Embora não a tenha vivido, cada vez que penso na cinefilia pré-VHS, DVD e, agora, Internet, imagino logo os grandes filmes a desvelarem-se, lenta e solenemente, em imponentes e irrepetíveis sessões, onde nem uma mosca se atrevia a cruzar o êxtase. Filmes a cortarem a mente do espectador, naquelas duas horas do agora-ou-nunca, deixando-lhe cicatrizes para a vida. Esse rito sagrado convive hoje com a experiência de uma outra cinefilia leve. Não confundir com light, pois isso seria algo que faz mais parte da dieta de cada um (algo que diz respeito ao quê, e como, cada um decide digerir o que selecciona). Falo noutra coisa. Na possibilidade desta outra cinefilia (ia escrever “nova”, mas como com tudo, o tempo passa) poder afirmar-se numa “land of plenty” que faz do país do cinema um lugar dessacralizado. Hoje, o espectador, navega por todo o lado, vê como e quando quer, deixa-se ir ou impõe-se uma bússola cinéfila rigorosa. Daí falar dessa insustentável leveza da cinefilia que vai, muitas vezes, onde o vento da sua curiosidade o levar.
No mês que passou, a propósito do ciclo que programámos em Lisboa e no Porto, escrevi a folha de sala de um dos meus Kiarostamis favoritos. À procura de informação sobre o filme encontrei uma cápsula do Jonathan Rosenbaum, de 1997, que presumo seja sobre o acompanhamento de um festival. O título do texto era «The House is Black» e começa assim: “The most powerful Iranian film I’ve seen is this 20-minute black-and-white 1962 documentary made by Forugh Farrokhzad (1935-1967), commonly regarded as the greatest 20th-century Persian poet.” Como não ficar imediatamente perturbado com isto? Fui procurar o filme, ei-lo, e comecei a vasculhar mais uns quantos filmes ali do início da nova vaga iraniana (a história marca-a entre 1969 e 1979, início da revolução). Como resultado desta inesperada viagem trago-vos, nesta edição do Crónicas do Algoritmo, umas quantas pérolas iranianas à disposição do internauta. Bonita palavra esta, internauta.
O filme da jovem poetisa Forugh Farrokhzad, então com 27 anos, seu primeiro e único filme, começa por preparar-nos. Ecrã negro e uma voz off diz-nos: “Não há falta de fealdade no mundo. Mas caso os homens fechem os olhos a ela, haverá certamente muita mais.” E uns segundos depois, “por respeito ao homem devemos lutar contra essa fealdade e aliviar o sofrimento das suas vítimas. É esse o propósito deste filme e a esperança dos seus cineastas”. Portanto, no início deste belíssimo filme sobre a fealdade, Khaneh siah ast (The House is Black, 1963), a realizadora Forugh, assim como o seu produtor (e companheiro), Ebrahim Golestan, revelam um compromisso: olhar de frente o feio, apontar-lhe uma câmara, para o reparar. Acto de “radical humanismo”, como lhe chama Rosenbaum, que surge de uma encomenda da Sociedade de Assistência aos leprosos, filmada em pouco mais de dez dias, numa colónia de pessoas com esta doença, perto de Tabriz, capital do Azerbeijão.
A poetisa entra neste espaço e filmará as aulas dos meninos deformados, as orações daqueles que, já sem mãos, as levantam a Deus; os momentos de brincadeira de meninos de pele envelhecida; ou as mulheres que disfarçam os traços da doença e se pintam para a festa. Mas filmará também o cuidar, pois é essa uma das maravilhas deste filme. A lepra, não como uma “casa negra” na qual ninguém se atreve a entrar e da qual todos se afastam, mas sim como uma doença cujo tratamento e atenção permitem a cura ou minimização do sofrimento. Conta-se que Forugh, antes de morrer precocemente num desastre de automóvel aos 32 anos, terá adoptado uma das crianças que podemos ver no filme, levando esse cuidar das imagens à vida real. Mas talvez o derradeiro acto de redenção de Khaneh siah ast seja que a fealdade destas pessoas, longe de ser espectacularizada pela autora, é colocada numa obra de uma qualidade cinematográfica ímpar.
Como se tivesse olhado a escuridão ao espelho e tivesse virado do avesso a tristeza, a oração e o lamento.
Considerado um dos percursores da nova vaga iraniana, e um dos primeiros filmes do país a ser feito com recurso ao som directo, Khaneh possuiu uma justaposição poderosíssima entre a imagem e som. As imagens vão sendo intercaladas, ora com a voz off de Golestan, que nos vai dando vários factos sobre a doença, ora com a bonita voz da própria Forugh Farrokhzad, que nos vai recitando alguma da sua poesia (uma amostra do seu talento poético, aqui) e várias passagens do Novo Testamento. E é nesta alternância entre o facto e a poesia, entre o documental e a encenação, juntamente com uma montagem muito atenta ao movimento sugestivo dos detalhes e dos ruídos, que vamos entrando nesta casa. Casa, e sequências de sala de aula essa, que Kiarostami voltaria a filmar mas de uma forma solar. Como se tivesse olhado a escuridão ao espelho e tivesse virado do avesso a tristeza, a oração e o lamento. Encarar de frente esta obra-prima de Forugh Farrokhzad é receber uma lição de humildade ainda hoje com o mesmo poder: o de olhar para cuidar.
Daqui, o raccord é evidente. Até agora tinha-o deixado propositadamente na sombra, mas o produtor e amante de Forugh Farrokhzad, Ebrahim Golestan, é um nome muito importante do cinema do Irão. Chamado por alguns o leão do cinema iraniano, e por outros, o padrinho da nova vaga, o realizador foi o primeiro a fundar uma produtora própria, a Golestan Film Studio, e a fazer o cinema do seu país sair das fórmulas do melodrama e das aventuras, populares na época da ditadura. Três anos depois de Khaneh siah ast, o realizador assina a sua primeira longa metragem, Khesht va Ayeneh (The Brick and the Mirror, 1965) sobre um taxista, Hashem, que fica a braços, literalmente, com uma bebé deixada no banco traseiro do seu carro, durante mais uma noite de trabalho.
O que se irá seguir é uma viagem pela noite da cidade de Teerão – uma Teerão fora de horas, pois que o filme não está longe, pontualmente, de alguns filmes de Scorsese. Seja a própria odisseia nocturna de After Hours (Nova Iorque Fora de Horas, 1985), seja a solidão meia paranóica de De Niro, em Taxi Driver (1975). Essa viagem, por entre lugares escuros e abandonados, bares, esquadras, hospitais, tem como principal objectivo encontrar a mãe da bébé ou entregá-la a alguém que assuma por ela responsabilidade. Mas eis a questão. Não será este o acontecimento na vida de um homem em que há que assumir o risco das coisas fortuitas? É o que pensa a sua amante, Taji, que vê na chegada da criança, um sinal da família que deverá constituir com o taxista.
Uma das características com que se definiu a nova vaga iraniana foi a de utilizar como tema as crianças, por oposição aos assuntos dos adultos. Não se pode propriamente considerar que elas sejam o nó central de Khesht va Ayeneh, funcionando antes aqui como um rastilho que permite à câmara de Golestan filmar realisticamente as instituições de Teerão (percebe-se que um cineasta como Asghar Farhadi tenha vindo aqui buscar muita coisa) e denunciar a falta de altruísmo de uma classe urbana, cada um virado para o seu umbigo. Mas a criança deixada no banco do táxi é também o espaço do conflito bergmaniano do casal, e de um ambiente familiar vigiado, ameaçado pelos olhares denunciadores dos vizinhos. Assim se vivia no período da ditadura. Mas ambas as dimensões, a urbana e a familiar, parecem cruzar-se, afinal, no fim do filme. Episódio inesquecível em que Taji vai tentar reaver a bebé que Hashem deixou no orfanato. Sequência sem diálogos, planos de crianças engaioladas e agitadas, a ficção a contar a realidade daquele espaço, um regresso à “casa negra” de Farrokhzad que, aliás, tem também aqui um pequeno papel.
Gostava de terminar por vos apontar (em certos casos, certamente, relembrar) uma terceira obra-prima iraniana pré-geração Kiarostami, Jafar Panahi ou Mohsen Makhmalbaf. Trata-se de Gaav (The Cow, 1969) de Dariush Mehrjui, oficialmente conhecido como um dos dois primeiros filmes da nova vaga iraniana. [O outro é Gheysar (1969) de Masud Kimiai]. Nele conta-se a historia de um agricultor, sem filhos, para quem a sua vaca é tudo neste mundo. Dá-lhe banho, muitas festas, fala com ela, oferece-lhe presentes. Quando a vaca é misteriosamente envenenada durante uma ausência do seu dono da aldeia, ninguém sabe como dar-lhe a notícia. Acabam por dizer-lhe que esta anda desaparecida e Hassan, kafkianamente, e sem saber lidar com o sucedido, começa a resvalar para a loucura. Começa a passar temporadas no estábulo, a comer palha e a comportar-se tal qual o seu próprio animal desaparecido.
Mais do que um ensaio sobre a metamorfose animal, e mesmo mais do que a metáfora política – foi comum “ler-se”, no apego do protagonista à vaca, um Shah e um país dependente do negócio do petróleo –, o mais bonito de Gaav é a sua simplicidade realista. Neste pequeno vídeo, o realizador explica como recebeu as influências de Griffith ou de Eisenstein, mas também como entrou, pela primeira vez, numa aldeia. E isso era gesto inédito no cinema nacional. Embora tenha trabalhado com actores profissionais (e a transformação de Ezzatolah Entezami é extraordinária) há nesta busca das pequenas incidências do quotidiano, uma base neorealista que os filmes italianos dessa corrente lhe ensinaram. Do mais pequeno e individual ao universal. E, como dizia, o mais bonito e surpreendente do filme é a forma como trata o extraordinário de forma ordinária – o devir-animal do homem –, ao mesmo tempo que trata o ordinário com o cuidado de algo extraordinário. Os aldeões indiferentes ao sucedido, as mulheres crentes nas mezinhas, o medo dos vizinhos, o julgamento social, são tudo elementos que caracterizavam a cultura rural de um país. E que lhe dão a sua força, de certa maneira.
Tendo sido este um dos primeiros filmes no país a receber apoio financeiro governamental, a decepção foi grande. Esperava-se uma visão heróica, moderna e avançada de um país e obteve-se, afinal, um homem e uma vaca. No fundo, não a montanha que pariu um rato mas um homem que pariu uma vaca. Uma obra assente numa escala pequena e que não hesitava em retratar a cobardia e o quotidiano sem adorno. Conta-se que o filme esteve proibido durante algum tempo e que foi contrabandeado para fora do país e que, mesmo sem legendas, foi mostrado e premiado no festival de Veneza de 1971. O este ter sido o primeiro filme iraniano a ter maior visibilidade internacional não é um mero facto sem importância. No país muita gente contestou esta importância com base em dois aspectos. O primeiro, a ideologia socialista e de oposição ao regime de Gholam-Hossein Saedi, escritor do romance no qual se baseia o filme. Romance e filme que transportam, subterraneamente, esta ideia do devir-animal como aquilo que acontece ao homem demasiado apegado aos bens materiais. Mas o segundo aspecto era tão ou mais determinante. Dar a tal visão do país a partir de uma aldeia de medrosos, atrasados e ignorantes não era propriamente coisa boa.
O cinema iraniano que arrancou de Gaav, e que hoje conhecemos, é todo ele assente na ideia de comunidade.
Contudo, quando vi Gaav não estava muito preocupado com estes aspectos, nem com a tal queda moral de um homem – críticos há que consideram o filme uma espécie de Der letzte Mann (O Último dos Homens, 1924) iraniano. O que a mim me toca, e isso talvez seja o que de mais importante tenha ficado nessa visibilidade internacional que o filme obteve, é que o cinema iraniano que daí arrancou e que hoje conhecemos é todo ele assente na ideia de comunidade. O altruísmo, o cuidar, como resolver os problemas num pequeno grupo, são tudo problemas que este filme, como os anteriores que aqui trouxe, colocam. E talvez por isso haja esta ideia, um pouco generalizadora é certo, que o cinema iraniano se encena nesse espaço, ou melhor, nesse trajecto que vai do singular ao universal, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande.
PS: Houve um problema com o qual me deparei ao escrever esta crónica. Uma espécie de contradição. Por um lado, ela procura fazer ligações a partir de materiais disponíveis online – e nesse sentido, acaba por favorecer um modo próprio de acesso e montagem entre estímulos. Mas, por outro lado, o velho cinéfilo que me habita segreda-me ao ouvido que, por vezes, os materiais aqui disponíveis não têm a qualidade desejada a uma boa experiência visual e intelectual. Por isso, para resolver a contradição digo-vos que os links que aqui vou deixando são meramente indicativos, aconselhando-vos sempre, e na medida do possível, que procurem ficheiros de melhor qualidade. Aliás, nos filmes escolhidos este mês, a cor preta desempenha um papel fundamental. Por exemplo, a qualidade do ficheiro de Khesht va Ayeneh que por aqui está disponível não faz jus a um dos melhores elementos do filme. A fotografia de Amir Karari e Soleiman Minasian e os seus contrastes entre a escuridão da cidade e as luzes dos carros e lojas. Espaços abandonados, amaldiçoados, inertes, que a pouca definição do que podemos ver online torna invisível.