre as questões do controlo da informação. Depois de Citizenfour, acerca do caso Edward Snowden, é agora a vez de Poitras filmar em Risk, o cativeiro de Julian Assange ao longo de seis anos. Edmundo Cordeiro filma essa fascinante figura da cultura portuguesa que é Maria Filomena Molder em Todas as Cartas de Rimbaud, e João Moreira Salles reflecte em No Intenso Agora, a partir de imagens das revoluções dos anos 60 filmadas na China, em França, Brasil ou Checoslováquia sobre a herança e o presente dessas pessoas que participaram desses movimentos de mudança. Em Le vénérable W. Barbet Schroeder foi ao Myanmar filmar as contradições entre o pacifismo budista e o monge líder do movimento anti-muçulmano, Ashin Wirathu.
Finalmente, é imprescindível destacar – e já pela segunda vez neste texto colectivo (não vem mal ao mundo por isso) – a oportunidade de ver o último filme de Manoel Mozos, Ramiro, que abre o festival. Não pertence à secção mas já que falamos de grande nomes do cinema… não podia haver melhor começo para esta “grande odisseia” prestes a começar. (C.N.)