Comece-se pelo título: “Don Quijote de Orson Welles (1992) de Jess Franco”. Como podem nove palavras produzir tantas dúvidas, tantos problemas, tantas aparentes contradições? Tentando desenlear-me das complexas articulações que este título produz aponto armas primeiramente à preposição repetida, “de”. Usada no modo presente “de” significa procedência, logo “Don Quijote” origina em “Orson Welles”, mas também “Don Quijote de Orson Welles” origina em Jess Franco. Confusos? O passo seguinte ajudará a explicar melhor a anterior mise en abyme de procedências. Em “1992” já estava “Orson Welles” enterrado há sete anos e “Don Quijote” foi (e é) um dos filmes que o realizador deixou inacabados. Logo, provém de “Jess Franco” a tentativa de terminar esse projecto, tentativa alcançada em – cá está – “1992”. Assim Don Quijote de Orson Welles (1992) é a versão que “Jess Franco” produziu com o material que “Orson Welles” rodou do seu “Don Quijote” – material que nunca adquiriu uma forma definitiva pela mão do seu criador. Se não é preciso explicar quem foi “Orson Welles” – dispensa apresentações, como se diz na televisão – talvez convenha justificar a intrusão desse nome estranho, “Jess Franco”, e de como veio ele a encarregar-se desta malquerida re-construção cinematográfica.
Franco foi um dos mais prolixos realizadores do mundo. Conta com cerca de 200 títulos assinados em seu nome, ou com algum dos seus outros pseudónimos, Jesús Franco (de baptismo), James Johnson, Clifford Brown, entre tantos outros. Mais conhecido pelos seus filmes euro trash dos anos 1970, quase sempre entre o erótico e o terror, feitos um pouco por toda a Europa (já que o franquismo reinava em Espanha, a sua terra natal), incluindo alguns rodados em Portugal – o mais conhecido Die Liebesbriefe einer portugiesischen Nonne (Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa, 1977). A relação de Franco com Welles vem deste ter sido realizador de segunda unidade para o segundo em Falstaff (Chimes at Midnight) (As Badaladas da Meia-Noite, 1965) e num outro projecto que nunca viria a concretizar-se, intitulado Treasure Island. Segundo o próprio Franco, numa entrevista à revista Arquivos de la Filmoteca, Welles terá visto, em Paris, o seu La muerte silba un blues (1964) e quando lhe sugeriram que arranjasse um realizador de segunda unidade pediu por Franco. Os produtores descontentes com a escolha mostraram-lhe Rififí en la ciudad (1963) com o intuito de o desmotivar, mas como esse era “uma apaixonada homenagem a Orson” – como o confessou Franco – o filme ainda não chegara ao final quando Welles proclamou “É este mesmo!” Conto esta pequena anedota (que se non è vero, è ben trovato) porque será exactamente de pequenas formas de auto-mitificação e deslizes romanceados que se fará esse objecto heteróclito de nome Don Quijote de Orson Welles.
Franco, cujo envolvimento no projecto “Don Quijote” de “Orson Welles” fora inexistente, aceitou o convite de produzir esta re-construção com o material disperso quando o produtor Patxi Irigoyen consegui o apoio e a caução da Expo de Sevilha de 1992 – onde o filme viria a ser estreado. O primeiro passo do processo foi, naturalmente, tentar recolher todo o material filmado por Welles. Só que logo nesse passo ocorreu um impasse: “Don Quijote” foi um projecto que o realizador norte-americano foi filmando ao longo dos anos, com especial enfoque no intervalo entre 1957 e 1969. Desde o início da rodagem [em Julho de 1957, poucas semanas após Welles ter sido afastado da montagem de Touch of Evil (A Sede do Mal, 1958)] até à morte de Welles, o projecto foi tomando diferentes encarnações. Jonathan Rosenbaum – em Discovering Orson Welles – destaca quatro diferentes versões que o projecto chegou a tomar: (1) versão a cores com Mischa Auer como Quixote – da qual se perderam todos os materiais fílmicos –, (2) versão mexicana com o Francisco Reiguera como Quixote e com a participação da criança-actriz Patty McCormack como Dulcie(neia), (3) versão hispano-italiana em que Welles procurou terminar a versão mexicana com duplos para a actriz que entretanto crescera e (4) um filme-ensaio sobre o franquismo em Espanha e sobre a importância do mito de Quixote na actualidade de então, com o título irónico When Are You Going To Finish Don Quixote?.
Em diferentes momentos o filme esteve perto a ser terminado (segundo Welles, está claro, esse fake faker). Em 1958, em entrevista a André Bazin e Charles Bitsch para os Cahiers du Cinéma, o realizador referia que o filme já contava com uma hora e um quarto, faltando apenas rodar um quarto de hora referente ao desastre nuclear com uma bomba de hidrogénio que ainda não havia sido filmado – sim, desde o primeiro momento o Quixote de Welles seria um objecto anacrónico que colocava o personagem no mundo dos nossos dias, com a Guerra Fria em pano de fundo, as idas à Lua, a televisão e demais temores dos anos 1960. Rosenbaum, por sua vez, refere que em 1972 Welles lhe teria dito que o filme estava “virtualmente completo”, faltando apenas algum trabalho no som (incluindo a música).
O certo é que o historiador Clinton Heylin, no seu Orson Welles versus The Hollywood Studios, refere que a certo ponto Welles ordenou (ao último dos seus montadores da fase italiana, Mauro Bonanni) que diferentes bobinas de película fossem tituladas de formas enganadoras, referindo-se ora a outros projectos [como Dreamers – outro que nunca foi concluindo – ou F for Fake (F de Fraude, 1973)], ora a trabalhos para televisão. Isto é, havia o desejo de dificultar, e muito, o trabalho de quem quer que tentasse terminar a sua obra-prima-inacabada. Rosenbaum sugere, aliás, que Welles, a partir de certo momento, deixou de ter vontade que o filme fosse sequer terminado (por ter consciência de que o projecto era desequilibrado e seria muito mal recebido pela crítica e pelo público), transformando-o num passatempo com o qual se divertia a brincar intermitentemente, pelo gozo que lhe dava o própria acto da montagem. Luís Miguel Oliveira, aquando da distribuição comercial do filme em Portugal, falou deste filme como um dos Welles’ home movies citando-o, “Por que raio é que uma pessoa não pode fazer um filme para si própria?”. A acrescer a tudo isto, há ainda a confusão entre o material de rodagem de “Don Quijote” e o material que Welles rodou para o documentário televisivo Nella terra di Don Chisciotte em 1964.
Posto isto, Jess Franco e Patxi Irigoyen não conseguiram reunir todo o material rodado para o filme. Encontra-se, ainda hoje, disperso entre quatro diferentes proprietários, entre eles a Cinemateca Francesa, a Filmoteca de Espanha (que adquiriu o seu espólio, aquando desta re-construção, a Oja Kodar, à qual Welles deixou os direitos de todos os seus filmes inacabados) e Mauro Bonanni. Este último possui grande parte da rodagem mexicana do filme, incluindo a conhecida cena em que Dom Quixote assiste a uma sessão de cinema e defronte de uma cena de batalha salta de espada em riste contra a tela, rasgando-a em pedaços – o curioso leitor poderá encontrá-la facilmente no Youtube. Bonanni não quis participar no esforço de Franco-Irigoyen por um desaguisado legal com Kodar e como tal a versão de Franco não inclui qualquer cena com Patty McCormack. E mesmo que tivessem reunido o material do filme, a que versão do filme pertenceria esse material? E que versão procurariam re-construir? A última que Welles havia concebido? E com base em quê? Não havia guião, apenas anotações avulsas, uma parte do material recolhido nunca tinha sido sequer revelado (logo Welles nunca o pudera sequer considerar) e a juntar a isso a película variava de suportes (16mm, Super 16mm e 35mm), de contrastes, de sensibilidades e de condições de conservação, compondo um total de cerca de 130 mil metros de celulóide muito díspar.
O resultado é um palimpsesto digital (sim, porque todo o material foi digitalizado e assim difundido nas salas e em home video) que foi caracterizado por diferentes críticos como: “uma montagem póstuma sem coerência narrativa ou estética” (Pedro Mexia), “uma apropriação indevida e desastrosa das imagens de Welles” (Rosenbaum), “pouco mais que uma colecção aleatória de sequências de um filme nunca terminado” (Heylin). De facto Don Quijote de Orson Welles é uma salganhada, não só pelas condicionantes da produção do filme (que estive enumerando) mas também pelas decisões de Franco. Em especial, acrescentar imagens rodadas por si (nomeadamente de moinhos, para encenar a cena mais conhecida do livro de Cervantes que Welles nunca fez tensão de filmar, ou o plano da carta de Sancho a sua mulher), a introdução de imagens de Nella terra di Don Chisciotte onde se vê Welles em rodagem do próprio “Don Quijote” e recurso a técnicas de manipulação digital da imagem, nomeadamente ken burns, freeze frames, blends, arrastos, recortes e ralentis digitais.
Mas Franco era consciente do que estava a fazer e afirmou, na mesma entrevista, que “não sei se Orson aceitaria esta versão do Quixote que fizemos. Provavelmente não, mas também não aceitaria a sua própria versão.” Desde cedo que o propósito do projecto era evidente: não se tratava de uma trabalho arquivístico de reconstrução (nem havia indicações suficientes para que este pudesse ser feito segundo a deontologia não-escrita dos profissionais do restauro cinematográfico), pelo contrário, havia um propósito turístico (pela associação à Expo e pela opção de produzir duas versões, uma dobrada em espanhol e outra em inglês) que se centrava nas representações de Espanha pela câmara de Welles e também um propósito comercial (Franco confessa que a primeira versão de montagem que organizou tinha 2 horas e meia, mas por questões de visibilidade comercial – e por essa ser uma versão “demasiado cinéfila” – reduziu a montagem para actual duração de 116 minutos).
Neste sentido, não será mais honesto um filme que tão ostensivamente contraria a ideia do toque wellsiano, do que um pretenso restauro oficial que, sob a patina da autoridade histórica, prossegue vias não muito distantes das de Franco? É que a estranheza deste Don Quijote de Orson Welles instala-se muito cedo e nunca nos abandona: ninguém cai no engano de estar vendo um Welles puro, muito pelo contrário. Tudo ali está retalhado, todas as costuras são salientes, cada raccord é uma incoerência espacial e plástica, certas sequências são marteladas por Franco (impostas pela rigidez de um argumento construído à posteriori), outras transformam-se em festins de montagem alegórico-simbólica que se de facto fazem lembrar Welles soam aqui apressadas (simplistas). Mas é impossível apagar certos contrapicados tipicamente wellsianos. Regressam também as grandes angulares que tanto o deliciavam. E mesmo a presença de Reiguera, envelhecido, é algo que a câmara testemunhou de forma marcante. Por tudo isto, ressurge no filme a força do seu elemento exótico-etnográfico: o gosto pela paisagem e pelos costumes das pessoas, a câmara cândida que passeia pelas ruas e vê as gentes nas suas lides. E aqui o filme revela aquilo que era a intenção primeira de Welles, aquando da fase mexicana (como o confessou na entrevista a Bazin e Bitsch): filmar sem guião, sem som, na rua, como os filmes de Mack Sennett. E posto deste modo, o seu “Don Quijote” é afinal uma variação sobre o burlesco e a dupla de Quixote e Sancho uma versão anacrónica de Laurel e Hardy (mais conhecidos por terra lusas como Bucha e Estica – sendo que também aqui o descritivo fisionómico se aplica).
Mas como se poderia saber de tudo isto se Franco não tivesse produzido esta versão? Apesar de todas as suas possíveis falhas, o filme tem a capacidade dupla de tornar visível o que antes era apenas objecto de curiosidade arquivística e, segundo, fá-lo de tal modo que denuncia toda a operação de re-apropriação que está na base do projecto (e de qualquer reconstrução cinematográfica, por mais historiográfico que seja o seu processo). Isto é, Don Quijote de Orson Welles torna-se num tosco objecto ensaístico sobre a natureza do cinema, sobre o que é isso da autoria, de que são feitas as intenções de um realizador (e de como estas evoluem), de como um filme resulta sempre das condicionantes da sua produção e das dificuldades técnicas que o amadorismo grava na superfície da tela, também sobre o duelo entre a pulsão criativa e o receio da recepção pública e tantas outras coisas. Don Quijote de Orson Welles acaba por expor tudo aquilo que o cinema tradicionalmente procura esconder, destrói qualquer noção de suspensão voluntária de descrença, transformando-se numa lição de pós-modernismo mais ou menos involuntário – não esquecer que os anacronismos, os diálogos para a câmara, a imagem do telescópio como pré-cinema e as reflexões sobre a ontologia do cinema eram já pilares fundacionais do “Don Quijote” de “Orson Welles”, uma versão meta-cinematográfica do texto de Cervantes.
E é aqui que o filme de Franco tem o condão raramente alcançado – vejam-se os poucos casos de restauros e re-contruções que ousaram tão abertamente debater a natureza do seu próprio gesto, como por exemplo Metropolis (1984) de Giorgio Moroder – de ir além de um conjunto de operações mais ou menos tecnicistas, de corta e cola, convertendo-se num trabalho de profunda compreensão, interpretação e reescrita histórica. Ou pondo de outro modo, um trabalho historiográfico metodológico especulativo e anti-neutral, através de uma mise en scène histórica de documentos e eventos do passado. Assim a questão da apropriação dos objectos do passado, ao estilo dos poetas surrealistas ou dos realizadores do found footage, verte-se na prática do restauro, e a versão de Franco surge como uma interpretação pessoal da partitura que Welles legou. Ou seja, a versão de Franco assume de partida, na sua salganhada anacrónica, que aquilo constitui a própria salganhada anacrónica por detrás do trabalho do restauro reconstrutivo. Ao aproximar-se do trabalho dos realizadores de found footage que sempre operam sobre a natureza do medium, converte o filme de Welles num quasi-tratado sobre as operações de reescrita histórica que os restauros promovem.
Há pois que olhar os objectos de restauro não através daquilo que eles tentam esconder-nos, mas através dessa evidência meta-cinemática que é a operação consciente das imagens fílmicas. Don Quijote de Orson Welles é um objecto que existe como um olhar presente para o que poderia ter sido esse filme que nunca chegou a existir — e que revela o percurso físico dos materiais, as convulsões e os cortes, enfim, que revela o tempo a agir sobre a matéria do filme (e sobre aquilo que num filme é sempre imaterial: os desejos, as intenções e as fantasias do realizador). Um olhar digital (também no sentido do dígito, do dedo, da intervenção e da manipulação infinita sobre as imagens) que é necessariamente o olhar dos nossos tempos — e que é portanto um olhar que não se pode confundir com o original que nunca existiu.
Don Quijote de Orson Welles passa amanhã (dia 4 de Outubro), às 19h00, no Espaço Nimas, no âmbito do ciclo, organizado pelo À pala de Walsh (que celebra 5 anos de existência) com a Medeia Filmes e Leopardo Filmes, Quem és tu, cinema?. Segue-se à projecção uma conversa com Carlos Alberto Carrilho (crítico e programador de cinema) e Tiago Baptista (Director do Arquivo da Imagem em Movimento – ANIM). A moderação fica a cargo do walshiano Ricardo Vieira Lisboa.