Sensivelmente a meio do filme uma personagem que está a ser entrevistada responde ao seu interlocutor em forma de pergunta: se este não acha que uma das qualidades do cinema é o facto de existirem filmes tão diversos entre si, porque se fossem todos iguais – todos como o interlocutor defende – seria aborrecido. Esta defesa do cinema, dos seus diferentes papéis e nas suas diversas formas, é algo que Irma Vep (1996) desenvolve durante uma viagem à rodagem de um filme, na qual as vidas dos diferentes intervenientes se intersectam com as diferentes funções de cada um no filme, da mesma forma que os seus quotidianos se confundem com o que acontece em função das gravações. É assim, ao mesmo tempo e no meio do caos da rodagem, do cinema como campo de batalha, uma reflexão sobre aquilo que, como espectadores, procuramos no cinema, sobre o que vemos em determinado filme. Uma ideia que é também um reflexo do que procuramos na agitação do nosso dia-a-dia.
Para complicar e tornar as coisas mais interessantes, a personagem que responde daquela forma é interpretada pela actriz Maggie Cheung, celebrada pelos seus papéis nos filmes de Wong Kar-Wai mas também conhecida pelos filmes de acção asiáticos, que surge aqui a fazer de si mesma, ou uma versão de si mesma. Em Irma Vep a personagem de Cheung é uma famosa actriz de Hong-Kong que chega de para-quedas (ou melhor, aturdida pelo jetlag) a meio de uma rodagem de um filme francês, uma adaptação moderna do clássico Les vampires (Os Vampiros, 1915) de Louis Feuillade. A sua exclusão em relação ao que se passa à sua volta, não menos por não falar a língua nem conhecer bem o trabalho do realizador que lhe ofereceu o papel, servem de início para colocar esse olhar desamparado de fora como um substituto para o olhar do espectador que, como um voyeur, parece apanhado a começar a ver um filme que vai a meio, e que descobre na personagem de Cheung uma aliada para descodificar o que vai acontecendo.
O realizador francês do filme-dentro-do-filme, René Vidal, encantado pelo magnetismo de Cheung, encontra nela uma visão simbólica para reavivar a sua carreira em declínio. Vidal surge como uma caricatura de uma figura respeitada por todos, quase intocável, mas que pertence a uma geração parada no tempo, preso aos seus métodos, e que já não convence ninguém. Ele próprio parece ter pouca fé. Já não acredita muito no que diz ou no que vê – a sua vontade em pegar num clássico do cinema francês e adapta-lo a um suposto olhar modernista é apenas reflexo do seu desejo de parecer ainda relevante e irreverente, mas não esconde uma falta de clareza de ideias que é exposta com o avançar da rodagem. Vidal queixa-se constantemente da incompetência de todos à sua volta, mas não consegue esconder que é o principal responsável do rumo do filme. O realizador é interpretado por Jean-Pierre Léaud, o pequeno Antoine Doinel de Les quatre cents coups (Os quatrocentos Golpes, 1959), numa evocação da melhor e mais original fase do cinema francês – é uma crítica mordaz ao então estado actual do cinema francês, que não deixa de conter algum humor, mas também fé quanto baste no cinema como catalisador emocional.
Apesar do filme passar a maior parte do tempo dedicado às personagens de Cheung e do realizador, é um conjunto alargado de personagens secundárias que fornece maior dinamismo à história, particularmente pela sua reacção a Cheung, que parecem observar de longe como um objecto exótico e desejado – não menos por também ser objectificada no remake de Les Vampires, onde aparece sempre dentro de um fato de látex de corpo inteiro. O actor principal do filme-dentro-do-filme utiliza as ocasiões em que contracena com Cheung como oportunidades para ensaiar uma aproximação, sem perceber que a atracção de Cheung é apenas para com a perfeição dentro da cena. Outro exemplo deste encantamento por Cheung é manifestado por Zoé, a maquilhadora do filme que também faz de guia, tradutora e um pouco de tudo, interpretada por Nathalie Richard, que acompanha Cheung na maior parte do tempo entre filmagens. Zoé acaba por desenvolver uma paixoneta pela actriz, a jusante do seu fascínio pela figura erotizada que esta interpreta no filme-dentro-do-filme, que permite ao filme retratar uma ligação genuína entre as duas, por oposição aos interesses e intrigas que parecem comandar normalmente o subtexto da acção no plateau.
O conceito mais intrigante em Irma Vep é precisamente a atracção pela personagem de vampira que Cheung interpreta no projecto de remake, que além de exercer um fascínio misterioso em quase todos, acabar por contagiar a própria actriz, surpreendida com as possibilidades dessa figura. Depois de visitar o realizador após este sofrer um abalo mental e ser obrigado a afastar-se do filme, Cheung sai pela janela, tal como a personagem vampira tinha feito numa sequência anterior. É como se a partir daí, a partir do abandono do realizador do seu filme, o filme ganhasse vida própria, numa vampirização do próprio filme, tomado pelo seu objecto de desejo. Na sequência seguinte Cheung aparece no seu quarto de hotel vestida com o fato de latéx da personagem Irma Vep, e percorre furtivamente os corredores do hotel, entrando num dos quartos para observar uma das hóspedes num momento íntimo, chegando mesmo a furtar as jóias no quarto, como a sua personagem era filmada a fazer antes, numa mimetização da ficção pela realidade – Cheung, a fazer de si mesma, deixa-se levar pela personagem que interpreta.
Esta ideia de apropriação da ficção pela realidade, do esbater de linhas entre os dois campos, é reforçada pela forma como Assayas filma a maior parte das cenas como longos planos sequência, em que a câmara acompanha as personagens de perto e percorre os espaços de forma a criar a ilusão de continuidade e improvisação, como se estivéssemos lá a assistir de forma realista ao que acontece. Esta forma de transformar a realidade apresentada como natural, é depois subvertida quando Assayas aplica a mesma técnica na fuga à personagem de Cheung, e é uma ilusão construída, porque resulta de coordenação e ensaio prévio. A utilização esporádica de imagens de outros filmes (incluindo do original Les Vampires), da mistura entre formatos, os debates constantes entre personagens sobre o valor do cinema europeu vs. americano ou da importância actual dos clássicos, colocam o cinema no centro da vida destas pessoas, numa forma de imitação da arte pela vida.
A tal sequência da entrevista, em que Cheung é questionada sobre o seu papel neste remake por um jovem jornalista que ataca o estado do cinema, evoca propositalmente outras sequências análogas, como uma conferência de imprensa no primeiro filme de Godard, À bout de soufflé (O Acossado, 1960), que por sua vez é recordada ao ver uma sequência de 8½ (Fellini 8½, 1963) de Federico Fellini – estas evocações servem para lembrar a forma como os filmes vivem à custa de outros filmes, e a melhor crítica a um filme continua a ser um outro – esta é então a resposta de Assayas a uma suposta crise. Basta olhar para o final que Vidal imagina para o filme que lhe foi retirado, uma composição experimental com traços por cima da película e das imagens registadas, para ver nesse gesto de sabotagem e derradeira reivindicação uma outra evocação: que ainda vale a pena lutar pelo cinema.
Irma Vep é exibido dia 11 de Outubro (Quarta-feira), pelas 21h30 no Teatro Campo Alegre no Porto, no âmbito do ciclo, organizado pelo À pala de Walsh (que celebra 5 anos de existência) com a Medeia Filmes e Leopardo Filmes, Quem és tu, cinema?. Volta a ser exibido em Lisboa no Espaço Nimas às 19h no dia 15 de Novembro. Em ambos os casos segue-se à projecção uma conversa sobre o filme. No Porto, os convidados são Tânia Leão e Daniel Ribas, com a moderação a cargo do walshiano João Araújo.