Vejo ou revejo parte da obra de Philippe Garrel e confirmo uma impressão antiga que tinha: o seu cinema oscila entre a vontade de fuga e a tragédia do abandono. Na origem dessa vontade está o tédio. Num extraordinário momento televisivo, disponibilizado online aqui, vemos um Garrel com apenas 19 anos a falar da sua obra de estreia, Les enfants désaccordés (1964). O interlocutor pergunta-lhe do porquê de, ainda tão novo, ter experimentado o cinema. A sua voz trémula denuncia timidez, mas a velocidade na resposta não deixa dúvidas sobre a convicção do jovem cineasta: “fi-lo porque estava aborrecido”. Os três filmes lançados pela editora Re:Voir que aqui trago, obras situadas nos anos verdes de Garrel, anos de tédio, rebelião e abandono (o seu chamado período underground), são paradigmáticas de uma obra que se manteve – até aos dias de hoje – resolutamente, como um dia escreveu, “sob a perspectiva da juventude”. Para ser mais preciso, Garrel disse, em texto publicado no catálogo da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Philippe Garrel: Uma Alta Solidão: “Não devemos dispersar-nos, senão vamos perder esse belo ponto de vista, a juventude.” Garrel, como sabemos, não a perdeu, mas aqui, em Le révélateur (1968), em Le lit de la vierge (1969) e em Les hautes solitudes (1974), estamos mais próximas dela. A juventude como essência de um cinema empurrado por uma ideia ferida de futuro. Sempre num preto-e-branco cheio de grão, entre a mais luminosa escuridão e a mais escura claridade.
Dificilmente há texto mais belo sobre Philippe Garrel que aquele assinado por Jorge Silva Melo e publicado no catálogo da Cinemateca Portuguesa, «O cinema do filho: à memória de um amigo Benoît Régent». Silva Melo relata como o cinema de Garrel foi sintoma de um tempo, súmula de um sentimento partilhado – vivido, gritado – por uma geração, aquela que embalou os seus sonhos num contexto de insurreição cívica e insubordinação intelectual chamado Maio de 68 (no cinema, este contexto também se chamou Zanzibar). “Drogámo-nos no seu cinema, sonhámos sonhos de sexo e noite, de natureza e corpos, nós os filhos serôdios do salazarismo, que já nada queríamos nem de deus, nem da pátria, e da família apenas aguardávamos a mesada.” Em Garrel, Silva Melo e os seus amigos (Luís Miguel Cintra, João César Monteiro, Helena Abreu, Eduarda Dionísio, entre outros) encontraram um “abandono sentido e sensível”, locus que acolheu o modo do seu sentir, câmara de ressonância de um grito guardado por demasiado tempo. Mas este é o grito dos adormecidos, de personagens sós, “desacordadas”. São elas que fogem de casa, apenas com a “mesada dos pais” no bolso, no primeiríssimo filme de Garrel. Tinha este apenas 16 anos e filmava a fuga de dois miúdos das suas casas em direcção a um éden feito de “natureza e corpos”.
É no abandono e na fuga que o cinema de Garrel se fez homem. Um episódio da sua vida, quando este ainda estava à procura de qualquer coisa que elidisse o aborrecimento, foi marcante para ele. Durante uma sessão de Alphaville (1965), de um dos realizadores que mais o inspiraram – e com quem trabalhou -, Jean-Luc Godard (a sua outra fonte de inspiração maior foi Jean Eustache), Garrel relata que viu um casal sentado à sua frente que se levantou e saiu da sala após somente 10 minutos de projecção. “Naquele dia percebi que seria realizador, e percebi o que me esperava” (Bernard Eisenchitz, «Ano um, premières notes», in Philippe Garrel: Uma Alta Solidão). Portanto, foi no abandono – daquele casal durante um filme de Godard – que Garrel descobriu o embalo que o fez avançar em direcção ao que veio a ser o seu futuro enquanto realizador. Um futuro, como sabemos, sem futuro nenhum. Um futuro que o fez caminhar em direcção às origens primitivas do cinema. Quando este era – citando-o naquela introdução que fez para a televisão do seu primeiro filme – apenas “película exposta”. O cinema de Garrel avança às arrecuas, procurando na superfície das imagens o lugar de uma origem, a de um cinema intensamente sentimental. Profundo na sua intimidade, enleante e imediato no seu gesto. Uma colecção de narrativas que aspiram a uma essencialidade que é puro movimento, pura carne, pura matéria. Matéria da vida como matéria do cinema. Com efeito, também o cinema foge do cinema e abandona-se à experiência. Apaixonadamente, com dor e tremor.
Escreve Eisenchitz no artigo «Ano um, premières notes»: “A narrativa avança a partir de decisões físicas. Como filmar uma cena, a que distância pôr a câmara, quando parar. Parecem ser interrogações que Garrel se põe e às quais ele responde em cada imagem”. A sua primeira longa-metragem, Le révélateur, é um filme mudo – a expressão que vem no DVD é mais feliz: “silencioso” – em que o cinema é o principal assunto. É ele a força (o espírito) que comanda as acções de pai, mãe e filho. A trindade ensaia movimentos, gestos na escuridão, para a câmara de Garrel. Em direcção à luz, no caminho da escuridão, estas personagens são motivos para a câmara. A criança, que no primeiro plano “olha de cima” o casal, que supomos sempre serem pai e mãe, é a presença reveladora (original) aqui. O filme – manda ela, a câmara, manda ela, a criança – é a revelação do preto no branco, do branco no preto. Uma ode à capacidade do cinema de produzir mundos no grão da matéria. Garrel abandonou a Paris “em chamas” dos seus sonhos revolucionários e instalou-se nos arredores de Munique para filmar esta epopeia em 35mm, num preto-e-branco assombroso – quer dizer, intensamente assombrado -, obra que nasce de dentro, das entranhas do seu gesto – dos movimentos ensaiados, “tentados”, das suas personagens, mas sempre comandados por esta criança reveladora pós-rosselliniana. É ela a figuração desse gesto de fuga – que, já vimos, é também um gesto de abandono – da “monstruosidade” – palavra de Garrel, mas que pertence também ao realizador de Week End (Fim-de-Semana, 1967) – que é o mundo dos adultos?
Contra a ordem dos adultos, ao arrepio de um cinema entendido como ordenação, Le révélateur inscreve-se no domínio do puro milagre cinematográfico. Na infância do cinema de Garrel está a matéria – o imaginário mais profundo e íntimo, apetece enfatizar – da infância ela mesma. Concretiza-se um Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948) que é pura matéria: a criança, que comanda o movimento, da câmara, do mundo, do cosmos, é a criança que a câmara quer e acaba por ser, em cada movimento, cada gesto, cada fôlego. Estes planos, ou melhor, esta infância posta em planos – travellings levitantes que fariam a assinatura do olhar garreliano, e que atingiriam nova culminância, já em cores, em La cicatrice intérieure (1972) – suga-nos os olhos e o espírito. O ambiente enleia-nos até ao mais ínfimo grão da matéria – a tal película exposta que não é cinema, que é, na realidade, qualquer coisa para lá de… A origem de tudo, enfim. É preciso regressar sempre à origem. Garrel bate-se por este retorno à origem. A sua revolução acontece na superfície da película, no preto-e-branco e nesse ângulo da juventude que tudo atravessa. Nem de propósito, à Sabrina D. Marques e à Mariana Castro – entrevista À pala de Walsh que é obrigatório ler – disse: “Há hoje quem diga que o filme a preto-e-branco vai extinguir-se um dia, mas é impossível que desapareça porque o cinema foi inventado a preto-e-branco. Não podemos abandonar a origem, existirá para sempre” (sublinhado da minha autoria).
O que há, por exemplo, para lá da fuga e do abandono que faz o verso do cinema-poesia de Garrel? Le lit de la vierge, obra filmada entre Marraquexe, Roma e a Bretanha, volta a convocar um espaço mitológico. A trindade é sugerida aqui de outro modo. Há um homem, uma criança-homem encarnada por Pierre Clémenti, e uma mulher, Zouzou, que, como escreve Philippe Azoury no booklet do DVD, é simultaneamente a virgem e a dissoluta, isto é, Maria, mãe de Deus, e Maria Madalena. O oxímoro sugerido no título concentra, in nuce, a proposta deste filme sobre um homem que é uma criança, uma mulher que é duas mulheres. Le lit de la vierge é a história de um profeta sem Deus, encenação, em requintado e pomposo scope, de uma não resposta. Uma não resposta que faz palco debaixo do manto sagrado que é o preto-e-branco nesta fase da obra de Garrel – em certo sentido, ainda é sagrado hoje em dia. Clémenti grita, desesperado, pelo Pai, mas este não responde. Num mundo revirado pelo caos, pela destruição e pela guerra, o profeta, órfão de pai e sem apóstolos, sem passado e sem futuro, agita em vão o gesto de uma revolução perdida. Ainda aqui Garrel pisa os escombros do Maio de 68 – a última vez que o fez assim foi em Les amants réguliers (Os Amantes Regulares, 2005), convocando a utopia revolucionária em pleno espaço de disputa e desagregação sentimentais.
A esperança que uma força maior advenha, se revele nesse contacto sensual com o mundo, encerra-se nas “quatro paredes” de um rosto. Les hautes solitudes é o mais assombrado dos filmes de Garrel. Triunfa nele não o movimento desse travelling alado, mas o do campo clarividente, arrepiantemente lúcido, que delimita o grande plano. De tanto andar – para trás como para a frente – Garrel atingiu o coração do mu(n)do. Só isto: uma câmara filma, em silêncio, o rosto de uma actriz. Uma não. A solidão aqui – mesmo não deixando de ser o que é – tem companhia: Jean Seberg, Tina Aumont, Nico e Laurent Terzieff. Figuras, sim, talvez não personagens, mas todas elas abandonadas à exposição da película. Ao centro está, claro, Jean Seberg, a antiga musa de Godard e Otto Preminger. Ela pára o frémito da câmara de Garrel. Ela pára o movimento cosmológico da câmara de Garrel para afirmar uma presença, uma que se revela nua, desglamourizada, frágil. E o filme é como ela. Um aura quebradiça emana de cada um destes planos, todos produzidos sobre película já usada. Garrel filmou Les hautes solitudes com restos de stock doados de outras produções. Um filme sobre a solidão (a depressão e a morte) que, como nota Ben Sachs no booklet do DVD, é um pouco como ela: desde logo, na sua matéria, este filme foi feito mediante o aproveitamento dos restos frágeis de outros filmes. Um filme-resto sobre uma estrela que já não brilha. Há qualquer coisa sedutora, abismalmente bela, na depressão. Esta linguagem da depressão é o que a câmara de Garrel tão eloquentemente articula. Através do rosto, da experiência próxima e intensa do rosto, esse rosto desmaquilhado de radiante beleza, Garrel diz ter visto “a alma” de Seberg.
Les hautes solitudes é um filme sobre a geografia de um rosto, as expressões e os lapsos ou as brechas entre as expressões. Um microteatro encena-se em cada um desses lapsos. A certa altura, Tina Aumont escova o cabelo de Seberg. É um momento de cumplicidade no feminino que nos pode fazer pensar – ou sonhar – com Kenji Mizoguchi. Garrel faz o seu cinema nesta grandiosa micro-escala do gesto e do rosto. Não ouvimos nada para vermos mais e melhor. E tudo vemos – até ao coração, até à alma – desta existência chamada Jean Seberg, deste estado chamado depressão, deste fim chamado suicídio – foi o dela, em 1979, no dia em que Garrel, conta o próprio, atravessou a feira da ladra, irradiando felicidade por ter concluído um novo filme. Um filme começa, uma vida acaba. Às vezes é ao contrário. De qualquer modo, o cinema de Garrel – isto é, a sua vida, também – está inextricavelmente ligado à morte. Perdeu Jean Seberg, perdeu Nico, perdeu o amigo Eustache. Perdeu muitos amigos e amores, perdeu muito. Tanto que os seus títulos – os mais belos do mundo – celebram quase sempre uma qualquer ideia de fim ou uma qualquer espectralidade que convoca, com ardor, as passagens de algo ou alguém que já não está cá, que não se pode mais agarrar e sentir como em tempos. A sombra, o fantasma, a noite, a liberdade, o vento, a fronteira, a solidão. O que é a solidão, afinal? Como filmar a solidão, afinal? Ela é expressão de uma altura ou de uma temperatura (“altas solidões”)? Como dar corpo, matéria, ao trabalho exclusivo da alma?
Jean Seberg. O rosto que fala, que chora, que fuma, que contempla, que sorri. A câmara prescrustra o indizível no rosto que tudo diz. Que tudo diz alto. Bem alto. Afinal, a solidão é altura, temperatura ou intensidade? Aos 19 anos já Garrel ficava nervoso quando se via obrigado a responder às perguntas que os seus filmes suscitavam num jornalista televisivo. Nada mudou desde aí. Garrel deve ser dos cineastas que menos mudaram em tantas décadas de cinema. Mas o seu cinema, como os rostos que filmou, não é estático. Ele é de um dinamismo notável. Tudo acontece neles. Nos rostos mas também nos gestos. São estes que animam a acção de Les hautes solitudes. O rosto fala, chora, fuma, contempla e sorri. Mas os dentes também mordem o lábio, também a mão toca na pele e cobre o lábio mordido. Os olhos semi-cerram, os lábios murmuram palavras que não ouvimos. Esta é uma solidão agitada, convulsa. A câmara faz do peso, temperatura e intensidade do rosto – só do rosto, um rosto só – material para uma escultura viva, uma escultura do tempo. Do tempo e ao tempo. O tempo, como sabemos, passa; logo, caminha e encaminha para uma extinção qualquer. É um caminho pedregoso, nuançado. Os gestos estão lá para assinalar a dramaticidade deste tempo feito rosto, deste rosto feito tempo. A câmara só tem de os filmar, em todos os seus magníficos acidentes. Por fazê-lo, assim, tão candidamente, Garrel torna-se, na senda de Louis Lumière e, claro, de Andy Warhol (outro dos seus “pais” no ecrã), o mais puro dos insubordinados.
Este texto resulta de uma parceria com a editora francesa Re:Voir. O À pala de Walsh aproveita a estreia em sala este mês do mais recente filme de Philippe Garrel, L’amant d’un jour (O Amante de um Dia, 2017) para revisitar Le révélateur, Le lit de la vierge e Les hautes solitudes nas melhores cópias possíveis existentes no mercado home cinema. As edições da Re:Voir contam com legendas em inglês e contêm, cada uma, um booklet (do qual extraí algumas citações identificadas no texto acima publicado).
Os DVDs em questão podem ser adquiridos aqui (em pack) ou aqui (individualmente). O fabuloso catálogo da Cinemateca citado, Philippe Garrel: Uma Alta Solidão (editado por Neva Cerantola e Luís Miguel Oliveira), pode ser adquirido na livraria Linha de Sombra.