Comprimidos cinéfilos do mês que agora passou. Viajamos em repescagens e direitos de resposta. Carlos Natálio complementa Ricardo Vieira Lisboa. Luís Mendonça contraria Carlos Natálio. Carlos Alberto Carrilho visita a distopia de Ballard pelo filme de Ben Wheatley. E tudo o que ficou por analisar aqui no À pala de Walsh.

High-Rise (Arranha-Céus, 2015) de Ben Wheatley
Uma questão que colocámos a propósito da passagem de Free Fire (2016), o último título de Ben Wheatley, pelo IndieLisboa 2017: porque continuarão a crescer os orçamentos dos seus filmes, necessariamente obrigando a concessões artísticas que redundam em modestos resultados comerciais, podendo ser produzidos com um financiamento bastante menor? Entretanto, continua a filmar no Reino Unido, justificando-se com menores custos de produção, mas, na verdade, protegendo-se do agrilhoamento dos estúdios de Hollywood. Até quando? É a questão que importa seguir. Freak Shift (2018), anunciado como “B-Movie dos anos 50 visto pelo prisma de Hill Street Blues e Doom”, tem um orçamento de quinze milhões de libras, comparado com os dez milhões de Free Fire e os oito milhões de High-Rise (Arranha-Céus, 2015). Ainda que a meio da tabela, High-Rise não esconde os valores de produção, tanto na cuidada direcção de arte, como no elenco luxuoso encabeçado por Jeremy Irons, Tom Hiddleston, o ardiloso Loki dos filmes da Marvel, e Elisabeth Moss, a rainha das séries televisivas de prestigio (Mad Men, The Handmaid’s Tale ou Top of the Lake, co-realizada por Jane Campion, cuja segunda temporada teve direito a estreia no programa oficial de Cannes 2017). De resto, os fabulosos naipes de actores são uma das (poucas) seguranças que continuam a oferecer os filmes britânicos.
Adaptação do homónimo romance distópico de J. G. Ballard, High-Rise serviria como óptimo material visual para discussões sobre programas de realojamento social no âmbito da reabilitação urbana conduzida pelas grandes metrópoles. Num arranha-céus de recorte brutalista, expressão moderna do conceito de axis mundi, na sua forma de torre que liga a terra ao céu, diferentes grupos são organizados de acordo com a sua posição na pirâmide social. Ao contrário do modelo praticado na antiguidade romana, em que as classes baixas habitavam os andares superiores, de difícil acessibilidade, neste arranha-céus cabe aos endinheirados e às profissões influentes colocarem-se ao nível do céu. Entre a terra e o céu, situam-se serviços de abastecimento, como o supermercado, ou de lazer, como a piscina e o ginásio. O topo divino é reservado ao arquitecto, o criador deste pequeno mundo em forma de torre, imponente espelho fálico que paradoxalmente contradiz o seu vigor sexual. Sofisticados elevadores espelhados percorrem a pirâmide de poder. As ostensivas separações sociais geram uma violência selvagem, que tanto deve a “Lord of the Flies” (1954) de William Golding como a El ángel exterminador (O Anjo Exterminador, 1962) de Luis Buñuel, questionando condições de habitabilidade e sociabilidade, enquanto utopias modernistas do projecto arquitectónico. Na conquista do céu, mesmo que por meio de um atalho pelo inferno, um Wheatley embriagado pela mise-en-scène narcótica, opta pela estilização da violência, limando o tom glaciar e cru com que, exemplarmente, David Cronenberg trabalhou outro romance de Ballard, em Crash (1996). Ainda não foi desta, mas Ben Wheatley coloca-se a jeito para entrar no clube dos cineastas-decoradores.
Carlos Alberto Carrilho

Coelho Mau (2017) de Carlos Conceição
É o primeiro plano de Coelho Mau e já estamos em viagem. Seguimos uma mota e a câmara passa, de forma elegante, das rodas da viatura e da estrada alcatroada até aos seus dois jovens ocupantes – João Arrais, presença obrigatória do imaginário de Carlos Conceição, e Julia Palha. Ele tem um chapéu de orelhas de coelho, ela uma máscara de oxigénio. Adereços de juventude ou necessidades de idade adulta? O filme, claro, não dará resposta evidente, pois é nesse “entre” que habita. As oposições criativas entre a carne “culpada” e a alma inocente (penso precisamente em Carne de 2010), entre a turbina da juventude e a desaceleração da velhice [o mesmo Arrais e Isabel Ruth em Versailles (2013)], e finalmente, entre o moralismo dos contos de fadas e o fetichismo dos contos de fodas, são tudo terrenos onde Carlos Conceição quer plantar as sementes da sua discórdia cinematográfica.
A atitude não parece ser uma curiosidade por ver o “sangue” que resulta do embate destas realidades tradicionalmente separadas. Trata-se de fazer ver que, como aqui neste seu último filme, não há uma verdadeira separação entre o coelho e o lobo, entre o maravilhoso e o perverso, entre o desejo sexual e o acto de abnegado sacrifício. Por isso é tão importante aquele momento em que a personagem do João, depois de entregar a sua irmã “às feras”, cá em baixo junta à sua casa na árvore, imita um mocho e é do bosque que lhe vem a reposta: um uivo de lobo. Ao contrário do que acontece algumas vezes no formato curto – onde cada plano, pelo seu apuro formal, poderia ser em si mesmo uma curta-metragem – em Coelho Mau as personagens vêem o seu universo expandido pela noite que as habita e que aos seus problemas lhes responde. Estamos assim na arte de tornar o curto-longo, na capacidade de sugerir pelos indícios um mundo mais aberto, onde ao espectador “desamparado” lhe vem, simultaneamente, a inocência demencial de James Stewart e o seu amigo em Harvey (1950), a bizarria cool que foi o filme de Richard Kelly em 2001, Donnie Darko, e claro, o monstro nocturno de látex, de O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues, realizador que é, por cá, o parente mais natural para o seu cinema.
Carlos Natálio

A Fábrica de Nada (2017) de Pedro Pinho et al.
Não me vou esconder. Vou assumir o que sinto. Não vou usar palavras mansas, porque acho que o filme (não estou a falar das pessoas que trabalharam e trabalham nele, mas do filme propriamente) também não as usa. Não as quer. N’A Fábrica de Nada vale o tudo e o nada. O problema da sua heterogeneidade, exaltada – com eloquência, mas excesso de voluntarismo – por parte do meu colega Carlos Natálio, é que quer “comer o bolo e tê-lo”. Quer ser “o filme de esquerda mais lindo deste mundo” e, ao mesmo tempo, produzir um retrato desencantado sobre a impossibilidade de um utopismo de esquerda. Quer dançar e cantar a auto-determinação proletária, contra o patronato vil – retratado com um maniqueísmo pedestre -, mas também quer deixar mais ou menos subentendido que ali, naquele palco, proletários e proletárias dançam e cantam à beira do abismo. O sonho, sim! Querem muito o sonho, mas também nem tanto. Engajar – digo, assumir posições, definir-se, assumir o seu próprio discurso – para um filme militante parece ser too much. O que diria Godard, o que diria Monicelli, o que diria até Petri desta revolução às arrecuas, tão absorvida pelo seu gesto virtuoso de mixage cinematográfica (o ensaio que é musical, que é documentário neo-realista, o operário que é operário e actor que “dança na escuridão”, mas sem Lars von Trier, que isso é bera, “reaça”)?
O pior vem mais ou menos a meio. Um jantar para pôr a retórica em ordem. Não, para desordenar as ideias? Anselm Jappe é mais “papista que o papa” e diz-se insatisfeito com a solução da auto-gestão. Ainda estamos num mercado livre, governado por regras “rígidas” de concorrência. Depois, esgrimem-se ideias. O concurso “a minha esquerda é mais linda que a tua” começa a ganhar terreno. O filme pára para pensar ou para debitar mais uma enxurrada de mensagens, que sonham um sonho que o filme não assume que sonha – mas quanto o sonha! Até se diz produzido em modo de cooperativa, sem autor, ainda que o realizador seja Pedro Pinho. Espera, não é nada, o filme é de todos, o filme é de todos. Digam comigo: “o-f-i-l-m-e-é-d-e-t-o-d-o-s”. Mas é de todos para quem? Para quê? Porquê? Porque é “fixe”, vintage? O marxista barbudo comme il faut – que, a certa altura, diz (brincando?) que não é marxista, claro, que isso era “demasiado óbvio”, demasiado “assumido” – também confere ao filme, a partir do seu interior, uma visão do mundo filtrada por um voyeurismo ideológico repugnante – é repugnante, entenda-se, porque aparece já com nojo de si. Ele é o Minnelli do “musical neo-realista”. Ele é o realizador? O big brother da nossa querida puta sagrada, a melhor esquerda do mundo (como o bolo de chocolate e o CR7)? Não, alto e pára o baile. O filme é de todos, não é de ninguém. Como a fábrica, que ninguém quer assumir, este é um filme de meias coisas, muitas meias coisas, todas meias coisas bem feitas, na linha do que está na moda (um As Mil e uma Noites Volume 4, alguém me disse à saída da sala e com toda a razão). Proletarismo hip condenado a um unanimismo crítico – muito contra-producente, diga-se, face a uma suposta proposta disruptiva de cinema e ideologia, de cinema como ideologia… do nada – absolutamente lamentável.
Luís Mendonça

Sea Sorrow (2017) de Vanessa Redgrave
Às vezes há um maluco que se levanta, entre a plateia, para fazer uma questão que embaraça toda a gente. Rimo-nos, encolhemo-nos com “vergonha alheia”. Mas depois… acontece pensarmos sobre o que o dito maluco tão impertinentemente perguntou ou disse. E, à distância, o maluco começa a ter mais razão que o resto dos intervenientes da plateia. E este maluco disse a certa altura – disse não, gritou, em direcção ao palco – qualquer coisa como: “Vanessa, pára de tentar salvar o mundo, isso só te vai destruir a cabeça”. Vanessa Redgrave estava no palco e muito ela debitou a sua mensagem activista, cuja retórica estava ao nível do filme que estava apenas um patamar acima do nível de um discurso de Miss Mundo. Paz no mundo, fim à guerra e às injustiças. As crianças são o melhor do mundo, precisamos de protegê-las.
O filme dava um bom PowerPoint numa sessão plenária da ONU, mas não passa disto: uma senhora de idade tenta salvar o mundo e esforça-se, esforça-se tanto, tanto. Esforça-se, mas num filme todo ele preguiçoso, com enxertagens de reportagens da Sky News, colagens de talking heads com slogans de grande efeito (efeito e pouco mais), momentos de teatro shakespereano para elevar a qualidade do ar e platitudes ditas por uma avózinha simpática em modo Madre Teresa de Calcutá. O maluco até tinha alguma razão: isto é demasiada areia para a camioneta de Vanessa. Mesmo que ela esteja ali com as melhores intenções do mundo. Contudo, como sabemos, o cinema não filma intenções. E o mundo também não muda com um filme com tão pouco cinema lá dentro.
Luís Mendonça

O Futebol (2015) de Sergio Oksman
Já passou algum tempo desde que vi este belo filme de Sergio Oksman mas tenho bem presente este plano: de um lado, um hospital de São Paulo onde o pai do realizador está internado, do outro – palavras para quê? – é o “charme do paraíso”, um boteco onde se celebra mais um golo do Brasil, na copa que organizavam em 2014. Esta organização, aparentemente estanque, da dor e do êxtase é parte da premissa de O Futebol. Ele é uma docu-ficção que é filha de um filão conhecido no documentarismo, o de procurar através da feitura de um filme, reavivar, reviver, recuperar uma relação familiar moribunda. No caso, o Sergio não via o pai há muitos anos. Emigrado para Espanha, decidiu regressar ao Brasil e ver com o pai todos os jogos do campeonato. Passar um tempo junto, pois nunca houve tempo, e fazer desse tempo uma partilha em filme. E começa a rolar a bola, o desporto-rei está nos ecrãs que não nos mostram os jogos, e nas conversas de automóvel, de bar, no escritório onde o pai Simão trabalha. Oksman não filma o futebol pois este é um jogo de equipa e um dispositivo cinematográfico e emocional para um outro desafio, “jogado” um para um: a recuperação de uma certa intimidade entre um pai e um filho separados.
Se as ruas estão cheias de energia desportiva, depois há a chuva, os espaços aprisionantes do carro, os longos silêncios ou os desvios dolorosas das coisas que não se querem recordar. Não é só o futebol que é um jogo de estratégia. Aos poucos vamos percebendo do contraste entre a festa de todos, e o tempo dolente entre pai e filho, um filme onde as elipses se sentem dolorosas porque irrecuperáveis. O filho está na disposição de tudo fazer para aproveitar o tempo perdido – a sua presença parece o de Nanni Moretti actor, na sua versão mais circunspecta, ou seja, na dos seus “filmes de família” -, já o pai cede um pouco aos caprichos da idade. Mas este jogo de composição entre o ordinário e o extraordinário, entre o documento e a construção ficcional , sofre um forte abalo. Simão morre subitamente durante a rodagem e Oksman não cede à emoção. Antes ficamos com um filme que se vai progressivamente despindo de palavras, que mantém até à última o suspense do “resultado” das suas personagens. Mas o mais extraordinário, a maior lição que a realidade dá após vermos este Futebol, é que as duas metades deste plano que acima vemos se vão unir: morte e derrota humilhante (os tais 7-1 da Alemanha), tudo num só movimento do acaso (uma mise-en-scène verdadeiramente trágica), tudo num só fechar de pano teatral, ficcional.
Carlos Natálio
1 Comentário
[…] vai para o paraíso, 1971) do que, por exemplo, do português A Fábrica de Nada (2017), filme-geringonça, miscelânea de géneros e propostas, ou mesmo de um Ressources Humaines (Recursos Humanos, 1999), […]