A RTP2 está de parabéns. Nos últimos tempos tem brindado os espectadores com documentários valiosos sobre os mais variados assuntos, entre os quais, o cinema. Nesta Civic TV destaco dois títulos: Nos Interstícios da Realidade – O Cinema de António de Macedo (2016) do co-director do MOTELX João Monteiro e Le cinéma dans l’oeil de Magnum (O Cinema Sob o Olhar da Magnum, 2017) de Sophie Bassaier. Os dois – sobretudo o primeiro – são muito bem-vindos convites à visitação ou revisitação de dois universos, respectivamente, o do cinema de António de Macedo, cineasta desaparecido este mês (finalmente, a RTP homenageia no timing certo um nome do cinema português), e o da fotografia de cena comissariada pela famosa agência Magnum Photos, encabeçada por fotógrafos de renome como Robert Capa, David Seymour e Henri Cartier-Bresson. Estes dois documentários são pretextos para se conhecer e para se reflectir acerca dos interstícios do mundo, sobre aquilo que a chamada história oficial do cinema nem sempre soube dar a ver ou quis que víssemos.

O maior elogio que me ocorre fazer a Nos Interstícios da Realidade é que este filme não se reduz, de maneira alguma, a uma tentativa de revisitação e reavaliação da obra do cineasta António de Macedo. É, bem mais que isso, um olhar precioso sobre as cumplicidades, distâncias, preconceitos e desconfianças que minaram a história do Cinema Novo Português. A história do cinema que, por norma, aparece vertida nos manuais tem pouco que ver com a história real, aquela que é feita de acordos e desacordos muitas vezes tão pequeninos quanto: “tu não ias ao café onde todos nós íamos”. Pois é, António de Macedo não deu hipóteses aos da sua geração, porque não se comportava como eles, desde logo, nem punha os pés no pólo onde se esgrimiam argumentos e se formavam facções: o café Vá-vá, em Lisboa. É com esta nota, retive para mim, que começa o documentário de João Monteiro. A partir daqui, percebemos que Nos Interstícios da Realidade é o documento mais valioso que podia ser feito sobre um dado momento da história do cinema português. Pelo ângulo de alguém “posto à parte”, ou melhor, nos interstícios da história, é-nos dada numa bandeja a história dos últimos 50 anos de cinema português. João Monteiro fez-nos o favor de produzir este documento e a RTP2 de o mostrar na hora certa, como homenagem a António de Macedo. Na realidade, mais que isso: como homenagem a um tempo, que ainda é este, mas que se encaminha, tristemente, para um fim.
Com a passagem destes Interstícios, como que se vira a página de uma das mais belas páginas da história do cinema português. É com um nó na garganta que nos apercebemos de quem já não volta mais e que ali fala sobre este cineasta maldito, que nunca foi “da família”. Falo de Alberto Seixas Santos, Fernando Lopes e José Fonseca e Costa, tudo cineastas entretanto desaparecidos. A morte tem um efeito reconciliador além-filme, no sentido em que, exibido nesta altura, em cima da morte de Macedo, fica a sensação que as divergências que separavam os filhos deste tempo foram ultrapassadas, redimidas. Esta gente e este cinema faz já parte de um passado, entrou na grande história de um cinema que vive, hoje, tempos de grande efervescência criativa. Não vou dizer que senti que para João Monteiro a história de António de Macedo foi um pretexto para entrar numa certa “psicologia de grupo” do Cinema Novo, que nem sempre é convenientemente explorada – por algum excesso de decoro – nos textos académicos. Mas o filme não exclui quem descobre em António de Macedo um pretexto óptimo para se fazer essa psicologia. Posto isto, como já deu para perceber, “a coisa foi feia”. Como diz a certa altura António-Pedro Vasconcelos dando a mão a torcer, António de Macedo acabou alvo de uma perseguição ignóbil, “criminosa”. Uma certa cultura que enforma o meio do cinema português é assim posta à vista e devidamente dissecada pelo olhar largo, “compreensivo”, de João Monteiro.
A câmara da Magnum nunca virou a objectiva dos momentos de caos e de tédio de uma rodagem. Tudo o que era diferente, e fugia à ordem hollywoodesca da star e da magia fílmica, era capturado.
Mas sim, este é também um tentador convite à descoberta ou à redescoberta da obra deste cineasta. Posso, contudo, adiantar que a minha relação com António de Macedo nunca apareceu tocada por toda esta mancha feita de preconceitos e “dores de cotovelo”. Sempre foi claro aos meus olhos, desde a primeira vez que o vi, a passar na RTPMemória, a força enorme de um filme como Domingo à Tarde (1966). Não cabe, portanto, na minha cabeça apagá-lo da história do Cinema Novo. Ao mesmo tempo, e contrabalançando, a minha desconfiança – ou descrença – em relação ao período místico ou fabuloso de António de Macedo (que se auto-intitulava um “anarco-místico”) permanece mais ou menos intacta. Se serve de amostra, deixo aqui a impressão que me deixou, durante a projecção do MOTELX há um ano, a derradeira obra de António de Macedo, inicialmente produzida como uma série (que foi exibida na RTP por alturas do Natal de 1992) e entretanto convertida em filme: “O objecto tem vários apontamentos curiosos – a paisagem, os actores e os diálogos documentam um certo país, o real e o do cinema, que hoje já vemos à distância. Todavia, esta obra aguenta mal a sua duração. Sente-se, mesmo após a remontagem tecnicamente esforçada, que O Segredo das Pedras Vivas é um objecto televisivo algo datado, que cumpre com o seu propósito pedagógico-natalício e pouco mais.”
Independentemente das limitações adstritas a este esforço de reabilitação autoral, Nos Interstícios da Realidade é, acima de tudo, um documento inestimável sobre um homem e as suas circunstâncias ou, inverteria a fórmula famosa de Ortega y Gasset, as circunstâncias e o seu homem. Se o mundo académico estivesse, de facto, ligado ao mundo e às novas formas de divulgação do saber, diria até que está aqui uma tese de doutoramento exemplar, que não se limita a coser testemunhos com imagens dos filmes e todo o tipo de informação documental. À pertinência e perspicácia do relato, acresce um fundamental olhar crítico sobre um determinado milieu e uma grande reflexão geral sobre a maneira como uma obra também é produto de uma rede de relações (hoje dá-se a isto o nome pomposo e meio pacóvio de networking), um reticulado de cumplicidades ou afinidades, estéticas, sociais, culturais e, claro, políticas.

Muitos fotógrafos se queixam. Ali não são nem carne nem peixe. Dificilmente são recebidos como parte da família. A grande (e disfuncional?) família do cinema. O problema é que o fotógrafo de cena é também um estranho em fotografia. Henri Cartier-Bresson, que nunca foi um entusiasta deste género de trabalhos, falava da fotografia de cena como “um universo em segunda mão” (citação que retiro de um livro obrigatório para os interessados neste assunto: Magnum Cinéma: des histoires de cinéma par les photographes de Magnum, editado por Alain Bergala). Com efeito, os retratos de estrelas e imagens de rodagens foram durante anos associados apenas a material de divulgação relativamente formatado e pouco imaginativo produzido pelos estúdios por “fotógrafos especiais” para efeitos de publicidade destinada à imprensa mais ou menos tablóide. A agência de fotojornalismo Magnum Photos procurou renovar o olhar da fotografia sobre o ecossistema do cinema, começando, desde logo, por essa máquina de sonhos à beira de se esboroar que era a Hollywood dos anos 50. O documentário que passou recentemente na RTP2, Le cinéma dans l’oeil de Magnum, realizado por Sophie Bassaier (baseada no citado livro de Bergala), é uma introdução valiosa a esta aventura extraordinária – com mais de 70 anos! – que teve na sua génese o seguinte: no curso dos anos 50 a Magnum negociou contratos com estúdios de Hollywood para produzir fotografias de rodagem completamente livres, da inteira responsabilidade dos seus fotógrafos-autores.
Os co-fundadores Robert Capa, David Seymour e Henri Cartier-Bresson foram só alguns dos fotógrafos que trocaram as ruas ou os cenários de guerra (guerra real) pela actividade do estúdio (guerra fabricada). Algumas das imagens mais intemporais da história do cinema resultaram desta aproximação da Magnum ao universo da Sétima Arte. As fotografias de Eve Arnold tiradas a Marilyn Monroe e as imagens, premonitoriamente assombradas pela morte, de Dennis Stock obtidas na companhia da estrela ainda em afirmação James Dean, durante uma road trip à sua terra natal em Fairmount, Indiana, são alguns dos marcos de um longo período de associação da grande arte fotográfica com o cinema. O que os fotógrafos da Magnum buscavam era um outro olhar sobre as pessoas do cinema, um olhar que as devolvia à sua dimensão terrena. Ao mesmo tempo, o trabalho em cinema era desglamourizado. A câmara da Magnum nunca virou a objectiva dos momentos de caos e de tédio que são parte constituinte de uma rodagem. Tudo o que era diferente, e fugia à ordem hollywoodesca da star e da magia fílmica, era capturado. Contudo, esta não era uma visão que procurava diminuir ou até desmitificar o universo cinematográfico.
As fotografias que nove fotógrafos da Magnum tiraram, em exclusivo, no set de The Misfits (Os Inadaptados, 1961) tiveram um efeito notável. Elas participaram activamente no engrandecimento humano da sua frágil star e, com isso, foram um testemunho fundamental para se ter em Marilyn Monroe um retrato da solidão e do sofrimento que não se esperava obter de uma cintilante, sorridente e sempre apresentável diva. O mito Marilyn não saiu ferido, mas reforçado. Afinal, a sua solidão no filme era uma extensão da sua solidão fora dele (este acabou por ser o derradeiro sopro de Monroe no cinema). Os filmes, finalmente, a imitar a vida. Eve Arnold conviveu de perto com Marilyn e, neste registo intimista, soube elevar a estrela ao humano, ao demasiado humano. A conhecida fotografia que aqui trago é ambientada no deserto do Nevada. Marilyn preparava-se para uma cena – o clímax dramático do filme. Ela está só, naquele deserto. Apetece dizer: nesse seu deserto, pessoal e perto de intransmissível. “Perto de”, porque, milagre, a câmara de Eve Arnold soube auscultar o íntimo da actriz, transmitindo pela linguagem da fotografia essa paisagem interior. Triste e bela.
Nessa foto, Eve envereda por uma estratégia de sobrevivência recorrente no fotógrafo de cena, uma vez que este também raramente sabe ao certo onde está e para onde deve ir. Por norma, ele não conhece, em rigor, o filme que está a ser rodado – e a obra que resultará dessa rodagem – tal como está ali apenas de passagem ou numa função subsidiária, num “universo em segunda mão”. Por isso, precisa de se agarrar a algo. Ou produz um retrato genérico sobre o “trabalho em cinema” (antes, durante e depois da rodagem) ou agarra-se às pessoas que tem à frente. É aqui que a câmara com a marca Magnum ilumina qualquer coisa maior. Um maior muito mais pequeno do que a indústria desejara até então deixar passar cá para fora. Afinal, as estrelas são pessoas, seres quebradiços com angústias, medos e inseguranças. Só a fotografia poderia – na sua fixidez altamente especulativa – dar a ver tanto a partir do coração da fábrica do cinema.