O À pala de Walsh não se esquece de Tobe Hooper, falecido no passado mês de Agosto. A homenagem não chega tarde, porque, na realidade, nunca deixámos de lhe prestar tributo ao longo dos cinco anos de existência deste site. Desde logo, com uma entrevista realizada em 2013 e que aqui Luís Mendonça recorda. Mas não podíamos deixar de prestar um tributo especial a este homem afável que amava os seus monstros.

Apesar das centenas de filmes que, ano após ano, acrescento à minha lista de visionamentos, tendo a manter uma certa fidelidade na ordem de preferências. De resto, existem filmes que secretamente amo, mesmo antes de saber que existem, como é o caso de The Texas Chain Saw Massacre (Massacre no Texas, 1974), que Tobe Hooper realizara como se fosse um documentário. Com alguma desilusão, descobri que o filme com que repetidamente sonhara, não era o de Tobe Hooper. A violência gráfica atordoante, impeliu-me a refugiar em pequenos detalhes que se misturavam com as minhas memórias e que outros não viam ou consideravam irrelevantes. Entre eles, estavam porcos a chafurdarem livremente pela casa entre esculturas produzidas com ossos e galinhas encarceradas em minúsculas gaiolas desproporcionadas para o seu tamanho, embalados pelos efeitos sonoros e instrumentos não convencionais da partitura de Tobe Hooper e Wayne Bell. Depois, havia a expressão angustiada do monstro, que olhava incrédulo pela janela, enquanto adolescentes imberbes lhe invadiam a casa, sem pedir licença ou bater à porta. Não mais parariam de entrar, cada vez com menos neurónios e mais impulsos libidinosos.
Carlos Alberto Carrilho
(Texto originalmente publicado no blogue Ordet)

A notícia da morte de Tobe Hooper atingiu-me de uma maneira particular. Ele foi o realizador que assombrou a minha infância e adolescência. Tive ocasião de lhe transmitir isso pessoalmente antes da entrevista – que recordarei para sempre – que ele me concedeu em 2013, quando o À pala de Walsh dava os seus primeiros passos. A notícia da morte chegou-nos a todos em final de Agosto. No mês anterior, uma história envolvendo o nome de Hooper saía e deixava-me entristecido. O director de fotografia de Poltergeist (1982), John Leonetti, afirmou à imprensa que os rumores que circulavam acerca desse filme de assombrações de 1982 eram verdadeiros. Isto é, sim, o verdadeiro realizador de Poltergeist foi Steven Spielberg, que em teoria não poderia rodar nenhum filme nesse ano dado estar contratualmente vinculado à produção de E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. – O Extra-Terrestre, 1982). Spielberg teria usado Hooper um pouco como José Sócrates usou Carlos Santos Silva. O testa-de-ferro perfeito para um filme no qual se entregou a 100% – consta que chegou a acompanhar mais de perto a montagem deste filme do que do próprio E.T..
Claro que esta notícia pode contribuir para a falência de um ídolo. Contudo, não consigo deixar de encontrar uma forte coerência entre Poltergeist e o resto da obra de Hooper. Desde logo, esta arrepiante – ontem como hoje – fábula moderna sobre o poder corruptor e incontrolável da televisão – em pleno reaganismo – versa sobre a vulnerabilidade da “casa americana” (home, sweet home). Qualquer coisa que comunica com o primeiro filme de Hooper, Eggshells (1969), mas também com The Texas Chain Saw Massacre ou o anterior, e subestimado, The Funhouse (Acidente no Luna Parque, 1981), onde uma atracção de feira estilo “comboio assombrado” é aterrorizada bem de dentro, uma espécie de circo diabólico que, aliás, não é estranho à casa consumida pelas forças do mal no estrondoso final de Poltergeist. Isto para dizer que, quanto a mim, dificilmente Hooper não desempenhou um papel importante na concepção deste filme que tão determinantemente moldou o meu imaginário. Lembro-me bem de o apanhar a dar durante a noite, no ido TCM. O efeito-espelho raras vezes foi tão intenso: eu via a televisão – ou era ela que me via? – como a criança que se deixa enfeitiçar pelo “ruído branco” do televisor no filme. Uma dupla “abertura para uma nova energia” (palavras de Hooper dadas naquela entrevista) que me produzia o mais inesquecível choque eléctrico gerado pelo melhor cinema de horror. Ficou-me o bichinho desde aí. Que maravilhoso “trauma”! Por tudo isto, diria hoje o mesmo que disse a Hooper antes de iniciar aquela entrevista: “o senhor assombrou a minha infância. Obrigado!”
Luís Mendonça

Com a sua narrativa desconstruída, arrojados efeitos visuais e cenários de assombro, Lifeforce (1985) é um filme nada canónico. Mas é junto dos clássicos que melhor o encontro. “Animula vagula blandula / Hospes comesque corporis / Quae nunc abibis? / In Loca / Pallidula rigida nudula nec ut soles dabis Iocos”. Foi Adriano, o mais poético dos imperadores romanos, quem escreveu os versos que iriam servir de ponto-de-partida a Marguerite Yourcenar, que lhe reconstruiu os diários (Memórias de Adriano, 1951): “Pequena alma terna flutuante / companheira e hóspede do corpo, agora se prepara para descer a lugares / pálidos, árduos, nus / onde não terás mais os devaneios costumeiros”. Lifeforce é um lugar de investigações da anima latina: a alma é o fôlego que insufla de vida os corpos, condição indispensável para a sua força. Aqui, no entanto, a ausência de alma desvitaliza o corpo, mas não o extingue: a vítima está em latência e, como um vampiro, precisa de ‘‘infusões regulares de energia’’. Agora seco, o seu corpo ‘pálido, árduo, nú’ mantém a memória do recente élan vital (expressão certeira de Bergson) e faz por prender-se à vida em seu redor, sugando o ar dos corpos vivos para se reanimar e recuperar para si o fôlego, o sangue e a carne plena. Estamos no domínio do vitalismo, onde a vida é o ímpeto e destino do organismo humano. E o que é que dá vida? A alma, a génese, a força anímica dos corpos. Ouvimos em Lifeforce:‘‘A teia do destino carrega o teu sangue e a tua alma de regresso à génese da minha forma de vida.’’ Entre estes space vampires, deslumbrantes corpos humanóides sedentos de vida humana, a alma quer mais alma: Dum vivimus, vivamus! (Enquanto vivemos, deixem-nos viver!), diz uma outra expressão latina, em alusão a uma potência constituinte – o princípio inato da preservação dos corpos vivos – que nos reencaminha até Tales de Mileto, o pré-socrático que começou por suspeitar que as formas de circulação da energia definem o próprio conceito de energia. Mas o que é que estes homens fazem ao corpo que por um momento viram morto e depois volta a insuflar-se de vida? A lei é matá-lo, sempre. A morte é o nosso medo e os mortos não pertencem entre os vivos.
Face a um filme como uma exclamação filosófica sci-fi sobre a hipótese eterna da alma que, errante face à decrepitude fácil dos corpos, é capaz de vivificar outros, regressamos a Yourcenar para lembrar a sua Obra ao Negro (1968). Se os insucessos alquímicos do precursor Zénon não encontram o Elixir da Vida, está exposto o mais primordial confronto de escalas entre corpo e alma: nem os espíritos maiores sobrevivem à injusta decadência da matéria. Ao assinar a incontornável De Anima/Da Alma, Aristóteles assumia, entre uma miríade de nuances sobre os princípios comuns a tudo o que vive, ali ‘‘considerar toda a investigação respeitante à alma como sendo de importância fundamental”. E Tobe Hooper sempre soube: mais importante do que trazer em si o génio, é desenvolvê-lo e largá-lo ao mundo, seja de que forma for. Resta-nos copiar o vampirismo de recordar a fundo e, insuflados pelo que deles cá ficou, daí sorver lifeforce.
Sabrina D. Marques