Depois de ver esta fulgurante obra prima do cinema iraniano e depois de zigezaguear, ao modo de Kiarostami, por entre extraordinários textos que se debruçaram sobre este amor resistente e por estas oliveiras – e falamos de nomes como Jonathan Rosenbaum, Alain Bergala, João Bénard da Costa, João Botelho ou Jean-Luc Nancy – lembro uma expressão que, salvo erro, ouvi uma vez a José Tolentino Mendonça: “as perguntas são máquinas de fazer ver”. Desta feita, pergunta-se, pergunto-me, o que de interessante há a escrever que não tenha já sido escrito e reescrito sobre o filme. Resolvo partir de uma intuição, a de que Zire darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994) funciona na obra do cineasta iraniano como uma espécie de nó que une dois tecidos bem coloridos do seu cinema: a formação dos jovens e a importância do cinema. É por aqui que caminharemos.
Na carreira de Kiarostami costuma designar-se Através das Oliveiras como o filme que encerra a trilogia de Koker. Os outros dois são Khane-ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), obra que despertou a atenção do mundo para o cinema do iraniano, tendo vencido o Leopardo de Bronze em Locarno, e Zendegi va digar hich (E a Vida Continua, 1992). A razão de ser desta ligação não é apenas geográfica – os três filmes passam-se em (ou nas imediações de) Koker, uma vila no norte do Irão a cerca de 350 quilómetros de Teerão – mas também porque a própria narrativa vai encadeando os filmes. Assim, no filme de 1987, Kiarostami filma a odisseia do jovem Ahmed que, tendo levado por engano o caderno dos trabalhos do seu amigo, tenta desesperadamente encontrar a sua casa para lho devolver, e assim evitar um severo castigo do professor. Em Junho de 1990 um terramoto assolou o Irão, junto ao Mar Cáspio, tendo provocado para cima de 50.000 mortos e muitos mais desalojados, num cenário de incrível destruição. Kiarostami, preocupado com o destino das duas crianças que tinham assumido os papeis principais em Khane-ye, resolveu fazer uma viagem com o filho até Koker para saber do seu paradeiro. É essa a motivação real que dará o impulso ficcional para o road movie, E a Vida Continua. Durante a viagem o pai, realizador de cinema, e seu filho, Puya, em busca “da casa dos amigos”, uma das pessoas que encontram é Hossein que, apesar da morte de muitos familiares, resolve casar-se no dia a seguir ao desastre. Através das Oliveiras, filmado por Kiarostami dois anos depois, é a história deste casal tornada filme, ou melhor, da história que envolve a rodagem desta cena. Como se fosse um grande travelling atrás que vai revelando mais pormenores da realidade do filme anterior.
Se é verdade que estas ligações reúnem as três obras, não é menos verdadeiro que Zire darakhatan zeyton parece ser o filme do meio de uma outra trilogia dedicada à reflexão da natureza do cinema e sua relação com o real. Esta é completa por Close Up (1990), talvez o maior dos maiores filmes de Kiarostami, e Dah (Dez, 2002). No primeiro, nascido de um caso verídico, Kiarostami filma o processo judicial de um homem que durante algum tempo se fez passar pelo realizador iraniano Mohsen Makhmalbaf devido à sua extrema paixão pelo cinema. Paixão essa que, apesar do castigo social que sofre, acaba por ser recompensada ao poder entrar num filme de verdade, problematizando-se a relação entre cópia e original, entre a ficção e a realidade. Já Dah, que podia ser visto como uma continuação do desenvolvimento da complexa personagem feminina deste filme, a assistente de realização Shiva, é o primeiro filme de Kiarostami verdadeiramente de, e sobre, mulheres. Cinematograficamente são dez cenas de conversação entre uma condutora e os seus passageiros-pacientes, filmado com duas câmaras montadas nas portas do carro.Mas ainda não falamos da dimensão desse “quem é ele, o cinema?” em Através das Oliveiras. O filme começa com esse plano de um dos primeiros actores profissionais do cinema de Kiarostami, Mohamad Ali Keshavarz, dizendo para a câmara que é o actor que faz de realizador daquele filme e que estão junto de uma escola reconstruída, em Koker, para fazer um casting para seleccionar a protagonista do seu filme. Portanto, nisso que qualifiquei como um travelling atrás de E a Vida Continua a Através da Oliveiras, os realizadores devém actores: não só Mohamad, mas sobretudo Farhad, o pai do menino do filme anterior, que aqui é mais um actor, contracenando com o protagonista Hossein, na célebre (e repetida cena) em que este pergunta, chateado, pelas meias à mulher. A repetição dessa cena, e sobretudo a sua encenação, mostra bem aquilo que Kiarostami quer problematizar. Desde logo, a partir da separação dos espaços: quando a câmara do realizador no filme capta o diálogo de Hossein e Farhad, nós vemos apenas as escadas cá em baixo, como um espaço reservado ao sonho do cinema. E nunca o filme se passa em cima, na varanda, o espaço da realidade, onde vamos assistindo à obstinação do amor de Hossein por Tahereha. A esta relação, que o filme no filme não capta, temos acesso somente quando a “câmara real” (a do realizador Kiarostami, e não a do contracampo da cena que está a ser rodada) nos resolve mostrar essoutro cinema, directamente provindo da realidade. Ou seja, quando julgamos que ao filme lhe escapa o verdadeiro cinema – o do amor de Hossein pela jovem – o verdadeiro cinema dá a ver o filme e tudo o que o rodeia, esbatendo-se as fronteiras entre os espaços da ficção e da realidade, entre o downstairs e o upstairs.
Aqui chegamo-nos lentamente ao meu ponto de partida, a relação de proximidade entre o ensino e o cinema. E ela começa por poder ser percebida através dessa separação dos espaços que é afinal uma ilusão. Através das Oliveiras tem sido considerado como um filme rosseliniano na medida em que a extensão de toda a sua mise-en-scène mostra ao espectador que, mais importante do que a construção do realismo no filme (que deveria levar o realizador a substituir a actriz, pois que ela se recusa a falar com Hossein), é filmar o realismo que vem de fora do filme, isto é, as confissões de amor, o suspense de saber se ela lhe vai dar um sinal, a teoria dos casamentos entre ricos e pobres, letrados e iletrados de Hossein, acompanhado do seu olhar triste. Nesse sentido, o realizador percebe (o realizador actor, e consequentemente também Kiarostami) que o que resiste à ordem das filmagens, o que se impõe da realidade, é o que de melhor poderia acontecer a um filme.
Num incrível texto de Alain Bergala de 2003 sobre a trilogia de Koker, intitulado “A criança, a lei e a ligação”, o autor francês descreve uma possível trajectória entre os três filmes através do percurso da criança. Em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, Ahmed tem cerca de 8 anos, em E a Vida Continua, Puya, é um pouco mais velho, talvez 10 anos, e em Através da Oliveiras é já um adolescente. Visualmente traduzido pelos longos caminhos em ziguezague (omnipresentes na trilogia), geografia simbólica que traduz uma procura existencial, um caminho individual pleno de obstáculos e de testes à perseverança. Em Kiarostami o processo de crescimento surge como uma constante “exposição à estranheza”. E, próximo de uma natureza kafkiana, surge esta noção de que, quanto mais os protagonistas perguntam o caminho que procuram às pessoas que passam, mais perdem as coordenadas espaciais e afectivas da sua odisseia pessoal.
No filme de 1987, Ahmed procura a casa do amigo e procura também constituir um espaço de aprendizagem da amizade e do altruísmo. Pouco depois, com Puya, a referência da casa perde-se, ou melhor, transforma-se: o terramoto destruiu a paisagem e a casa devém automóvel, uma casa ambulante que cede ante a necessidade da viagem. Outra modificação de um filme a outro é a presença paternal que passa da mera figura ausente ou repressiva, como acontece com o pai de Ahmed, para a figura do pai-realizador de Puya, que o ajuda na travessia de descoberta do espaço. Finalmente, em Através das Oliveiras, o que se busca é o amor e Hossein, pedreiro, sabe que não basta procurar a casa do amigo, mas construir a sua própria. E o seu território desconhecido, além dos assuntos do coração, é também o cinema. Lugar de onde paradoxalmente surge a sua figura parental, o realizador que, ao longo do filme, o vai ajudar a compreender os seus sentimentos e a tentar conquistar o coração de Tahereha.
E se já em E a Vida Continua podíamos falar dessa relação entre o pai que educa e o realizador que dirige, pois Farhad concentra em si ambas as funções, essa junção torna-se mais evidente neste filme posterior. Não só o realizador de Através das Oliveiras representa, como se disse, um pai para Hossein, como é ele que vai cruzar (anular) as fronteiras que separam o décor de cinema, do décor da vida, lugar de onde as crianças assistem à filmagem. É ele que perguntará às crianças o que significa uma palavra chave para a pedagogia e para o cinema: cooperação. É ainda a ele, e ao seu carro, quem as crianças seguem, como se de um verdadeiro professor se tratasse. É por estas razões que defendo que Através das Oliveiras é uma obra essencial para compreender tanto a importância da infância na obra da Kiarostami (e lembre-se que toda a primeira metade da sua carreira foi feita no contexto e com o suporte da Instituto para o Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Adolescentes), como pela relação próxima que o cinema desempenha nessa trajecto formativo das crianças.
Mas esta relação parece, mesmo assim, ser incapaz de definir todo o esplendor do cinema de Kiarostami. É que o espectador dos seus filmes, não devém criança, mas participa desse mesmo trajecto de procura, de desdobramento, de preenchimento dos espaços abertos que o cineasta vai tecendo. É aliás famosa a formulação de Jonathan Rosembaum que vê a mise en scène do iraniano como uma arte de produção dispositiva de vazios que o espectador irá preencher. São, entre múltiplos exemplos, os famosos “finais abertos” de Kiarostami. E aqui seria engraçado pegar nesta relação de distância da câmara ao objecto filmado. Filmes como Close Up, E a Vida Continua, Através das Oliveiras trabalham esse jogo de escala. Por um lado, eles aproximam, fazem “close up” sobre uma meticulosa acumulação de incidentes, conversas, encontros do quotidiano, tecem o concreto da vida e da passagem do tempo. Mas, no final, esse close up desfaz-se: Kiarostami tira o som da conversa do protagonista de Close Up, abraçado ao seu herói, Makhmalbaf, filmado de longe, numa viagem de mota pela cidade; ou termina os filmes com planos muito gerais – Rosembaum descreve-os como cósmicos – em que o concreto devém abstracto e as personagens, figuras, pontos perdidas na montanha ou no campo.
No caso concreto de Através das Oliveiras, o seu plano final permite aos optimistas falar do sim que não ouvimos de Tahereha, ou aos pessimistas da desistência final de um homem resignado. Mas nele ainda pode acrescentar-se as “oliveiras” do título, uma vez que são elas o palco e o espaço dos segredos, da abertura do coração, dos caminhos, da persistência, de uma magia do cinema que vem de uma discrição universal. E é esse paradoxo todo o poder desta obra-prima: Hossein fala do chá que uma vez lhe servirá ele, outras ela, de que nunca se chateará por um par de meias, do dinheiro que vai poupar para lhe pagar os estudos. Mas tudo o que lhe diz é nos intervalos da rodagem, no encoberto das folhagens das oliveiras, no espaço da intimidade do verdadeiro amor. E Kiarostami, filma esse segredo, esses suspiros de amor, e entrega-nos a cada um de nós, como se fosse um presente ainda por revelar, uma coisa frágil que o espectador recebe e protege, como medo de a partir. É o maravilhoso poder universal da fragilidade, do singular acto da existência de cada um. E esse jogo – entre o que está perto e está distante, entre a fragilidade da flor e a dureza da pedra – é o próprio filme que arranja as palavras para o descrever. O cinema de Kiarostami tem esse poder do suspiro do coração de Hossein, capaz de abalar toda a terra no seu batimento obstinado de amante que nunca pára de caminh’amar.
Zire darakhatan zeyton será exibido na quarta feira (dia 18 de Outubro), às 19h00, no Espaço Nimas, no âmbito do ciclo, organizado pelo À pala de Walsh (que celebra 5 anos de existência) com a Medeia Filmes e Leopardo Filmes, Quem és tu, cinema?. Segue-se à projecção uma conversa com Clara Rowland (docente universitária) e Teresa Garcia (Directora da associação “Os Filhos de Lumière”). A moderação fica a cargo do walshiano Ricardo Vieira Lisboa.