Eu sou doido da cabeça, eu faço muita coisa
Olha p’a minha roupa, isto é uma coisa doida
Eu não presto para nada, chorei muita lágrima
Fechado como um animal, amarrado como uma cabra
Eu Não Vou Chorar de Sandro G.
Como definir essa argamassa, bem lassa, que é o cinema português? Como na cidadania, se nasceu em Portugal deverá ser português. Essa é a visão dos programadores do DocLisboa cuja selecção nacional compreende a ideia de “filme português” da forma mais abrangente possível (sendo abrangente também a convivência de estilos, formatos e durações). Ainda assim, se podemos fixar a origem geográfica do filme por uma qualquer forma de filiação a Portugal (seja a nacionalidade, a residência, a co-produção, a rodagem, a ligação afectiva…), fica por fazer a descrição desse largo manancial de títulos. Várias têm sido as propostas de categorização deste universo, e cada uma pecou por querer impor um leitura (ora estética, ora histórica, ora ideológica, ora económica) que pela sua própria existência favorecia a elevação de uns quantos às custas do apagamento doutros tantos.
Assim, olhar o cinema português através das lentes graduadas da poesia é uma opção que está intimamente ligada com a velhinha e cansada oposição entre cinema de autor e cinema comercial. O privilégio da forma, nuns, por oposição ao privilégio da narrativa, noutros. Quem argumenta por esta via – e são muitos, Paulo Rocha, João Mário Grilo, João Botelho, Jorge Silva Melo – procuram no cinema uma continuação de uma certa erudição histórica que as outras artes parecem configurar. Assim fala-se na nação de “poetas e cronistas”, refere-se a escola portuguesa da pintura do Século XV e XVI, citam-se os retratos de Columbano, e trinta por uma linha. Tudo para garantir que o cinema português é tendencialmente assim ou assado, ou melhor, que este só revela o seu potencial originário quando vai ao encontro dessas correntes histórico-místicas do sentir português. Pois bem, defronte da Competição Nacional do DocLisboa 2017 – e doutros tantos filmes que se encontram salpicados pelas adjacentes secções – apraz-me também procurar um veio condutor que ora una, ora distinga os filmes que este ano o comité do festival seleccionou. Não recorrerei no entanto à bengala das belas-artes – essas megeras vaidosas –, antes, apoiar-me-ei em duas palavras operacionais que, na sua simplicidade, me parecem de extrema acuidade na descrição destes 14 filmes que me passaram pela vista: intimidade e (des)enraizamento. Bem, não tão simples assim… né?
Passo a esclarecer. Parece-me haver dois eixos temáticos e formais muito fortes no conjunto de filmes portugueses deste ano. O da intimidade como aquele que se faz da simplicidade de um encontro, de um tempo de espera, de uma proximidade ténue, de uma calma quase ingénua que se traduz no prazer de uma companhia. E aqui vejo filmes como À Tarde (2017) de Pedro Florêncio, António e Catarina (2017) de Cristina Hanes, BARULHO, ECLIPSE (2017) de Ico Costa, Espadim (2017) de Diogo Pereira, Notas de Campo (2017) de Catarina Botelho ou Todas as Cartas de Rimbaud (2017) de Edmundo Cordeiro. Já no âmbito do (des)enraizamento os filmes em causa reflectem directamente sobre os problemas da inscrição histórica e afectiva num espaço. E aqui naturalmente se encontram filmes como O Canto do Ossobó (2017) de Silas Tiny, Dom Fradique (2017) de Nathalie Mansoux, I Don’t Belong Here (2017) de Paulo Abreu, Vira Chudnenko (2017) de Inês Oliveira, Quem é Bárbara Virgínia? (2017) de Luísa Sequeira ou Spell Reel (2017) de Filipa César. E depois há os filmes que têm a qualidade de conseguir combinar estes dois termos operacionais, sendo simultaneamente retratos de grande intimidade e, ao mesmo tempo, reflexões sobre as formas de (des)enraizamento. São eles: Foretes (2017) de Margaux Dauby e Ramiro (2017) de Manuel Mozos.
Começando por estes últimos. O filme de Dauby é uma pequena e fugaz tirada sobre pequenos e, também eles, fugazes momentos. Porque pequenos e fugazes são também os seus protagonistas. Três crianças brincam na floresta – e qual é o jogo? –, a realizadora encontra-as através de uma imagem rugosa, um digital cheio de impurezas (anti-cristalino). Rudeza essa que contrasta directamente com a doçura das travessuras infantis que documenta. O que é belo em Foretes é o modo como a abstracção estilística se encontra com um olhar meio efabulado, meio animista, que se deixa levar por um caminho que não tem outro sentido senão o inquebrável sentido do tempo. Um deixar ir – je suis fleuve – que é próprio da meninice como próprio também é de um certo cinema enamorado com a ideia de pureza (anti-cristalina, claro). E quem diz puro, diz inocente. Um filme que encontra as fundações da idade adulta – porque é exactamente no brincar que se cresce, que se criam raízes – no espaço de uma floresta mágica: tão espaçosa e assustadora, como acolhedora e íntima.
Ramiro participa igualmente desta procura por uma espécie de doçura escondida no interior das pessoas. Embora o método seja totalmente distinto do filme de Dauby. Onde um é áspero e dado à errância, o outro é delicado à exaustão e comprometido com uma linha simples e solene. Isto é, o filme de Mozos enamora-se também com essa ideia de pureza, mas através do apuramento de cada gesto, de cada enquadramento, de cada foco de iluminação, cada peça de guarda-roupa, cada movimento de câmara, cada deixa… É um filme da máxima orquestração dos meios propriamente fílmicos, uma ode à fantasia que só se pode pelo cinema. Fantasia essa que, paradoxalmente, se encontra fortemente agrilhoada à realidade de uma cidade que se gentrifica. Mas este é possivelmente o seu filme menos amargurado com a decadência das coisas, que a encara com uma certa alegria romântica, vendo na putrefacção uma razão de ser e não a desgraça do deixar de ser. Ramiro é um filme que se vê com um sorriso triste nos lábios – de uma ponta à outra. Quem diria que a operação de multiplicação entre as linhas de Mariana Ricardo e Telmo Churro com o olho de Mozos igualaria algo entre Jim Jarmusch e Aki Kaurismäki.
Se Foretes contém em si uma revelação naïve, também é o caso para aqueles que me parecem ser os mais sólidos e surpreendentes filmes da competição portuguesa, À Tarde e António e Catarina. Isto porque são filmes que têm o dom esguio de se mostrarem aos poucos, de nos frustrarem as expectativas, de jogarem com os nossos pre-conceitos de espectadores pseudo-omniscientes. O filme de Pedro Florêncio elabora esse jogo de força com o espectador de um ponto de vista formal, negando uma e outra vez os tempos do cinema tradicional. Quanto tempo dura um plano? Quanto tempo aguenta um certo plano? Florêncio estende(-se n)o tempo do olhar, obrigando-nos a ver segundo esse paradigma de montagem que nos é estranho. Resultado: se nada muda, o olhar procura as pequenas alterações dentro da imobilidade, foca-se num avião que passa a intervalos regulares, é capturado por esse buraco negro chamado televisor, inventa histórias, passados, diálogos que não estão lá, nunca. Esse bicho carpinteiro que nos assola a vista torna-se elemento produtivo num filme que pede emprestado o minimalismo de James Benning. E quando pensamos reconhecer o dispositivo, logo surge a surpresa, o elemento disruptivo, ou depois a sua irrepetibilidade. À Tarde é uma experiência de manipulação dos tempos e dos olhares feita a partir de um nada que se auto-explica no título – essa capacidade, mais do que pasmosa, é altamente lúdica.
António e Catarina está também tomado dessa destreza de mãos que nos faz escorregar facilmente na ideia feita, para depois se rir da nossa figura de espectadores, estatelados no cliché. Passaram cinco minutos e acho que já percebi tudo: um velhote rebarbado “de alfama” com muita lábia encontra-se com uma inocentezinha e muito tímida estudante de erasmus. So very typical. Cristina Hanes vai, depois, pouco a pouco, desfazer esta ideia de forma sistemática, revelando uma relação perversamente simbiótica. É que em António e Catarina ele interpreta um António que sendo ele, não o é totalmente, e ela, a realizadora, interpreta uma Catarina que é também Cristina. Um jogo de espelhos ergue-se, e nós, incautos observadores, ficamos espaventados com o que se segue. Na intimidade de um quarto (de onde nunca saímos) esticam-se as cordas da dependência mútua: ela precisa dele, do seu rosto envelhecido, da sua intimidade, das suas confissões, da sua presença incómoda, da sua personalidade provocadora (eufemismo para o propalado harassment); e ele sabe disso, sabe que ela procura o que há de pior nele, e dá-lho. Só que esse pior é a baba punheteira de um velho porco. Mas nem António é exactamente isso que ela lhe pede, nem ela lhe pede exactamente isso que ele lhe dá. E tudo se complexifica: ele cita Baudelaire e ela desenvolve carinho por ele. Uma densa teia de expectativas entre o que se filma e o que se deixa filmar, e depois, entre o que se mostra no filme e o que se deixa ver para o espectador. António e Catarina venceu o Pardino d’Oro para melhor curta-metragem, em Locarno, e foi mais do que merecido.
Se os quatro anteriores me parecem constituir os mais valiosos títulos da competição nacional, certo é que BARULHO, ECLIPSE é uma experiência de cinema de atracções como raramente se vê. Ico Costa, que este ano já estreou outro filme – a curta Nyo Vweta Nafta (2017) –, realiza a sua primeira longa metragem (fazendo de 2017 um ano em que parece evidenciar-se uma viragem estética no seu trabalho). E à imagem da contenção espacial dos dois títulos anteriores e do seu “minimalismo dramatúrgico”, também este filme se faz num só espaço e se reduz – sem que isso seja redutor – a um conjunto de pessoas tocando, o quinteto de música exploratória Rahu. O que daqui sai é uma experiência sensorial que o título do filme tão bem anuncia (e apropriadamente em maiúsculas): objecto escuro, onde as imagens se eclipsam frequentemente a bem da audição, a qual se vê (se ouve) ferida pelo caos sonoro que a dezena de mãos em palco produz. Dizer que BARULHO, ECLIPSE é um filme-concerto é simplificá-lo. Pelo contrário, o filme de Costa não reproduz necessariamente a experiência do concerto que filma, trabalha sobre ela de formas tão exploratórias como a música do próprio quinteto. Como advertiu o realizador antes da sessão, este é um filme que se assiste melhor de olhos fechados, talvez replicando a boutade de Godard sobre Nouvelle Vague (1990); que sem som seria bom, mas sem imagem seria ainda melhor. Fiz por seguir as indicações e o filme transformou-se numa experiência onírica entre o desperto e o dormente. A espaços pensei nas centelhas de luz que se fixam sob as pálpebras e nas suas reproduções visuais (anti-sonoras) de Stan Brakhage, a outros pensei nessa banda-sonora-confessional-feita-filme chamada Bleu (1993) – e nunca no João César. E nada disso pertence a um mero filme-concerto…
Espadim é, por sua vez, um filme que retrata um conjunto de pescadores com a tónica na dignidade, através de uma espécie de “engrandecimento soviético” dos rostos e dos corpos de quem trabalha. Como o filme de Pedro Florêncio, também aqui se filmam os tempos mortos, e como no de Mozos, parece haver uma desconfiança sobre o sentido decadente das coisas. A rotina torna-se numa experiência agreste: tudo se repete neste filme, cada dia, cada faina, cada prato de comida, cada cerveja, cada programa televisivo. A circularidade daquele dia-a-dia torna-se insuportável e o deleite estético é deixado à porta. Diogo Pereira faz um filme duro sobre homens duros que vivem uma vida dura. Igualmente duro, mas pelo sentido da palavra (por oposição ao primado da imagem, para Pereira), é o filme de Inês Oliveira, que já havia retratado realidades sociais violentas aquando de Bobô (2013), sobre a mutilação genital feminina. Vira Chudnenko parte de um caso verídico de uma morte violenta e constrói um filme sobre o próprio processo de construção – que tem a qualidade de não se perder em discursos meta-cinematográficos, servindo a recorrência para a confirmação da dureza dos acontecimentos. Narração e paisagem são perturbadas por esse dispositivo meta-fílmico em que assistimos à gravação da narração que descreve os acontecimentos da morte: um rosto que nos dá a ler o que as palavras não conseguiam, e que é o único elemento humano numa história sobre o desamparo, a solidão e a impotência.
Inês Oliveira parece procurar na paisagem os vestígios – talvez apenas aurais – dos horrores que por ali se passaram, por isso Vira é também um filme de fantasmas. Como o é, definitivamente, Dom Fradique. Mansoux retrata o homónimo largo tipicamente lisboeta a partir de um olhar igualmente concentrado no espaço (como vários dos filmes anteriores), mas este espaço tem a propriedade de se expandir em variações operáticas dos níveis históricos que nele se evidenciam. Uma primeira abordagem observacional verte-se, pela inclusão de um elemento teatral, numa progressiva reapropriação do pátio pelas imanências do passado lisboeta. Esse processo faz-se em sentido contrário à gentrificação do bairro e ao realojamento dos habitantes locais. Esse gesto, em contra-corrente – que envolve os vizinhos que sempre ali viveram, replicando as brincadeiras de crianças – é o mais bonito do filme, por fazer coexistir as diferentes narrativas históricas de um lugar, onde umas e outras se complementam. É, no entanto, um filme que tem dificuldade em encontrar o tom certo que integre os diferentes registos que convoca. Já Notas de Campo procura também um gesto “anacrónico” – para usar uma palavra que está na baila. Quando a “crise” já supostamente passou, Catarina Botelho descreve o acordar de uma consciência política no auge da austeridade que assolou Portugal nos anos da Troika e do discurso do “não há alternativa”. Um filme de um enorme simplicidade, que cruza na banda de som dois testemunhos inocentemente sinceros sobre esse despertar da indignação, com uma “viagem paisagística” que nos leva do Alentejo ao deserto do Sahara. A simplicidade da forma justifica-se pelo trabalho anterior da realizadora na vídeo-arte, e Notas de Campo poderia ser uma instalação — como À Tarde ou BARULHO, ECLIPSE – se não dependesse tanto dessa progressão lenta do desespero económico. Mas se nos outros dois títulos a simplicidade produzia uma discurso sobre o próprio cinema, aqui parece fechar-se no efeito documental de um tempo – tornando-se por isso, no momento em que o vemos, já “anacrónico”.
Em O Canto do Ossobó parece-me haver igualmente um certo desajuste entre as intenções do criador e o objecto criado. O filme de Silas Tiny surge num momento em que a sociedade portuguesa começa, finalmente, a questionar-se sobre o seu passado colonialista e esclavagista. Questionamento que é também um processo de revisitação histórico, em que se questiona a ideologia que desenhou a linha do descobridor amável, do missionário preocupado, da nação miscigenada. O ciclo da descolonização no Teatro Maria Matos, a manifestação sobre a estátua do Padre António Vieira, o debate sobre o acesso ao ensino superior – e mesmo a proposta de leia sobre a nacionalidade – são sintomas dessa movida social que procura, se não reparar, pelo menos consciencializar para um passado por vezes esquecido, por vezes apagado. Tiny regressa a São Tomé e às roças do cacau para procurar nos espaços em ruínas as evidências da escravatura (real e dissimulada). O processo é simples: identificar as cicatrizes de um povo no trabalho forçado das plantações portuguesas e, depois, verter essa cicatriz num rasgo produtivo, donde possa nascer algo novo. Daí que o filme se concentre nas brincadeiras das crianças (apanhando cacau, nem mais) ou no nascimento de uma cabra que parece só se sentir segura para parir no espaço abandonado de uma roça. Mas se esse é o projecto, O Canto do Ossobó perde-se num dilema interno entre a literalidade dos espaços e da documentação que convoca – há uma qualidade paisagística, quase turística na câmara –, por oposição ao simbolismo mitológico da narração. O tom a-emocional da voice over choca, portanto, com o confesso desejo de viver as experiências de um passado através de testemunhos (quer sejam por meio de entrevista, de material de arquivo familiar, dos próprios lugares), caindo numa visão historiográfica do sofrimento. E se o exercício de articulação entre factos e episódios históricos resulta numa integridade narrativa (as leis da escravatura, os documentos de exportação, a expedição, o eclipse) não me parece que essa linha se articule, de forma orgânica, com o pendor lendário-identitário do ossobó. O filme de Silas Tiny surge assim como um objecto desavindo entre duas tonalidades: a observação que procura revelar subtilmente – pela lentidão – as pistas do passado; e a secura alegórica do discurso que expõe (e dispõe) esse mesmo passado, feito de dor, sofrimento e maldade.
O mais fraco dos filmes da competição é, no entanto, dos mais tocantes: I Don’t Belong Here retrata a vida dos deportados norte-americanos – Deportado (2012) de Nathalie Mansoux é visto a certa altura, filme que retratava a mesma realidade – para os Açores, e o caso particular do projecto cénico que os levou a encontrar no teatro uma forma de propósito nesse desterro florido no meio do oceano. É evidentemente um filme sobre o desenraizamento, patente no cheiro que recebe uma das protagonistas, no desejo que as suas cinzas regressem aos EUA, nas descrições do arquipélago como uma rochosa Alcatraz onde “there is no future”. Mas Paulo Abreu, na eficiência do testemunho, esquece as ideias de cinema, segue os lugares-comuns do documentário televisivo e o melhor é mesmo voltar a ouvir – através de um processo de resignificação – Eu Não Vou Chorar de Sandro G. Esse catártico rap com sotaque estranho que, hoje, me chega já filtrado pela nostalgia da adolescência e pela consciência de uma realidade terrível, aqui tão perto. Essa é, no fundo, a função do filme de Abreu, e é totalmente conseguida.