Talvez dominadas pela lasciva do frame porn, ou simplesmente pela coincidência de um olhar e de uma memória, várias têm sido as equiparações fotogramáticas que Blade Runner 2049 (2017) tem provocado nas retinas da cinefilia popular. O nariz gazeado de Ryan Gosling é posto lado a lado com o de Jack Nicholson em Chinatown (1974). A casa em chamas faz lembrar Offret (O Sacrifício, 1986) de Andrei Tarkovski. A relação do pequeno homem defronte da magnânima figura feminina poderá vir de One from the Heart (Do Fundo do Coração, 1981). Já a silhueta perdida no nevoeiro poderia ser um gag de Chaplin em The Great Dictator (O Grande Ditador, 1940). E mesmo o plano final, na escadaria nevada, parece decalcado da pietà The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos, 1939) do nosso querido Raoul – onde a mulher foi trocada pelo espectro digital de uma A.I. de trazer no bolso.
Mas se estas são as associações livres de olhos cheios de imagens, são-no no sentido exterior, isto é, apontam armas para fora, para o cinema de autor vidrado de respeitabilidade histórica – caucionando o filme através de uma autoridade forçada ao 24.º avo de segundo. Outras associações poder-se-iam fazer no sentido inverso, ou seja, apontando para dentro, para o universo materializado pelo filme de Ridley Scott – e aí a caução do filme ficar-se-á pela aproximação de um conjunto de ícones populares. É, no entanto, exactamente através deste dilema que o filme de Denis Villeneuve se constrói: entre uma exterioridade vistosa e uma interioridade bacoca.
O filme de Denis Villeneuve constrói-se entre uma exterioridade vistosa e uma interioridade bacoca.
Pois veja-se: todo o grande problema teológico de Blade Runner (Blade Runner: Perigo Iminente, 1982) – e refiro o filme, como poderia referir o texto de Philip K. Dick – prende-se com a fixação de uma fronteira (porque cada vez mais ténue) entre o humano e o replicant. Posto doutro modo, procura-se interrogar sobre o que distingue uma “pessoa humana” de uma “pessoa inumana”. Uma vez respondida essa questão, tem-se como corolário que a “pessoa inumana” será banal produto, vítima dos ditames do mercado, convertendo-se em mão-de-obra escrava e facilmente substituível. Uma pergunta semelhante poder-se-á colocar sobre Blade Runner 2049: é um filme ou simplesmente um produto audiovisual? E acrescido a isto, como se ouve a certa altura no filme, não será melhor para o funcionamento de um produto que este não tenha alma? Villeneuve parece querer o melhor dos dois mundos, criar um produto com alma: um blockbuster multimilionário com as pretensões formais e filosóficas do dito cinema sério. O resultado é um filme interminável, massador e, pior que isso, pomposo – a fazer lembrar o pior de Christopher Nolan.
Não me ouvirão, no entanto, menosprezar a abertura da mise en scène na sequência da panelinha ao lume, nem a mirabolante sequência de sexo literalmente transfiguradora, ou mesmo o espectáculo de simulacros holográficos nas ruínas de uma Las Vegas pós-apocalíptica. Do mesmo modo que nenhuma humano desprezará as partes humanas de uma máquina. E é aqui que se prende o cerne do filme de Villeneuve: estamos nós, espectadores, dispostos a contentarmo-nos com as partes, ou desejamos a totalidade? No fundo esse é o problema fundacional da própria ideia do vulgar authorism, como valorizar a inteligência de certos realizadores em filmes-grilhão que só permitem entrevê-la a espaços muito largos? Diria que a disponibilidade para encontrar e valorizar essas excepções calcula-se na exacta proporção do arejamento do filme – será o mesmo verdade para os replicants? Blade Runner 2049 é um objecto bafiento, consequência directa do mercantilismo da nostalgia que assaca e justifica tudo o que são as sequelas, prequelas, remakes, reboots, spin-offs e demais prolongamentos financeiro-cinematográficos.
Se calhar a melhor metáfora que o filme constrói é mesmo a que liga o olho à memória e que se propaga ao longo das quase três horas de duração. No filme de Scott um olho observava o futuro distópico de fogo e ferro logo na abertura, no de Villeneuve esse olho encontra-se fechado, e quando se abra nada nele se reflecte. Um olho que olha o futuro, outro que já nada vê senão a réplica (e a replicant). Tudo aliás se faz à roda dessa ideia de cegueira, que se liga com o apagão digital que terá ocorrido no intervalo entre os dois tomos: o vilão ceguinho, a resistente vesga, a inteligência artificial de olhar negro, o código de barras na retina, o replicant camaleónico e o arquivo fragmentado em forma de berlinde ocular. Villeneuve parece saber que numa empresa desta envergadura quase todo o olhar é mortiço. E explana-o sem pejo, o que é – no mínimo – surpreendente. Ficam-me um par de personagens enigmáticos e Harrison Ford canastrão – como sempre – a desmontar toda a parafernália CGI com a sua analógica (e antológica) fuça rugosa.