O Afonso Mota não é estranho aos recantos do À pala de Walsh. Foi um dos nossos convidado para a LisbonTalk de 2016 “A Internet como forma-cinema“, foi alvo da crónica do Luís Mendonça dedicada ao desktop cinema, foi um dos participantes da última série dos Filme Fetiche, com Dente de Crocodilo, e foi um dos realizadores da primeira sessão das Apostas, no Reverso 2016. Com Aos Nossos Amigos (2017), chegou a altura de uma entrevista. Mas esta não foi uma proposta inocente. Tenho, nos últimos anos, visto e programado as suas curtas em diferentes ocasiões. Apresentei e moderei conversas com ele. Fomos tomando uns cafés e trocando umas impressões. Ele tem uma conversa fácil e eu tenho bons ouvidos. E, sinceramente, admiro-o enquanto pessoa e enquanto realizador.
Logo desde Sala Vazia (2015) que, no seu transbordamento plástico do mundo das redes sociais para o mundo da carne e do toque, o trabalho do Afonso me surpreendeu. Depois, veio O Sul (2016), esse falso esqueleto reconstruído, peça por peça, de uma aventura sul-americana sem final feliz. E agora Aos Nossos Amigos, um objecto estranho, que remete para o cinema da nouvelle vague, quando a vontade era mais forte que o desejo. Este é um filme-políptico, em quatro painéis, que retrata um conjunto de amigos, entre o ficcional e o documental, entre o muscial e o pictórico, entre o sentimento e o respeito. Mas este filme é também um sinal. Sinal de uma geração do cinema português – que muito bem se poderia apelidar de geração whatever – que começa agora a despontar. Filmes feitos quase sem dinheiro e por amizade. Uma geração que trabalha segunda a ideia da entreajuda. A favor dos filmes. A conversa que se segue reflecte o Afonso, reflecte o seu cinema, mas reflecte também o ar dos tempos. Boas aragens!
Aos Nossos Amigos estreou no passado dia 15 de Setembro na Fundação Calouste Gulbenkian, e tem seguido em tour pela Grande Lisboa. Esta termina no próximo dia 9 de Novembro na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, às 21h30.
Começando pelo início, o título: Aos nossos Amigos. É uma citação de um livro, certo?
Sim, é. Já leste?
Não…
Também não é muito importante. Mas é um livro muito fixe. Antes o filme tinha outro título, horrível. Este filme começou porque eu convidei o [João] Dória. Se eu não tivesse conseguido que ele entrasse, teria sido muito difícil. Esse foi o primeiro passo. Mas na verdade eu já tinha um argumento de uma média, escrito para ele, que em vez de ser assim, subdividido em diferentes contos, era mais aquilo que acabou por ser, mas com mais ficção. Tinha um protagonista e ele é que nos ia apresentando vários amigos, em vez de ser mesmo a cortar. Mas sobre o título. Tinha esse título ridículo que eu nem me lembro bem… Lembro-me, mas não vou dizer. [Risos] Era mesmo horrível, se te contasse ias ficar bué, what? Mas o filme começava da mesma maneira que este: um gajo acorda de manhã e não há água. E comecei a filmar, só porque sim. Nessa altura a Sara [Graça] estava a ler o livro, eu comecei a ler também e achei que, sendo um livro impossível de adaptar, tinha algo em comum com o filme. É um daqueles livros que, ao princípio, parece que sofre um bocadinho daquela vista de esquerda que ora é demasiado revolucionária, ora está demasiado estagnada. Mas depois o livro, que ao princípio pode parecer isso, acaba por apresentar uma série de soluções para a vida do dia-a-dia, que eu não estava nada à espera. Enumera uma série de coisas que estão mal no nosso quotidiano, principalmente atitudes. Aquele parágrafo que se sublinha no filme é exactamente sobre isso; para a reorganização do mundo é mais importante saberes o que estás a fazer do que imaginares o que devias fazer bem: trabalhares na coisa. Achei que isso se reflectia um bocado no processo da Cafetra, porque eles, antes mesmo quererem ser alguma coisa com o que faziam, eles queriam era fazer coisas. Lembrei-me também do título do álbum do Chico Buarque, Meus Caros Amigos. Mas aí é uma coisa mais pessoal. Ainda pensei em Meus Amigos, mas não gostava. E acabei por ficar contente com esta espécie de adaptação impossível de um livro inadaptável.
Ainda sobre o título: quando ele aparece no filme, dá-se um freeze frame, num plano em que uma série de pessoas – presumo que sejam os teus amigos – se apercebem que estão a ser filmadas e se viram para a câmara, e olham para ti. Há aqui qualquer coisa de filme-oferta, não? De ti para eles e deles para ti.
Pois, eu nunca pensei nisso assim. A palavra oferta é meio estranha. É mais partilha do que oferta. Eu pedi-lhes para fazerem parte do filme e eles aceitaram, também porque tinham gostado das minhas curtas anteriores. E achavam também piada eu ser a pessoa perto deles que faz filmes, e lhes filma os videoclipes e os concertos. Por isso, sim, é uma partilha. Queria filmar com eles e eles sentiam-se à vontade em filmar comigo, porque também já os tinha filmado antes. Percebi também, logo no início, que não dava para fazer um documentário sobre a Cafetra, que tinha que ser um filme sobre aquele sentimento de começo, de não ter nada e fazer à mesma. Mas eles estão já numa fase completamente diferente, no segundo ou terceiro álbum já financiado ou com distribuição e com um público já bem assente. Ainda estou como eles estavam ao início, sem nada, só com people a dar bolas negras no Expresso. Mas voltando ao título, a ideia nem era que o título surgisse dessa maneira, isso resultou de uma brincadeira de que eu gostei e decidi manter. Mas por aí já começo a ver mais a oferta, esse plano é a oferta mais assumida do filme. É o único em que digo que estou lá com eles. Ainda que se sinta isso também no resto do filme.
Além da citação que está no título, e cujo livro surge mais à frente no filme, há aquela passagem sobre a queda e a gravidade…
Esse é outro texto que a Sara andava a ler, de uma artista de que eu gosto bué e que fazia questão de homenagear porque ela faz filmes incríveis, Hito Steyerl. Alguns estão no Ubuweb. Ela é uma vídeo-ensaísta incrível, muito boa. Porque tem um poder de atracção bizarro. Ela decide fazer um filme sobre determinado tópico, inicia um caminho e depois é inacreditável a forma como ela cria as ligações entre todas as coisas. Mas se eu tivesse que escolher, entre os dois textos, escolheria claramente o Aos nossos amigos. Porque, de uma forma mais sucinta, relaciona-se com o todo do filme, por causa da questão da configuração técnica em vez da imagem traçada no futuro.
Mas não achas que descreve os personagens, essa ideia de que quando estás a cair deixas de sentir a gravidade e é como se por uns instantes te imobilizasses.
Sim, claro, acho que descreve. Mas não é muito mais interessante do que isso. Eu podia, no entanto, ter impresso a página, ou arranjado o livro e quis que fosse uma imagem de um ecrã de computador. No entanto há quatro textos que surgem no filme, e eu queria recuperar um bocado o tempo de ler coisas no cinema. Que é algo que está cada vez mais a perder espaço. Queria que se percebesse que aquelas pessoas são de hoje, que também têm computadores e telemóveis, mas que ao mesmo tempo também deixam notas escritas (que é uma coisa que me acontece muito), assim como há quem leia livros em papel e outros que os lêem no computador. Gosto de planos parados, de ter o à vontade de filmar só letras. Depois, estes dois livros são apresentados pela personagem a quem menos os textos se aplicam. Porque é aquela que parece estar mais tranquila com a sua condição. O conto da Sara é aquele em que se está mais confortável, um feeling bom, de acordar, não ter que sair, estar em casa. Não sei se sentes isso.
Para mim é a menos perdida.
Eu começo a reparar que há dois tipos de público, o que divide os quatro contos e o que não o faz.
Para mim as coisas começam-se a misturar a partir do primeiro.
E sim, depois há esse também. Que diz “Dória e depois mais três”. A ideia era essa: quando há o corte entre a Inês [Carvalho], que está nas plantas verdes, e a Sara, que está no acentos verdes do Intercidades, queria dizer que as pessoas são parecidas. A montagem procurou dizer que o que está a acontecer com um podia estar a acontecer com o outro e que as coisas estando a seguir para a frente são também simultâneas. Há uma passagem de tempo, mas de alguma maneira há coisas que parecem estar a acontecer ao mesmo tempo.
Uma das coisas que eu acho muito próprias do filme são os encadeados-fundidos…
Para mim a referência é – sem querer parecer pretensioso – o Apocalypse Now (1979). Quando eu era miúdo achava que os crossfades eram bimbos, e depois vi o Apocalypse Now. É engraçado, porque tenho uma história bué romântica com o filme. A minha mãe proibiu-me de ver o filme em casa – só o podia ver no cinema. Por isso, durante três anos escrevi, nos papelinhos que a Cinemateca Portuguesa tinha para os filmes pedidos, para que exibissem o filme. E eles, durante esses anos, nunca passaram o filme. Cheguei mesmo a mandar cartas que nunca tiveram resposta. Depois, no último dia da década, a 31 de Dezembro de 2010, eles decidiram passar o filme. Devo ter sido eu, que punha dois ou três papelinhos por mês com o nome do filme lá na caixinha. Na verdade eu estava no Porto nessa altura, então vim de propósito à sessão. E claro, adorei. Por isso o Aos Nossos Amigos foi uma espécie de revival de fades. Neste meu filme, o mais óbvio dos fades, é aquele em que o Abras [Miguel Abreu] se transforma no cão. Mas tens logo o inicial quando vais de Putas [Bêbadas] para a Inês – que é uma declaração para a rapariga, se ouvires a letra da música. Um fade tem a coisa de te dar informação sobre duas coisas, ao mesmo tempo. Não é como um corte directo, ali as coisas estão mesmo ligadas de alguma maneira. Mas mais do que uma relação visual, interessa-me a relação física entre as coisas.
Uma das coisas que me surpreendeu bastante é que, por um lado, há uma lentidão muito aérea – diria fluída até, por causa dos fades – e, por outro, também há cortes muito abruptos.
Eu não sou muito fã de cortes desses. O mais óbvio é, claro, o do minete. E esse tinha que ser: é uma precipitação. Depois há também os do comboio que surgem de rompante. Esses cortes, por acaso, vêm de uma conversa com o [Pedro] Cabeleira. Houve uma altura, quando ele estava a escrever o Verão Danado (2017), que estávamos os dois a ler o mesmo livro: o Vício Intrínseco do [Thomas] Pynchon. Ele estava louco com o livro. Queria imenso fazer um filme assim, cheio de personagens, com um gajo que está à procura de alguma coisa. E nós falávamos imenso sobre essa capacidade que o Pynchon tem de falar de um gajo que está charrado… ou bêbado… e está a pensar numa coisa e de repente a vida continua e ele apercebe-se que já está noutro sítio. E que um pensamento é mais importante que o caminho. Eu achei que isso era um sentimento que talvez fosse possível transmitir em cinema. Foi nesse sentido que procurei ter essa alternância entre ritmos de montagem. Os cortes abruptos serviam também para que o filme andasse para a frente, que interrompessem esse lado prolongado – aéreo, como tu disseste. Eu também depois decidi cortar – ainda que tenha experimentado no início da montagem – todos os campos/contracampos. Este não era um filme assim. Também porque eu achei que isso do campo/contracampo é meio fake… teres que repetir um take. Mas eu não diria que são cortes abruptos, chamar-lhes-ia toscos. Eu queria fazer uns cortes onde eu não me lembrasse bem onde é que estavam. Sem querer ser pretentious, é como ouvir um bom álbum de jazz. Tu sabes mais ou menos quando é que caiem as notas, mas se tentares tocar air drums nunca vais acertar. Há uma cena muito humana nisso. E na montagem – com tanto rewatch – isso acaba por se estragar. Queria que quando estivesse a ver o filme nunca soubesse exactamente quando é que um plano ia acabar. Não são muito calculados, são mais para me assustar. Reajo sempre com surpresa quando assisto ao filme.
Era também sobre isso que eu queria falar. É que há uma musicalidade no filme – na montagem principalmente – que é muito estranha. Estava a explicar a um amigo meu, que a minha primeira reacção foi de estranheza. Mas depois, à medida que o filme avançava, fui-me afeiçoando àquele ritmo. E depois, quando acabou, fiquei triste. Porque já estava embalado por aquela musicalidade, que te conquista.
Um amigo meu usou uma palavra que eu gostei muito: consolador. No filme, há essa primeira parte com o Dória, e com a cena do minete. Falei muito disso com o [João] Eça. É que esse é provavelmente o único momento do filme em que há desejo. Um desejo assumido e concretizado pelos personagens. Mas depois desse primeiro conto, o seguinte, da Sara, já te embala muito mais. Ela é a personagem que só absorve. Ou que pesquisa. Mas não és a primeira pessoa que diz isso. Queria que o filme fosse cozy. Uma massagem… uma ideia de flow.

Estavas a falar doutra coisa que me interessa também muito no filme, que é o tal lado tosco. O filme assume uma certa rudeza.
Acho que os planos são bonitos. E como a minha avó me confirmou – ela mandou-me um mail bué sweet – ela não conseguiu bem perceber o filme, mas ficou triste por achar que a nossa geração está um bocado à espera de achar alguma coisa, meio perdida (embora ela não perceba que nós também trabalhamos…). Mas acabou depois por elogiar muito os planos. Isso foi algo em que eu pensei muito, antes mesmo de filmar. Estive imenso tempo a namorar uma câmara, a pensar se a devia ou não comprar: uma BlackMagic ou uma A7… uma câmara com qualidade, uma DCLR ou uma coisa próxima. Depois, à ultima, cruzei-me com uma câmara de fotografar da Sara – deste tamanho [muito pequena] – e fiz uns testes com os meus irmãos. O feeling da câmara era de quando estás a acordar e o diafragma dos olhos está ainda a fechar e as cores estão todas a rebentar. A câmara tinha isso, algo que as câmaras melhores não têm porque equilibram tudo a partir do branco. Esta câmara primeiro tenta ler o negro e quando se apercebe que não consegue começa a tentar compensar. Parece que a câmara tem uma vida dela. Não gosto nada de dizer isto porque parece que estou a citar o Pedro Costa, que também dizia que quando filmou o No Quarto da Vanda (2000) o grão digital era como o grão da película. Mas eu senti, apesar de tudo, um bocado isso neste filme.
Mas há um lado, no filme, que não sendo exactamente sujo, não é claramente limpo. Não é cristalino como o digital hoje é.
Ah pois, a tosquice. Acho que os filmes se começam a parecer todos um bocado ao mesmo. Deixa-me tentar não falar pela negativa, que não quero generalizar. Mas dos filmes que vou vendo, de colegas, nos festivais e por aí, sinto que a imagem o máximo que é explorada tem mais que ver com a cor – e mais de um ponto de vista da direcção de arte – do que com a expressividade da própria imagem. Se as câmaras hoje conseguem fazer tantas coisas, parece que se explora pouco isso. Sinto que se criou um standard do que um filme com qualidade deve parecer. Queria fazer um filme que pusesse isso em questão. Queria fazer um filme… Aliás, não sei se queria ou se fui fazendo e as coisas foram todas batendo certo. Mas neste filme foi tudo quase sempre correndo mal. Mas os erros e as dificuldades é que lhe deram a piada. E foi também uma desculpa para o que corria mal. Se calhar aquilo que te causou estranheza ao início é que ias à espera de um filme “de cinema”… Gosto de imaginar que quem anda a ver os filmes que eu fiz, o Sala Vazia, O Sul e agora este, perceba que gosto de brincar com os formatos, e que neste procurei fazer uma coisa simples. A imagem muito digital tem um lado muito matemático, não é negativo, é indiferente. Acaba por não ter uma relação real com as pessoas. Mas pode ter, depende da forma como a trabalhas.
A certa altura há uma conversa… enigmática, se assim lhe quisermos chamar, sobre Mondrian. E eu, na minha cabeça, pensei logo num paralelismo entre o digital cristalino e a pintura dele. Para mim o teu filme não é nada Mondrian. É muito mais impressionista.
Pois, eu não escrevi nada daquilo, é a parte mais documental do filme. Eles estavam todos mortos, por causa do ensaio – porque Caveira é mesmo agressivo, suei imenso naquela sala, das cenas mais difíceis de filmar – e quando acaba eles só querem é despejar. Dizer cenas. É o momento mais cómico de bastidores. Mas sim, o filme não é plasticamente nada Mondrian. No entanto há qualquer coisa… uma simplicidade. O Gabriel [Ferrandini] quando fala dele no filme é como quem vê um gráfico onde não tens legendas. Mas é engraçada essa leitura.
Mas eu sei que a certa altura usaste, nessa câmara manhosa, as objectivas do Pedro Costa.
Usei numa parte, mas depois tive que devolver. Por isso, no filme do Dória e nalguns planos do filme da Sara são as objectivas do Cavalo Dinheiro (2014). Depois, a meio, tive que devolver as objectivas. Acabei por usar sempre as mesmas no resto. Por sorte, as objectivas que eu tinha… aquilo não mudava muito no caso da minha câmara. Na correcção de cor as diferenças ficaram mais homogéneas. O que essas objectivas faziam, no entanto, é que me davam mais hipóteses. As que eu tinha eram uma Zoom e uma grande focal, 18 e 28-70mm, e as três do Costa, uma 35mm, uma 50mm e uma 70mm, que de alguma maneira eram diferentes da outra; tinham uma gama maior. Isso depois veio bater certo com o filme, porque no filme do Dória há mais desejo e por isso uma diferença maior entre planos – e há uma orientação –, e depois, ter menos objectivas ajudou para perceber como o filme se ia estender para média. Os problemas que o filme foi tendo, quando estava a rodar o primeiro conto que é mais ficção, acabaram por escrever o resto do argumento. A mudança das objectivas teve grande influência nisso.
Tu fizeste direcção de fotografia na Escola Superior de Teatro e Cinema. E tens trabalhado em vários filmes como director ou assistente. E nisso eu diria quase que é a câmara e as objectivas que escrevem este teu filme.
Sim, concordo.
Depois há aquela ideia de que os directores de fotografia querem sempre trabalhar com a melhor câmara, com a maior definição, sempre pontas-de-lança da técnica. E o teu filme parece contrariar isso.
Sim, as pessoas querem mostrar do que são capazes. Querem mostrar que sabem fazer truques que mais ninguém conhece. No Sala Vazia, eu gostei imenso da trabalhar com o [Afonso] Gaudêncio. Nós queríamos que o filme tivesse um aspecto digital fancy como as próprias personagens desejam. E aí limpei logo essa necessidade de filmar uma coisa com super qualidade. Esse filme foi feito antes da segunda revolução das DCLRs, em que surgem a A7 e a GH4. Senti que eu e o Gaudêncio procurámos fazer um filme o mais tecnicamente perfeito possível. Já n’O Sul o processo foi completamente diferente. Foi um filme só de montagem, explorando diferentes formatos e texturas. Mas soube logo, desde o início, que não queria ter um director de fotografia neste filme. Queria que a equipa fosse composta apenas por mim, por uma pessoa que me ajudasse na produção, que foi a Sara, e um director de som, que foi o Tomé [Palmeirim]. Por vezes, só eu e o Tomé. Decidi não me preocupar com focos nem com panorâmicas. Os movimentos são quase todos bidimensionais, raramente cruzam o plano. Gosto de pensar os filmes pelos métodos de produção, e por isso escolhi uma câmara em que pudesse estar tranquilo. Há filmes e filmes, há uns que pedem mais controlo e outros menos. Foi bom encontrar uma câmara amiga. Andava à procura de uma câmara leve, que não impressionasse as pessoas. Porque estes eram amigos que não estavam habituados a câmaras. Quanto menos a câmara ocupasse espaço no campo de visão deles melhor.
No filme quase todos os planos são muito abertos e trabalhas muito em profundidade. As janelas que se abrem e de onde vês coisas, as estradas, os corredores…
Isso é Paper Moon (Lua de Papel, 1973). O filme que me marcou mais em miúdo, um dos meus filmes favoritos. O Peter Bogdanovich faz isso: os planos continuam e continuam. Isso ajuda a captar a sensação aérea do filme, como disseste. Por veres o tecto e as paredes. Não há contrapicados claustrofóbicos. É muito mais um sentido de castelo, de protecção, de que os sítios são sítios, têm paredes, são de pedra. Mas é verdade que depois de alguns planos mais aproximados ao início, como com o Dória na cama ou depois do crossfade da Inês para Putas, a câmara vai-se afastando. Com o episódio da Sara, como é uma personagem que está mais fechada, achei que era interessante não aproximar da cara, para que ela pudesse não ser só uma, pudesse ser várias personagens. Mas vai havendo uma distância que aumenta enquanto o filme se distende.
Eu sinto que no filme dá-se, por vezes, tanta importância às personagens como aos sítios onde elas estão. Mais que isso, eu confundo-as, já não sei quem é quem, porque não as conheço… Os sítios e as pessoas.
Isso tem também que ver com a amplitude dos planos. Não me queria aproximar de mais, porque sentia que estava já a roubar qualquer coisa que não era bem para este filme. As expressões faciais são para ler emoções e sentimentos que não faziam falta neste filme, que é muito simples, que tem uma carga dramática muito zen. Nesse sentido caras e expressões só iam confundir mais. Além disso eles são figuras públicas: a Sara é artista plástica, e os outros três são músicos – entertainers, que não tem tradução em português. Não gostava de os expor muito. Por exemplo, a rapariga que vemos ir ao Lux, não vês bem quem ela é. Para mim há uma razão muito específica para ser ela, mas para quem vê o filme isso não se percebe. Mas creio que se sente que há um lado muito pessoal na escolha das pessoas, e ao mesmo tempo uma tentativa de as proteger. Protegê-las de mim.
Por acaso sinto no teu filme uma ligação aos sítios que me fez pensar um bocado no filme do Pedro Cabeleira, o Verão Danado. O facto de serem ambos os filmes sobre uma série de espaços de sair à noite, de convívio, que estão alguns deles a fechar. E que os vossos filmes são das últimas coisas que se filmaram antes que fechassem.
Mas há grandes diferenças. No filme do Cabeleira todos eles são personagens que não são lisboetas, e no meu é o contrário. Mas sim, entre o Aos Nossos Amigos, o Verão Danado e o Frágil [do João Eça, ainda por estrear] acaba por se formar um triângulo curioso sobre as pessoas da nossa idade que vivem em Lisboa. Mas depois são todos filmes muito diferentes. O do Eça é muito abstracto e misterioso, sobre sair à noite no Lux. O do Cabeleira é sobre a experiência de vir viver para uma grande metrópole onde estão sempre a acontecer coisas. No meu há uma familiaridade diferente. Fiz questão de que em quase todos os sítios onde filmei aparecessem os donos – à excepção do CRA [Clube Recreativo dos Anjos] (apesar de aparecer um grupo de amigos que são clientes habituais). Para explicar melhor a diferença entre o meu filme e o do Cabeleira, se eu tivesse que escolher entre o Pynchon ou o [Raymond ] Carver, eu escolhia o Carver e o Cabeleira o Pynchon.

Outra coisa é que as casas onde vemos os personagens são as casas dos pais. Mas os pais desapareceram.
Acontece tudo quando eles estão fora. Houve uma altura que o filme era para ser… Comecei a escrever o filme quando saí pela primeira vez de casa, quando fui viver com a minha namorada. E depois saí de casa dela e fui viver com uns amigos. Dessas três fases surgiu um bocado a ideia do filme. Queria no entanto marcar que é na rua que te encontras com as pessoas.
Mas há esta sensação de que se caminha para lado nenhum, sem destino. Sinto que o filme reflecte um bocadinho o andar à deriva.
Não gosto muito dessa expressão, “andar à deriva”. Porque isso significa que se está insatisfeito. Mas se calhar posso dizer isso de mim próprio. Há uma frase do último álbum do Éme de que gosto muito: “Amigo, se estás triste/ e o que queres não existe/ traz um copo, bota em riste/ e ‘bora lá brindar.” Isso pode-se aplicar mais a mim, de andar à deriva. Porque sei o que é que podia ser melhor, ou aquilo de que não gosto, no que toca ao sistema de fazer filmes. No caso destas personagens, sinto que estão mais à vontade, mais em paz com o sistema. Não usaria a expressão “à deriva”, diria mais “sem pressa”. Porque havendo um objectivo não tens que estar sempre a trabalhar para lá chegar, “à deriva” parece que não tens objectivo.
Mas eu também queria que o filme reflectisse um bocado a minha situação. O que parece não existir quase no cinema português. Ou são uns gajos podres de rico, ou são sempre malta muita pobre. Estou-me a lembrar de filmes de juventude recentes. Ou noutros casos nunca é nada assumido quando eles são adolescentes, ou não se percebe bem quem são aqueles jovens.
Há algo que surge muito no livro Aos nossos amigos, que é: eles falam muito sobre o local, em vez do global. Que é algo que creio que o filme tem presente de forma indirecta. Só focando localmente é que podes evoluir e andar para a frente. No cinema, hoje em dia, isso está muito marcado: o que é mais importante, as salas ou ver-se os filmes? Parece que as pessoas já não vão tão facilmente às salas senão houver um catch qualquer, um conceito. Já não vais a um restaurante só porque sim, vais por causa do conceito do restaurante.
Doutras vezes em que conversámos uma coisa que me disseste muitas vezes é que é importante filmares coisas que viveste, ou vives, ou conheces. Que não tens vontade, ou não te interessa, filmares outras coisas.
Eh… Isso já foi há imenso tempo. Mas sim, é pelo menos mais difícil filmar coisas que não tenha vivido. Como disse, gosto sempre de pensar os filmes pela produção – talvez seja uma coisa um bocado nerd – mas também aquilo que torna as coisas fixes de fazer é saberes se dá para as fazeres no filme. Organizar o filme para que ele seja possível é bonito. Não é tanto uma negação às coisas que não conheço. O cinema abre portas a coisas com as quais nunca tiveste contacto. Ou seja, não é um dogma meu, isso. Por exemplo, hoje fui buscar uns filtros a um amigo e ele disse-me que se eu quisesse ele ajudava-me a fazer um filme com financiamento e isso, e eu fiquei a pensar: se fosse para gastar dinheiro queria que o filme desse alguma coisas às pessoas, que se espalhasse o dinheiro. Ou então fazer uma coisa mais megalómana, como o João Nicolau, no A Espada e a Rosa (2010): vou alugar um barco e meter os meus amigos lá a viver durante um mês ou dois e filmar. Gostei muito desse filme. Em termos de dinheiro pedido ao ICA e dinheiro bem gasto acho que faz imenso sentido, ainda para mais num filme de piratas. É pena não haver mais filmes assim. Mas por aí eu filmava piratas na boa, ou whatever, tipo sci-fis.
Outra coisa, de que eu me lembro de conversarmos – devo ter sido eu a puxar isso –, é aquela situação em que as pessoas que estão a começar a fazer cinema parecem bloquear no primeiro filme. Estão obcecadas que o primeiro filme seja perfeito. Este é um filme super despreocupado. Não estiveste vinte anos a pensar no filme plano a plano…
Pois, acho que isso é uma coisa que se sente logo no filme, que é muito fluido. Houve alguém que me perguntou se eu tinha estado numa trip de montagem – que é aquilo que na escola chamamos quando já tens o filme montado e, de repente, decides mudar tudo de sítio e ver se encontras novas ligações. Eu não fiz isso… Tinha mesmo que ser assim. Perceber o que eu não queria e seguir em frente. Mas acho que hoje em dia as curtas já estão a ter esse peso da primeira longa. O que é um bocado triste. Parece que as curtas já são uma espécie de longa que se quer fazer um dia, eventualmente, em vez de serem, como as curtas do Apichatpong: notas. Notas de realização. Testar coisas, libertar certas ideias que até podem ser reutilizadas depois, só para continuar a filmar coisas pelo teu interesse (e não apenas videoclipes e encomendas). Hoje em dia é mais fácil filmar, mas com mais possibilidades… É como diz o Bresson: “a minha possibilidade de usufruir bem dos meus meios diminui quando os meus meios aumentam.” E eu acho que esta onda de material facilmente emprestável e alugável, e câmaras fáceis de usar e luz fácil de manipular – já há uns standards de som, imagem e montagem –, acaba por tornar as coisas mais homogéneas entre as curtas. As pessoas ficam um bocado com medo daquilo que as destaca ou as torna individuais. Da primeira vez que vi brutos deste filme fiquei super descontraído, isto é mesmo uau, e é super tuga, fiquei bué contente. É o meu filme mais português de longe. O Sala Vazia e O Sul não tentam sê-lo, mas neste queria que fosse um filme que cheirasse… que tivesse Portugal. Portugal… assim pode parecer um bocado bimbo.
Eu sinto isso, que o filme tem pêlos no peito.
Sim, eu gosto bué dessa expressão, se não for machista. Mas ainda sobre isso da primeira obra, depende também doutras coisas, como a distribuição. O Pedro Cabeleira fez o filme dele também de uma forma descontraída. Mas depois na parte de mostrar o filme, ele quis fazê-lo noutro contexto, diferente do meu. Que impõe, claro, um tipo de pressão, de clausura do filme – fechar o filme até ele ser mostrado, num sítio bom. Isto leva-nos a outra coisa: o sistema está feito para colocar pressão nas primeiras obras.
Mas com apoio de curta do ICA…
… com um apoio de curta eu fazia três longas. [Risos] Dependeria onde eu gastasse o dinheiro, claro.
Eu não sei se conheces o Gonçalo Soares, mas ele fez o Cavern Club (2014) e também foi assim: um filme de amigos.
Eu não simpatizei nada com o Gonçalo quando o conheci, porque uma vez na escola ele estava a acabar a correcção de cor para o Cavern Club e eu ia começar a correção de cor para o Vulto (2013) [de Diogo Baldaia] porque estávamos malucos para mandar o filme para Vila do Conde. Eu tinha a hora marcada, ele estava um bocado ocupado, então dei-lhe 20 minutos, fui beber um café enquanto ele arrumava as coisas com calma. Voltei, passados os 20 minutos, e o gajo ainda lá estava, igual, com as mãos na cabeça a dizer “o que é que eu fiz?”, todo stressado. Tivemos uma discussão, expulsei-o da sala de correcção e a partir daí nunca gostei dele. Mas depois fiquei curioso para ir ver o filme. Passou no Indie, eu fui e adorei. Ainda bem que ele fez o filme, porque conseguiu pôr bué coisas cá para fora. Esse foi dos filmes que eu vi nesse ano que me deram mais vontade de acabar o meu filme. Porque é super despreocupado com os planos, não são para te ficarem na cabeça, são para te falarem de um sentimento e explorarem uma ideia de argumento e montagem. E isso inspirou-me bué a não ser tão neurinhas com o meu próprio material.
No outro dia disseste-me que também tinha havido outra pessoa que tinha sido importante, para ti, que era o Flávio Gonçalves. Pela maneira como ele tinha feito uma série de curtas de repente.
Ya, o Flávio foi uma granda inspiração. Mas não só para mim, para bué gente, eu acho. Por percebemos que bastava ter uma grande vontade de filmar. Ele tinha uma enorme vontade de filmar. Queria mesmo contar uma história, no Flores do Mal (2013), já no Noite de Aniversário (2013) foi mais um desafio. Ele conseguiu reunir uma série de pessoas, de uma forma muito diferente do Cabeleira, que é um tipo muito democrático e com um grande poder de convencer as pessoas. O Flávio, de uma maneira bué inocente e sem pedir nada a ninguém, tinha montes de gente a ajudá-lo. Isso era bué bonito.
E de repente, há umas quantas longas ou médias-metragens de realizadores na casa dos vintes, o que é inaudito. Quase sem apoios, só a Gulbenkian.
Tens a minha, a do Eça, a do Cabeleira… E o apoio da Gulbenkian foi bué importante, principalmente para a parte de pós-produção.
Voltando aos teus filmes, tenho sempre esta vontade de encontrar ligações entre os filmes de um realizador. Nos teus, as duas curtas e agora esta média…
… e o do meu irmão que fiz para vocês, para o À pala de Walsh [Dente de Crocodilo]. Por acaso é um filme que gosto bué. Vejo-o imensas vezes. Eu gostei também por o filmar com o iPhone e depois de o ver no iPhone. E funcionava: cool. E mostrei a montes de pessoas no quiosque. O meu irmão adorou ver-se e as minhas irmãs fartaram-se de rir.
É um filme muito doce, sim. Mas voltando, O Sul é um filme sobre os amigos e no Sala Vazia diria que é um filme sobre uma série de personagens descruzados e entrecruzados (havendo um deambular). Tudo isso está neste Aos nossos amigos.
Sim, eu acho que a ideia da personagem do [João] Polido [Gomes], no Sala Vazia, embora isso seja muito menos assumido, era que fosse tão genérica como um perfil de Facebook – só conheces dela aquilo que ela quer que tu conheças. Nesse sentido, há uma continuação entre os três filmes: a dificuldade em estar sozinho. Por isso é que vais a sítios. Sim, as personagens são eu. Não consigo pensar num filme sem assumir que tudo o que lá aparece sou eu, de alguma maneira. Eu desdobrado em mil.
O [David] Maranha, que convidei para tocar no dia da estreia, lá na Gulbenkian, disse-me isso. Que os meus três filmes falam um bocado da mesma coisa, mas que este é o primeiro em que o point gets across. Que conclui. Que tem pés e cabeça. E a reacção das pessoas, que tenho recebido, tem sido muito mais ponderada do que quando as curtas passaram no IndieLisboa e no Curtas Vila do Conde. Neste as pessoas não vêm logo ter comigo a dizer “ok, gostei, fixe, continua”. Dizem qualquer coisa do género ”achei um filme justo” e houve umas pessoas que disseram uma coisa engraçada que foi “o filme não tem falhas porque todas as falhas do filme estão justificadas pela própria proposta” ou que as falhas lhe dão a razão de ser. O que eu sinto é que o filme mantém um mesmo ambiente, nunca mente a si próprio, nunca foge à realidade que cria. Isto só para dizer que houve reacções e reacções.
Não sei se te consideras cinéfilo, mas sei que vês muito cinema. No teu filme não consigo ler citações cinéfilas, com excepção de uma, o cartaz do Sunrise: A Song of Two Humans (Aurora, 1927) que está no corredor da casa do Dória.
Pois, isso é por acaso. O cartaz é da minha mãe – aquela é a casa da minha mãe. Quando decidi filmar, nem pensei nisso. Obviamente não é o Dória que tem aquele poster emoldurado do Aurora… Mas adoro o filme, claro, foi a minha mãe que mo mostrou. Em termos de referências (pelo menos aquelas que levei no coração enquanto filmava), se calhar o Paulo Rocha com o Os Verdes Anos (1963). Por causa da forma como se filma a vida Lisboeta e pela montagem, mais até do que pelos temas. A coisa da tosquice e da precipitação dos cortes do jazz. E porque eu adoro o filme. Quando o vi não fazia a mínima ideia do que me estavam a mostrar na escola, e assim que começou eu pus-me a chorar, super emocionado. Só pelos planos e pela música. Um experiência bué pura de cinema. Depois, o Uma Rapariga no Verão (1986) na relação das pessoas com os sítios e da escala. A forma como ele filma aquilo – a cena da rádio – em que um sítio real se torna num palco.
O Tsai Ming-liang e o Apichatpong são referências, pelo tempo e pela calma. Pela evocação mais do que pela demonstração das coisas. E eu cheguei a namorar uma cena fantasiosa e mágica no filme, mas depois percebi que estava a ceder a uma obsessão fetichista pelos asiáticos. Estas são as quatro referências principais. Talvez mais o Hong Sang-soo, pela cena terra-a-terra, sendo que ele trabalha muito bem e é um tipo muito mais precioso e detalhado. Mas sinto uma semelhança. Posso citar o James Benning também, pelo lado despreocupado de que tu falas. Um filme não é para ser um peso horrível, é suposto ter fluidez, como numa pintura. Fazes e podes sempre apagar umas partes, mas tens que respeitar a pessoa que filmou. Sinto-me sempre diferente do Afonso que estava lá a filmar os planos. Isso foi uma coisa que percebi logo no Sala Vazia: nunca desrespeitar o gajo que teve a coragem de estar lá com a câmara. Porque é muito mais difícil estar de pé com a câmara a dizer o que é que as pessoas têm que fazer, do que estar mais tarde a criticar. Por isso eu gosto de respeitar esses primeiros traços, desse Afonso naife que está a tentar filmar uma cena espontaneamente e não aquele obcecado da montagem que só quer que a cena resulte. Mas há sempre esse primeiro esboço que é importante trazer no peito.