Perguntaram-me por estes dias o que é que eu recomendava dos filmes que estão agora em cartaz ou prestes a estrear. Assim como quem pergunta pela fruta da época. Não é coisa que me aconteça com muita frequência, e fiquei contente por acertarem em cheio na altura de pedir tal conselho, uma vez que calhava ter uma resposta pronta. Pois bem, depois de, com os olhos arregalados, ter pronunciado o título do filme e o nome do realizador, caí numa invulgar desorientação ao perceber que nenhum dos interessados conhecia um ou outro… Atenção: não fiquei neste estado pelo facto de os meus interlocutores não conhecerem Aki Kaurismäki, mas porque senti momentaneamente aquele friozinho causado pela vertigem de quem quer explicar a importância de algo aos outros e não sabe como. Respirei fundo com os meus botões, o mais discretamente possível, e comecei por dizer: “bem, é um realizador que reduz tudo ao essencial.”
E o essencial neste Toivon tuolla puolen (O Outro Lado da Esperança, 2017) está, por exemplo, na belíssima cena em que um grupo de sem-abrigo, saídos da escuridão como zombies anjos-da-guarda, se atiram a um bando de arruaceiros, à pancada, para defender um refugiado por eles atacado. Ou naquela outra em que a angústia silenciosa desse refugiado, Khaleb, sozinho num pequeno bar, é contrariada pelo histerismo de um músico de rua, equipado de guitarra e harmónica, que ao lado canta energicamente “I hold you, I hold you tight. We’ll make love through the night…”. O essencial de Kaurismäki é, por outras palavras, essa ternura que se manifesta de forma inusitada, no mais lacónico dos cenários, com um profundo humanismo que dispensa muita ginástica facial (há, aliás, um momento em que outro refugiado diz a Khaleb que não mostre grandes sorrisos, porque se arrisca a ser tomado por maluco).
O essencial de Kaurismäki é, por outras palavras, essa ternura que se manifesta de forma inusitada, no mais lacónico dos cenários, com um profundo humanismo que dispensa muita ginástica facial.
Ao cineasta finlandês interessam as histórias “invisíveis” da realidade, como a de Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990), que nasceu da unidade mínima de um fósforo. Conta ele que pensou apenas: quem fez o fósforo? Talvez uma rapariga. E por aí adiante. Do mesmo modo, a história de Khaleb, um refugiado sírio que procura uma nova vida na cidade de Helsínquia, é mostrada em Toivon tuolla puolen como uma realidade que se ignora, ou que se faz por ignorar (nomeadamente, negando que haja guerra em Alepo, de onde vem o jovem, e assim, negando-lhe asilo). Neste segundo título da trilogia portuária iniciada com Le Havre (2011), que já contemplava a situação de um menino imigrante clandestino, Aki Kaurismäki confronta muito diretamente os seus compatriotas com a situação dos refugiados. E fá-lo na mesma lógica narrativa de Le Havre, encontrando um benfeitor para Khaleb, desta vez num ex-vendedor de camisas (Sakari Kuosmanen) – alter-ego do realizador? – que decidiu comprar um restaurante prestes a ir à falência. Eis a delícia: este restaurante será o posto central da dialética do próprio Kaurismäki. A saber, o local onde a modernidade procura entrar, na forma de pratos de sushi, sob a vigilância de uma jukebox e de um poster de Jimmy Hendrix. É nesse espaço antiquado, onde se pratica o ato ilícito de acolher um refugiado, que reina a tragicomédia da kaurismakilândia, sempre a medir as personagens na sua humanidade e na relação com um tempo que não lhes diz nada – assim como um carro moderno nada diz ao realizador.
É também no salão desse restaurante que, a certa altura se vê representada a alma finlandesa, na sequência do baile com uma banda ao vivo. A propósito de tal imagem/imaginário tão frequente no cinema de Kaurismäki, escreveu o historiador e amigo Peter von Bagh: “Dolorosamente familiar a todos os finlandeses, o pavilhão de baile representa uma experiência partilhada, a busca comum da felicidade. As emoções são sempre as mesmas: melancolias, tragicamente insatisfeitas, curiosamente imaginárias. Aki Kaurismäki é a alma gémea deste quadro ao ponto de ter construído o seu próprio salão de dança (…).” É a filosofia cinematográfica a contaminar a filosofia de vida, ou vice-versa. Possivelmente, a definição mais bonita do filme que este finlandês repete a cada nova película, e que é sempre, para nós, como um sonho muito tangível. Um sonho de 35mm, que ansiamos que nunca mude.
Aberta a todos, a dança continua.