Quando nos colocam à frente dos olhos, neste caso no título, palavra à primeira vista tão enigmática ao cinema como é o caso de “metabolismo”, não consigo resistir em procurar nela uma porta de entrada a esta terceira longa-metragem de Corneliu Porumboiu. Consulto dicionários e fico com a sensação que o que define metabolismo (perdoem-me os especialistas) é a ideia de troca ou transformação química que se dá no interior das células a partir de processos de síntese e degradação de nutrientes (não adormeçam já). Para aquilo que aqui me interessa é que essa troca depende de um encontro entre elementos que vêm de um “exterior” e que se processam no “interior” de um organismo. Mise-en-scène?
No primeiros dos não mais de 20 planos deste Când se lasã seara peste Bucuresti sau metabolism (Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo, 2013), a câmara está no banco de trás de um carro no qual viajam o realizador Paul (Bogdan Dumitrache) e uma das suas actrizes, Alina (Diana Avramut). Ele diz-lhe duas coisas: que a quer ver nua, num dos planos que escreveu para o filme, e que precisa da limitação que o suporte da película introduz na dinâmica do cinema. Cada bobine só permite filmar até 11/12 minutos em continuidade e isso é para ele uma forma de ver o mundo que pressupõe a minúcia e a limitação, enquanto que o digital não tem limites. A cena, claro está, andará próxima dessa continuidade, mostrando-nos pela primeira vez como a encenação de Porumboiu vai procurar reflectir-se numa certa proposta de trabalho sobre o cinema.
Esta abordagem, chamemos-lhe maioritariamente cerebral de pensar o cinema, tem um problema. É que Paul, como já se disse, quer ver Alina nua. Seja num dos planos do seu filme – em que esta tem de sair do duche -, seja na vida real, pois que começam a ter um caso. E a partir daqui percebemos que Paul não é um alter-ego perfeito de Porumboiu, ele é antes o realizador que é colocado numa luta entre o seu cérebro e as suas vísceras. Literalmente, são estas que vamos ver no final – as únicas imagens filmadas que vemos num filme sobre como filmar -, uma endoscopia falsa, que o realizador usa como desculpa, para o afastar das rodagens do seu próprio filme. Por outras palavras, é a atracção por Alina que vai contaminando a cerebralidade do metabolismo do filme que Paul queria levar a cabo. Ele próprio o diz que tem de refilmar cenas pois que, aos poucos, ela, secundária, se estava a tornar a personagem principal num filme sobre um tema político. Mas não é político aquilo também o que diz, aos ver as imagens da endoscopia, o médico à produtora do filme (que quer a todo o custo achar, para efeitos de seguro, a úlcera de Paul)? “Quando filmamos pomos as coisas mais interessantes no centro, não na periferia”, diz ele.
Neste sentido Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo é sobre um filme, que vai resvalando para a periferia, fazendo-se esta novo centro. Um pratinho de comida chinesa, confeccionado de acordo com uma minúcia formal, adicionando-se plano a plano, cena a cena, diálogo a diálogo, numa frontalidade e secura nutritivas que quando se vai servir se percebe, se descobre, que foi também o sabor, o conteúdo, o que comandou o acto culinário da mise-en-scène. O melhor exemplo dessa diferença entre a teoria e a prática surge numa cena, lá para meio do filme, em que Paul sai do duche e, no corredor, ao ouvir Alina na sala a falar ao telemóvel com o seu suposto namorado, faz precisamente aquilo que havia censurado à sua actriz na cena anterior como pouco verosímil: entrar no quarto após ter escutado a conversa de terceiros. É aqui que o metabolismo de um filme se percebe não como um domínio absoluto de um interior, controlado pelo detalhe, pela forma, pelo enquadramento, mas como algo que é vulnerável a outros “nutrientes” do exterior. No caso, as relações, os receios, as paixões.
E Porumboiu não pára em todos os aspectos de procurar subverter essa rigidez. A obsessão pelo detalhe na cena pode converter-se em paranóia, o controlo do mais ínfimo pormenor pode colar-se, progressivamente, a uma personalidade dominadora e ciumenta. É isso que sucede com Paul. E, ainda quando falamos da própria forma do filme, a subversão continua. Se à partida poderíamos pensar que o uso de planos longos, com poucos movimentos de câmara, diálogos procedimentais, ausência de sons ambientes – como se estivéssemos a assistir a uma experiência laboratorial – seria uma ilustração da tese inicial do realizador, de um cinema quase maquiavélico posto em cena, o certo é que o uso do formato panorâmico para filmar o interior de carros, de mesas de restaurantes ou de corredores estreitos, deixam perceber a ironia que revela essa escolha purista por uma dada forma.
Num filme que à partida parece querer tapar as frestas por onde entraria o ar fresco dos exteriores – quase todas as cenas se passam em espaços fechados -, parece complicada também a tarefa de deixar abertos os espaços de comunicação e de influência sobre a própria obra de Porumboiu. Além das referências oficiais para o seu cinema – as de Éric Rohmer e de Hong Sang-soo, por exemplo – aqui especificamente poderíamos adicionar o Le mépris (O Desprezo, 1963) de Godard, e o 8½ (Fellini 8½, 1963), um deles aliás já programado neste ciclo e outro que, não o tendo sido, poderia perfeitamente adicionar-se à galeria de obras acerca da reflexão sobre a sétima arte. Mas prolonga-se a dificuldade de ligação também no interior da obra de Porumboiu: como relacionar este Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo, com os filmes que o puseram no mapa do novo cinema romeno, sobretudo A fost sau n-a fost? (12h08 a Este de Bucareste, 2006), mas também Politist, adjectiv (2009)?
As respostas serão múltiplas e nada evidentes. Pela minha parte creio que fará sentido falar de três aspectos principais. Um deles o apreço que Porumboiu tem pelo trabalho a partir da ideia de localidade ou microcosmos. Aqui, a escassez de personagens de Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo – praticamente todo o filme é uma grande e ininterrupta conversa entre Paul e Alina -, assim como o fechamento dos planos e dos espaços, apenas prolongam o ponto de partida local, a cidade de Vaslui, e o fecho sobre o estúdio televisivo, da acção de 12h08 a Este de Bucareste, ou mesmo da forma como o realizador reflecte sobre o poder e a lei em Politist, a partir do caso dado a um detective local. O segundo elo de ligação é o tema da linguagem. Se neste filme não falamos de outra coisa a não ser da forma pela qual se constitui a linguagem do cinema, se mostram e se criam as imagens dele, também em 12h08 há momentos em que a linguagem televisiva do programa de comemoração da revolução romena é questionada; assim como em Politist, a própria reflexão sobre a essência da lei, do consciência e da autoridade segue o trilho da linguagem e da literalidade dos dicionários.
Finalmente, a questão mais englobante, que de certa forma contém as anteriores. Todos os heróis (ou anti-heróis) de Porumboiu desafiam a autoridade em prol de uma noção de liberdade. Quer o fim da ditadura comunista romena do primeiro filme, quer a liberdade moral e de consciência do detective do segundo, implicam um pensamento, ou mais do que isso, uma reacção de liberdade perante um cenário de limitação ou autoridade. Em Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo, Porumboiu transfere esse dilema para o cinema, pois Paul é o “cineasta do método” que a realidade vai, progressivamente, libertar.
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Când se lasã seara peste Bucuresti sau metabolism será exibido na quarta feira (dia 1 de Novembro), às 19h00, no Espaço Nimas, no âmbito do ciclo, organizado pelo À pala de Walsh (que celebra 5 anos de existência) com a Medeia Filmes e Leopardo Filmes, Quem és tu, cinema?. Segue-se à projecção uma conversa com Francisco Valente (realizador e programador) e Vasco Baptista Marques (crítico cinema do jornal Expresso). A moderação fica a cargo do walshiano Carlos Natálio.