Percorrer as imagens de filmes dos quatro cantos do planeta – se pusermos naturalmente de parte o lado competitivo, pois nem todas as imagens e sons nascem, crescem e morrem iguais – é percorrer um trajecto uno, que ora aqui vai dando a ver caminhos reconhecíveis, ora ali vai entrando a fundo, garimpando o desconhecido e a irrepetível emoção. É uma viagem pelos quatro cantos do planeta, os quatro limites do enquadramento, em que os campos dão para todos os tipos de campos e os contracampos imaginários deixam ver espaços ainda mais complexos, onde da nossa imaginação vão florescendo memórias, percursos, alternativas. Mas paremos um instante para reflectir: entre as quase duas dezenas de filmes a concurso haverá tema firme no qual possamos assentar uma estaca? Uma âncora temática para nos fazermos à estrada?
Entre os 17 que me passaram pelos olhos há um tema que por eles logo saltita: o território. Mas como se sabe nem todos os territórios são iguais, e nem todos se percorrem da mesma maneira ou com o mesmo objectivo. Assim, penso que não estarei a cometer uma grande imprecisão se agruparmos as obras desta secção em três formas distintas de ver o território. Em primeiro lugar o território no sentido literal. É o caso em L’héroïque lande – La frontière brûle (2017) de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval em que é a Inglaterra o território desejado e a selva de Calais esse não lugar, no qual acampam refugiados que ali afluem um pouco de todo o lado. São os territórios tomados e retomados dos índios guarani kaiowá em Martírio (2017) de Vincent Carelli. Mas são também os territórios desertos, esvaziados: os dos subúrbios franceses como evocação da sombra persecutória sobre o jihadismo, em Also Known as Jihadi (2017) de Eric Baudelaire; a América purgada de Lee Anne Schmitt, evocativa dos horrores da escravatura e do racismo em Purge This Land (2017); ou o aeroporto vazio de Tripoli Cancelled (2017). E apetece fazer esse trajecto de inversos, do espaço mais amplo e vazio do filme de Naeem Mohaiemen, ao espaço mais exíguo e ocupado do quarto de residência que observamos em Interior (2017), de Camila Rodríguez Triana. Curiosamente, apesar das oposições há nestes dois filmes um lado performativo, de construção de um dispositivo um tanto rígido que acaba por secar hipóteses mais interessantes de leitura além das pretendidas que são: no primeiro filme, a reflexão sobre o não espaço do migrante que fica preso entre voos (situação que inspirou o primeiro filme); e, no segundo, os diferentes ocupantes de um pequeno quarto-território poderem espelhar a diversidade da geografia cultural e humana da sociedade colombiana.
Em segundo lugar poderia achar uma outra forma de activar a visão do território: a necessidade de ocupar/definir um dado “território artístico”. É o que acontece com Ebrû Avci em Why is Difficult to make Films in Kurdistan (2017) que tenta, apesar das dificuldades, “ocupar” o cinema e é o que sucede com a literatura, uma prova dos nove para o escritor, com a sua máquina, no seu quarto. Falo de Preferiría no hacerlo (2017) de Ileana Dell’Unti. Estou tentado ainda a juntar a esta segunda forma de ver o território o inteligente filme de Filipa César, Speel Reel (2017). Não se trata aqui tanto de activar um dado território artístico, senão o de utilizar as imagens cinematográficas de arquivo de um povo para reactivar a sua relação com a história recente. Finalmente, o terceiro território, aquele que quase todos conhecemos e muitos desejamos como espaço de abrigo, o território da família. De forma mais ou menos explícita, filmes como Chjami è rispondi (2017) de Axel Salvatori-Sinz, Horta (2017), Pilar Palomero, Saule Marceau (2017) de Juliette Achard, Manel lives in Sarajevo (2017) de Manel Raga Raga, Oumoun (2017) de Fairuz Ghammam e El Moïz Ghammam ou mesmo – e por razões diferentes -, Mirador (2017) de Lucia Martinez, Milla (2017) de Valerian Massasian e End of Life (2017), de John Bruce e Paweł Wojtasik, acabam por encontrar no objecto filme, uma forma de reencontrar, relembrar, restabelecer ou despedir desse território que é a família.
Comecemos então. Rihanna. Ela canta “I find light in the beautiful sea / I choose to be happy / You and I, you and I/ We’re like diamonds in the sky / You’re a shooting star I see / A vision of ecstasy/When you hold me, I’m alive/ We’re like diamonds in the sky”. Estes diamantes no céu pouco brilham. São os refugiados do acampamento ilegal de Calais, no Norte de França, chegaram a ser quase 10.000 e viviam na dita “selva”. A câmara à mão de Nicolas Klotz, ainda antes de cumprir dez minutos das quase 4 horas que tem este L’héroïque lande – La frontière brûle, faz um travelling nocturno – o filme parece uma interminável noite, ao ponto de estranharmos quando passado um par de horas vemos um plano com o verde da vegetação – e mostra o brilho possível dos sinais iluminados e das parcas luzes do interior de mercearias e restaurantes improvisados, entre tendas cobertas de toldos de plástico, fustigadas pelo vento. É uma menina refugiada que canta o Diamonds da cantora americana e não vai ficar só a ressoar o brilho do diamante, mais tarde vamos ouvir falar também de “happiness” – apesar de tudo, felicidade – e do “beautiful sea” que poderá levar à Inglaterra.
Não deixa de ser revelador que L’héroïque lande, a meu ver o melhor filme da competição internacional deste ano, tenha ficado na sombra no dia da distribuição dos prémios. É que precisamente ele é um épico do desolamento – o capítulo inicial chama-se mesmo “Birth of a Nation” -, no qual os refugiados choram, riem, falam de política ou de amor mas não querem ser filmados, ou quando o querem não há luz para tal e os seus rostos aparecem e desaparecem, vão e vêm na escuridão da noite, alumiados por uma breve fogueira ou um isqueiro tosco. O outro companheiro de viagem deste empreendimento de heroísmo e humildade, que o casal Nicolas e Elizabeth leva a cabo, é o vento, omnipresente, a embalar as histórias de terror que nos vão sendo contadas – histórias que envolvem mortes em massa, ataques com gás pela polícia, espelhos que substituem shampoos na “lavagem” do cabelo – e a habitar os espaços abertos da selva, onde os refugiados esperam, jogam críquete ou conversam. Um filme portanto sobre pessoas que não existem (moram em “jaulas”), sem rosto, que procuram o “sonho britânico” acessível apenas por camião ou barco, nos quais tentam, dia após dia, viajar sem se fazerem notar. L’héroïque lande acompanha o desmantelamento da selva, depois de ter filmado as danças, as conversas, os arrufos de amor, o padeiro que faz pão improvisado ou as mãos nervosas que jogam, silenciosamente, dominó. E nesse tempo o filme cumpre o seu sublime, trata como casa aquilo que casa nunca poderá ser.
O segundo maior filme da competição internacional é Martírio (2016) de Vincent Carelli, quase 3 horas. Aquilo que parece ser uma obsessão pela duração é para mim um indício do gesto da realização que implica simultaneamente ter tempo o suficiente para “estar com” e “dar voz a”. Nestes dois aspectos o filme do antropólogo aproxima-se do de Klotz e Perceval, mas depois acabam por se apartar na sua diferente ambição cinematográfica. Numa das suas cenas, Carelli explica a um grupo de índios que ele é do povo e que não pode ter interferência directa para resolver a situação delicada deles. Mas que pode filmar. E assim, se muitas pessoas virem o filme, a pressão sobre os órgãos de decisão cresce. Essa consciência do realizador que sabe que tem uma arma na mão acaba por surgir demasiado evidente ao longo de Martírio. Quer dizer, estamos a ver um filme de verdadeiro terror – a luta do capitalismo do agronegócio para extinguir os territórios índios no Mato Grosso do Sul e outras zonas indígenas – que acaba por tornar absoluto o ponto de vista moral, relativizando a sua dimensão estética. A voz de Carelli, a exposição dos factos históricos, os testemunhos dos índios, ou mesmo o uso das imagens de filmagens anteriores do realizador nos anos 80, descuram um pouco essa relação com a estética, acabando afinal por enfraquecer o seu derradeiro objectivo, o seu efeito político.
Curiosamente, não tendo aparentemente tema em comum, End of Life tem o problema oposto ao filme brasileiro. Se Carelli deveria, entre aspas, ter sido “mais realizador” e “menos antropólogo”, já John Bruce e Paweł Wojtasik, deveriam ter sido “menos realizadores”, outra vez as aspas, no sentido de não ceder à tentação de docilizar o enquadramento de certos planos, de embelezar em demasia as despedidas, as posturas de amparo, ou os silêncios de êxtase meditativo. O filme resulta de inúmeras horas de interacção com pessoas em diferentes estados de fim de vida ao longo de 4 anos. Provavelmente a vontade de documentar a heterogeneidade de formas e de abordagens tornou End of Life num objecto estranho que ora reflecte, ora observa. É nos momentos em que cai a consciência da encenação, narrativa e formal, que o filme nos transporta para um espaço genuíno. Quando esquecemos a metáfora da recordação da “Invenção de Morel”, por exemplo, e ouvimos os risos de Bruce a uma resposta mais perspicaz dada por uma das senhoras na cama do hospital. Quando nos focamos nos sons das portas e dos ventiladores e entra, sem querer anunciada, outra metáfora, esta por sinal, bem mais eficaz: uma das senhoras a dizer que, nos seus casamentos nunca estiveram presentes animais nem outras criaturas, apenas fotógrafos.
Tenho estado no fundo a falar do dilema do cinema como um problema da escolha do que, em cada momento, pode/deve surgir à tona do visível e de como é que se dá o seu avistamento. Dois dos bons filmes desta competição fazem uma escolha radical, semelhante. Also Known as Jihadi de Eric Baudelaire e Purge This Land de Lee Anne Schmitt são filmes filhos da abstracção, de uma escassez plena. Ou se quiserem, eles passeiam-se na fina linha do abismo, no acto mental de criação que se produz a partir de um esvaziamento. Traduzindo para português. Ambos os filmes habitam/mostram os espaços vazios onde se passaram os eventos descritos nos filmes e a eles temos acesso por outras vias que não a imagem – no caso do americano é a voz off de Lee que vai narrando incríveis episódios de violência e descriminação racial ao longo dos anos nos Estados Unidos; no filme de Baudelaire, a opção ainda é mais arriscada, pois essa voz nem sequer existe, ela é substituída pelas páginas do processo judicial de um jovem francês acusado de radicalização e terrorismo, na sua ida de França à Síria e regresso.
Começo por este último, o melhor dos dois. Quem segue a carreira de Eric Baudelaire sabe que um dos seus temas é a questão da imagem como prova. Em 2011, The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi, and 27 Years without Images trabalhava essa disjunção entre o som e a imagem. Por um lado, ouvíamos os relatos de vida de May Shigenobu, filha de um líder do exército vermelho japonês, na clandestinidade, e do realizador Masao Adachi. Por outro lado, ante a inexistência de imagens dessa época (a fazer lembrar o filme Rithy Panh nesse aspecto), Baudelaire “fabricava” memórias visuais através de filmagens em Beirute e Tóquio. Aqui, em Also Known as Jihadi voltam a não existir imagens que “provem” o terrorismo. Baseando-se na “teoria da paisagem” [desenvolvida em AKA Serial Killer (1969) de Masao Adachi, que serve de inspiração a este filme], que basicamente procura “compreender” actos de crime a partir de espaços habitados pelos criminosos, Baudelaire vai juntar à evolução narrativa dos interrogatórios judiciais, avaliações psicológicas e escutas, as imagens dos sítios por onde passou o arguido do processo. Onde morou, onde estudou, as viagens que fez, os sítios que percorreu. Baudelaire descreve o seu filme como uma “biografia determinada não pelo que o sujeito fez, mas pelo que ele viu”, assim como a forma como as paisagens reflectem as estruturas sociais e políticas de alienação (ver plano acima sobre a “pertença do futuro” de alguém a limpar as janelas de uma loja de ténis). Embora o realizador auto-nomeie assim a sua obra, Also Known as Jihadi é também interpelante porque é uma luta, corpo a corpo, entre o que vemos e uma mitologia popular associada ao terrorismo. As habitações sociais, a passagem dos camiões do lixo, as pessoas que caminham, as estradas, as paisagens suburbanas estão sempre a frustrar uma expectativa de acontecimento, como se o avanço “narrativo” do julgamento buscasse nas imagens a prova de um complot terrorista ao estilo Goodfellas (Tudo bons rapazes, 1990). Como se aquilo que vamos lendo no ecrã precisasse, a dado momento, extrair daquilo que vamos vendo uma prova da inocência ou da culpa daqueles jovens. Por vezes, as frases nas paredes, nos muros, comentam o tema do filme, e, por vezes, as bandeiras flutuantes no canto dos enquadramentos, interrompem a calma do céu cinzento. Mas em geral, é de uma calma e tranquilidade que Also Known as Jihadi fala. O que mais haja está escondido, como um perverso tesouro.
Uma palavra ainda para Purge This Land. Se Eric Baudelaire trabalha a questão da imagem como prova, a artista e realizadora Lee Anne Schmitt priviligia a investigação, através da captação de imagens de 16 mm, dos traços dos sistemas políticos, dos gestos de um passado, inscritos nas paisagens e nos objectos. A partir da célebre frase que o abolicionista John Brown proferiu umas horas antes de ser executado – “I, John Brown, am now quite certain that the crimes of this guilty land will never be purged away but with blood” – Schmitt filma e monta, de forma brilhante, este filme-ensaio que funciona como essa tal purga, e ao mesmo tempo como homenagem ao companheiro negro, Jeff Parker, que assina a banda sonora (inspirada na música negra de Detroit e Chicago dos anos 1960) e ao filho, prestes a nascer e que irá ter de viver o presente a partir desse peso da raça discriminada. Purge é um filme transtemporal, o passado dos episódios de horror e racismo, assim como os momentos mais marcantes da história de Brown, são procurados em vestígios, nas latências do presente desabitado: no lixo, nas paredes, nos descampados, nas igrejas, em lugares fúnebres, em praias, estátuas… Essa busca tem a qualidade literária da voz e das pausas de Schmitt, mas também esse distender no tempo, como se o filme fosse ele uma longa e progressiva composição musical, onde os acontecimentos evocados mergulham na nossa consciência através de sinos, assobios, abelhas, enxames ou campainhas. Por tudo isto, Purge This Land tem material para ser um ensaio sobre a América a partir do olho do furacão que é o racismo, mas possui a calma, a sobriedade maravilhosa de uma transmissão de dor e de vontade de transformação. Enquanto Lee espera o nascimento do seu filho – ao contrário dela, ele sentirá na pele o que é nascer preto nos Estados Unidos – é da materialidade, da pele das coisas, que ela vai fazendo nascer também a esperança.
Até aqui tenho sobretudo elogiado obras com uma forte componente intelectual, mas é também chegado o momento de salientar um par de belos filmes que são o oposto disso. Chjami è rispondi do francês Axel Salvatori-Sinz e Preferiría no hacerlo da argentina Ileana Dell’Unti são filmes que me agradam na medida da sua honestidade, pela ausência de receio em expor a sua própria fragilidade. Chjami è rispondi recebe o seu nome de um canto tradicional de origem corsa que implica um jogo de improvisações, de parada e resposta, de desafio, de humor e sarcasmo. O desafio é figurado. Como diz o próprio realizador em voz off trata-se de desafiar o parente para um “duelo ao sol”, isto é, para um reencontro de partilha e embate de um filho com um pai. Se a estratégia parece tombar nesse poço recorrente que é o dos filmes-reparação, aqueles em que fazer um filme serve para sarar uma ferida familiar, neste caso, o duelo leva o cineasta a introduzir no próprio filme a crítica ao mesmo. Quer dizer, Axel parte de várias posições de domínio: ele organiza a cena e as imagens, pedindo ao pai para dizer alguns textos, fazendo-o mover-se e sentar-se nos sítios que ele quer; ele procura reconciliar-se com o pai, passar tempo com ele, antes de ele próprio ser pai; e ainda faz de certos momentos uma tentativa de compreender o pai e o seu “sangue quente” de origem corsa, a sua infelicidade e bloqueios emocionais. Contudo, o pai responde: ele acusa-o de dominar as imagens para o fazer parecer um tirano, ele quer também olhar pelo visor da câmara, ele reclama pelo seu direito de não ser mostrado como um insensível. Como se isso não bastasse, para que do campo-contracampo restasse uma crítica-contra crítica ao filme, ainda temos as conversas de Axel com uma senhora que psicanalisa o psicanalista, que analisa a análise, que questiona a encenação. Ou seja, faz descer o antropólogo-cineasta do pedestal de domínio sobre o pai, do domínio visual sobre a região corsa, casa de família, que agora revisita. O verdadeiro gesto antropológico deste filme é que o seu autor tem a humildade de o fazer circular entre um real ficcionado por si, e uma ficção mental que ele pensa ser o real. Afinal de contas, essa humildade dá frutos. Do jogo não há vencedores: o pai afinal percebe o gesto do filho, e o filho prepara-se para transmitir o que aprendeu ao ser que continuará a família. Como se vê num dos planos iniciais em que há um furo de bicicleta, Chjami è rispondi é um filme feito com um só corpo. É o corpo que enche o pneu esvaziado aquele que, ao mesmo tempo, filma a cena. Por causa dessa intervenção na vida, o enquadramentro oscila. Mas não foi ele feito para oscilar?
Preferiría no hacerlo, que vai buscar o seu título ao famoso e despreocupado hino de insubmissão do protagonista de Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street de Herman Melville, pertence à família de filmes-bálsamo. O jovem escritor, encerrado no seu quarto, padece de desespero artístico: quer dar provas do seu talento, publicar livros, ser um canalha como os grandes escritores. Será que participar num filme, falar para a câmara, expor-se na sua inquietação vai ajudá-lo a atingir o seu objectivo? Ao espectador, com o devido respeito, isso pouco interessa. O filme de Ileana Dell’Unti é eficaz sobretudo como suspense, enquanto filme a mostrar os ritmos imprevisíveis de como é que a escrita se desprende de um corpo. Será que o jovem se vai levantar no meio da noite e escrever uma linha no seu caderno? Será que os livros que coloca debaixo da sua máquina de escrever, para a nivelar à altura das mãos, não o nivelam também, simbolicamente, ao nível da escrita? Será que o voyeurismo da escrita permite iluminar o conteúdo do que está a ser escrito? Um dos aforismos que vemos passar no início do filme, supostamente da sua autoria, é “Notar Algo. Anotar Algo.” É essa a estratégia da escrita, mas também do cinema. Preferiría no hacerlo, encerrado nas quatro paredes do quarto do jovem artista, nota os parcos objectos e sons – os livros, a máquina de escrever e o som das suas teclas, o cinzeiro, as músicas que vai ouvindo, o ponto de vista da câmara que parece coincidir com o sítio do computador (coincidência?) – e anota os gestos físicos e intelectuais de um processo criativo, um caminho que nos faz transcender o espaço encerrado onde o filme se passa. Nota: é nesse percurso que reside a minha dificuldade com filmes como Interior, de Camila Rodríguez Triana, ou mesmo o premiado, Milla de Valerian Massasian. Filmes exclusivamente, ou com cenas predominantemente de interiores, que procuram manufacturar, cada um à sua maneira, uma ideia de espelho de algo, uma ideia de intimidade. Contudo, esse espelho, mais do que dar algo maior a ver que transcenda esse interior físico, no seu gesto de composição visível, dá, em primeira linha, a ver o próprio fabricante do espelho.
Como se sabe há uns anos a esta parte o Doclisboa decidiu, e bem, estilhaçar o agrupamento dos filmes em função da sua duração. Assim, curtas convivem com médias e longas metragens, numa agradável relação fraternal. Por isso, gostaria de falar de duas curtas-metragens que podiam perfeitamente ter ganho o festival. A primeira é Why is Difficult to make Films in Kurdistan de Ebrû Avci. No seu primeiro plano a realizadora pede a outra rapariga para em dado momento focar a imagem. Essa passagem do desfocado à nitidez é o gesto inaugural deste breve filme que se propõe precisamente clarificar, tornar nítido, o dilema que apresenta no título. E em pouco mais de 20 minutos fá-lo de maneira admirável. A avó ri-se muito e ajeita o lenço enquanto vai tentando perceber o que é isso de uma máquina pôr parte dela (a sua imagem) dentro de si. A mãe quer dissuadir a filha de aprender o cinema, pois que além de ser um pecado (as pessoas fingem ante a câmara), ninguém o faz na sua comunidade. O irmão mais velho goza com ela e pede-lhe para largar a câmara e vir cozinhar. A amiga, de idade semelhante, tem medo de ter de ser filmada e de por isso lhe pedirem o divórcio. Mas Ebrû Avci quer filmar. E fá-lo. Ela mostra clandestinamente do alto do monte um casamento (e a projecção futura do que espera às jovens naquele aldeia); ela espia os homens a dançar (eles sim podem filmar, sem problema) e as mulheres a trabalhar; ela capta a mãe que lhe pergunta se sabe cozinhar e que, em frente à televisão, diz que nunca a vê; ela testemunha a tristeza e revolta de um jovem a quem o irmão mais velho bateu (sempre ele, a desempenhar o papel do pequeno e inocente tirano da família). Neste pequeno filme Ebrû inquire, anda às voltas, questiona, torna a dificuldade do cinema menos difícil e consegue algo extraordinário. Torna, ainda que por momentos, o cinema como parte daquela cultura.
Escrevi acima que o cinema pressupõe essa dolorosa escolha entre o que mostrar e o que deixar velado. Mirador de Lucia Martinez problematiza essa questão. Por um lado, o seu filme desafia a tentação de ver um mirador como um espaço onde a visão ganha uma omnipresença. Como diz um dos jovens do abrigo onde Lucia filma – jovem esse que está de óculos escuros para não identificarem o alvo dos seus olhares – há partes do corpo do amigo, para o qual mira, que não consegue ver pois estão escondidas. A mesma coisa com alguém que está no cimo de um mirador: nunca a visão total é possível pois coisas há que, estando no campo do olhar, servem de obstáculo à visualização de outras. A visão é sempre então um affair de escolhas. Além disso, os pequenos momentos vividos por Lucas numa saída do seu abrigo de acolhimento acumulam, na sua estranheza, aquilo que poderíamos ter a tentação de referir como um olhar global sobre o desamparo, sobre a passagem do tempo numa juventude sem as marcas de uma família. Tomar banhos a comer biscoitos e a olhar para o telemóvel, treinar natação sincronizada numa piscina vazia, comentar gravidezes adolescentes provindas de sexo no cemitério, imagens nuas, postadas, tiradas, webcams a revelar o make up, a doçura da pele e o brilho do ecrã, sempre presentes. Para quê moralizar os fogachos de um mirador fragmentado? Eles, os espectadores, permanecerão invejosos do nosso aborrecimento. Canta-se assim. E olha-se o olhar da câmara do computador, como um enfrentamento, uma contaminação.
A dada altura da primeira longa metragem de Filipa César, Speel Reel, salienta-se a relação entre o húmus e a humildade. A partir daqui podíamos compreender o gesto que interessa à realizadora ao acompanhar o trabalho de recuperação e digitalização do arquivo audiovisual da Guiné Bissau filmado entre 1976 e 1980. É um trabalho sobre as imagens tanto quanto é um trabalho sobre a terra. Em dois aspectos, pelo menos. O primeiro porque falamos das imagens de um passado inscritas na película que, apesar de não serem suporte biológico, se “apagam” tanto quanto a natureza sob o efeito da passagem do tempo. Ou seja, a terra, indirectamente, vai apagar a história de um país, e por isso é preciso reclamar essas imagens e trazê-las à ilusória intemporalidade do digital. Mas há um segundo aspecto que une aquelas imagens à terra da Guiné Bissau. Elas fazem parte da história do país e da visualização e do trabalho sobre as mesmas depende a produção do conhecimento e de um futuro da Guiné. É essa ponte, nomeada “ciné-kinship”, que Filipa César quer abrir entre o passado e o presente, entre o sítio onde foram filmadas as imagens e onde hoje podem ser projectadas. As sessões públicas de um cinema ambulante que vai mostrando essas imagens à população guineense, a forma como as projecta nas folhas, nos ramos (é poderosa a metáfora visual do desentrelaçar do arquivo com os ramos dos arbustos e dos pântanos) ou como coloca no mesmo plano as imagens de arquivo e as imagens do presente – um campo e contracampo que sutura o passado e o presente – são os momentos em que o cinema de Filipa César mostra como Speel Reel transcende a mera poética fetichista e evocativa da película, e sugere uma acção criativa e política para um projecto colectivo que aproxima as imagens dos seus criadores/espectadores.