O filme Lumière! L’aventure commence (Lumière!, 2016) de Thierry Frémaux, representa o paradigma do objecto educativo. Os objectos educativos possuem uma dupla natureza, porque enquanto desvelam a beleza da sua forma, são conduzidos por uma linguagem que deles tudo quer revelar. Nenhum objecto educativo contém o verdadeiro prazer da descoberta, porque a simples descoberta exigiria o silêncio do educador. O verdadeiro educador de cinema são os cineastas, aqueles que escrevem por imagens e não aqueles que das imagens, querem lá escrever algo.
Se é certo que a sua selecção criteriosa de 108 filmes, arrumados por capítulos temáticos, não pressupõe qualquer evidente maniqueísmo por parte do autor, é evidente também que o tom poético que este adopta visa escamotear o tom doutrinal que subjaz desde o início do filme. Frémaux é um equilibrista que pressupõe que este filme deverá ser visto pelo grande público e que à grandeza do seu gesto, o de dar a conhecer os filmes dos pais do cinema, deve estar associado as técnicas e a história factual que a arqueologia do cinema assim o exige. Por esse motivo, dificilmente imergimos por completo nas imagens, porque somos impelidos a sacar do caderno de apontamentos e a anotar a largura e tamanho da película, a duração de cada filme, sempre com um último reparo sobre a “eternidade que nos chega” ou qualquer outro chavão estilístico que tenta, após a informação dura, acompanhar as imagens e tocar-lhes com a delicadeza que elas exigem e não com a anterior disposição clínica a que se vêm expostas.
Mas mesmo na dissecação a que assistimos, Frémaux é constantemente cuidadoso e, por isso, nenhuma informação nos é dada a seco ou pressupõe que cheguemos a detectar que estamos perante uma aula. A aula é suportada pelo tom do professor no silêncio tumular a que atenção dos ouvidos exige. Ciente deste registo que a sua narração poderia imprimir ao filme, ele faz-se acompanhar de música igualmente equilibrada. A música assume um elemento patético de condução, onde não é apenas aquilo que é dito, mas também aquilo que ouvimos, que molda as imagens através de um processo simplista que coloca o timbre ameno enquanto o narrador dá o seu saber histórico e, quando é necessário salientar a beleza e alguma deriva mais filosófica, surge um violino mais combalido para prontamente nos “tocar”. Aquilo que parecia atenuar o tom doutrinal do filme acaba por ser o seu maior veículo, numa constante corroboração musical do discurso.
Mas como falar então sobre os Lumière sem recorrer a esta estrutura e deixar que o cinema se revele a si próprio? Diria que a fórmula está contida em Godard e nas suas considerações em La chinoise (O Maoista, 1967). Jean-Pierre Léaud dá a voz a esta magnífica consideração em torno dos Lumière e Méliès:
Que a modéstia e as boas intenções dos educadores fiquem pelas salas de aula e conferências e deixemos os cineastas, os verdadeiros educadores, ensinar cinema através do cinema.
“- Camaradas e amigos, hoje vou vos falar da actualidade.
– Nós vemos a actualidade diariamente no cinema.
– Há uma ideia falsa dos acontecimentos actuais no cinema. Dizem que foi os Lumière que inventaram a actualidade. Que eles faziam documentários. Mas há também o Méliès, que toda a gente dizia que fazia ficção. Que era um sonhador e que filmava fantasias. Eu penso que é precisamente o contrário.
– Prova!
– Há dois dias atrás, vi um filme na Cinemateca, do Sr. Langois, director da Cinemateca, sobre os Lumière. E este filme provava que os Lumière eram pintores. Ele filmava as mesmas coisas que os pintores contemporâneos deles, tal como Pissarro, Manet ou Renoir.
– Filmavam o quê?
– Eles filmavam as gares, os jardins públicos, os trabalhadores a saírem das fábricas, os homens que jogavam cartas, os comboios.
– Queres dizer que ele foi o último pintor impressionista?
– Isso mesmo! Ele era um contemporâneo de Proust.
– Mas o Méliès também fazia a mesma coisa!
– Pelo contrário! O que fez o Méliès na altura? Ele filmou a viagem até à lua. Méliès filmou a viagem do Rei da Jugoslávia ao presidente Fallières. Agora, podemos dizer, que eram reais acontecimentos da actualidade. Tu ris-te, mas é verdade. Ele criou os eventos da actualidade. Ele recriou os eventos da actualidade. Mas eram acontecimentos da actualidade. Eu diria até que Méliès é brechtiano. Não se esqueçam disso, ele era brechtiano.”
Aquilo que em Godard assume um aparente tom doutrinal na figura de Léaud, por detrás de uma mesa, tal qual um professor, quando se dirige aos seus alunos, acaba por ser o verdadeiro gesto cinematográfico, ou seja, escrever o cinema dentro do cinema. Foi sempre esta a sua intenção, fazer a história do cinema dentro do seu próprio cinema e a quem estas palavras levantam questões, diríamos que este, desde o seu primeiro filme, procura inventariar as imagens [o toque nos lábios de Belmondo antes de morrer em À bout de souffle (O Acossado, 1960) e a declaração de que o cinema clássico americano está morto] até às suas Histoire(s) du cinéma (História(s) do Cinema, 1988) onde o cinema estabelece as suas próprias histórias através de imagens que buscam outras imagens.
É claro que Frémaux nunca procurou ser um Godard, mas enquanto educador, eu prefiro as lições de Godard às de Frémaux. Ver o cinema a reflectir sobre o cinema não se limita a um documentário bem intencionado que na sua modéstia parece apenas querer afirmar: “eu vim aqui apenas vos revelar as imagens e as histórias dos Lumière”. Contudo, revelar não faz parte do gesto primordial inscrito no cinema? Então que a modéstia e as boas intenções dos educadores fiquem pelas salas de aula e conferências e deixemos os cineastas, os verdadeiros educadores, ensinar cinema através do cinema.