Remakes americanos de filmes europeus. O filme que me levou a este tema, a sessão que desencadeou esta crónica verdadeiramente, foi Toni Erdmann (2016), que estreou na televisão nacional há umas semanas, na grelha dos Canais TVCine. Não esperava, claro, que o assunto que serviria de pretexto perfeito para abordar esta obra aclamada da alemã Maren Ade se prendesse com o facto de estar neste momento em preparação um remake americano que substitui a dupla de filha e pai magnificamente levada à tela por Sandra Hüller e Peter Simonischek pelos rostos familiares do cinema americano Kristen Wiig e, interrompendo a sua reforma, Jack Nicholson. Entretanto, apanhei, e fiquei a ver sem grande compromisso, dois filmes americanos que adaptam, refazem, obras do cinema europeu: Interview (Entrevista, 2007) de Steve Buscemi, a partir da obra homónima do tragicamente desaparecido cineasta holandês Theo van Gogh, e Dinner for Schumcks (Jantar de Idiotas, 2010) de Jay Roach, baseado na comédia francesa de Francis Veber Le dîner de cons (O Jantar de Palermas, 1998). A reunião improvável destes títulos permite-me lançar a interrogação sobre o problema do remake ou da adaptação, ao mesmo tempo que me conduz à especificidade euro-americana.
Vi Toni Erdmann ciente dos papéis que irão caber a Kristen Wiig e Jack Nicholson. Foi algo que esteve na minha cabeça durante as longas, nem sempre fáceis, duas horas e quarenta e tal minutos de filme. A dificuldade do filme de Maren Ade é a primeira nota do meu espanto. Digo-o porque parece que o filme está ciente da sua apropriação futura por uma linguagem mais plana e imediata. Digo: a linguagem do cinema americano. Estilhaçando a ordem ditada pela cronologia, quase que me apetece dizer que à medida que o filme avançava mais certo eu ficava de que Maren Ade viu, antes de toda a gente, antes mesmo de existir, a “versão americana” do seu filme. Com efeito, Toni Erdmann é um contínuo acto de sabotagem da sua possibilidade cómica imediata, uma obra que desglamoriza, dessentimentaliza, verdadeiramente realiza – com tudo o que a realidade tem de dura e fria – a comédia tal como ela se pode ainda expressar no nosso modo de vida actual.
Este gesto de despojamento da comédia pelo drama em Toni Erdmann será a pedra no sapato da versão americana com Jack Nicholson.
Em Toni Erdmann, Ade convoca uma ideia de burlesco no mundo cinzento e implacável das empresas e da alta finança, e, contiguamente, no ruinoso lugar que pode ser a relação entre um pai e uma filha. Como se vê, a comédia tem tudo para dar errado aqui. Mas é esse “dar errado” que alimenta, municia, esta história bizarra que faz do desconforto e da estranheza a sua principal arena sentimental – uma versão ainda mais offbeat, anti-sentimental, da série de Ricky Gervais The Office. Nada parece estar no sítio, mas verdadeiramente o que não está num sítio certo aqui é a sua intenção cómica. Uma comicidade de cinema em modo algum compaginável com os ritmos, tons e exigências da vida contemporânea. A comicidade está morta aqui, mas isso não quer dizer que ela não marque presença.
A comédia está morta-viva, perto de impossibilitada, mas ao mesmo tempo ela apresenta-se assim, nestes preparos: nua, despojada, desajeitadamente exposta. No fracasso, Ade descobre uma potência: o burlesco num mundo sem graça (humanamente desgraçado) não tem grande piada. Com isto, aguardo com expectativa pela versão americana. Pressinto que muito dificilmente o remake quererá assimilar o tom cru, implacável, verdadeiramente “complicado” do filme alemão. Tenho um palpite: o filme com Nicholson tenderá a sobredramatizar a relação entre filha e pai tal como puxará para cima as cores da comédia desse pai desesperado por uma reconciliação. Procurará a gargalhada e a lágrima, ao invés do desconforto e do riso amarelo.
Este gesto de despojamento da comédia pelo drama em Toni Erdmann – a longa duração do filme, a sua extenuante persistência em não ceder à gargalhada ou à lágrima fáceis – será a pedra no sapato da versão americana com Jack Nicholson. Estou curioso para ver como um actor que se especializou num certo estilo de overacting interpretativo irá adaptar-se ao papel deste pai. Até onde perceberá a estrela americana que ele deve ser um desamparado, e emocionalmente desajeitado, joker em que “the joke is on him”? Saberá Nicholson, no remake americano de Toni Erdmann, canalizar todo este desconforto, este mal de vivre, ao se intrometer num mundo onde a comédia é um nado morto?
Recuemos, na realidade, avancemos, para os dois outros filmes que apanhei a dar na televisão mais ou menos por acaso. Ambos, coincidência, são adaptações americanas de filmes europeus de relativo sucesso. Interview é, mais que um remake, um filme assinado por Steve Buscemi que homenageia a memória de Theo van Gogh. Saiu em 2017, três anos após o assassínio brutal do realizador holandês. Na história das democracias ocidentais, Theo van Gogh foi, até ver, a única pessoa do meio do cinema a ser mortalmente visada pelo terrorismo islâmico. Theo foi morto na sequência de um pequeno filme televisivo que assinou juntamente com a activista somali Ayaan Hirsi Ali, Submission: Part 1 (2004), denúncia dos abusos perpetrados contra as mulheres nos Estados que fazem da religião islâmica a sua lei. No dia 2 de Novembro de 2004, enquanto andava de bicicleta em direcção ao trabalho na pacífica Amesterdão, Theo foi morto à queima-roupa por Mohammed Bouyeri com tiros de pistola. A seguir, o terrorista terá tentado decapitar o realizador, deixando cravado no seu corpo um punhal atravessado por uma folha de papel que continha uma mensagem de ódio que ameaçava de morte Ayaan Hirsi Ali. Este episódio traumático consta das páginas mais negras da história do cinema mundial.
Buscemi refez o penúltimo filme realizado por Theo van Gogh, aquele que antecede precisamente esse filme que foi a sua pena de morte: o drama thrillesco Interview (2003). Com isso, o famoso actor americano trouxe a um público mais alargado o espírito sagaz, muito afiado, de Theo van Gogh, que foi, para lá de realizador, uma personalidade mediática influente na Holanda, tendo assinado colunas de opinião que davam muito que falar e era presença regular na televisão do seu país. O Interview americano não aborda a questão islâmica, mas nele tem lugar um confronto impiedoso desenrolado entre um jornalista político e uma estrela de cinema. Tanto no original como na versão americana instaura-se uma guerra de beijos e facadas entre os dois, oscilando entre sentimentos, entre o desprezo visceral e o fascínio mais primário. Ele, homem enfadado e frustrado com a sua situação profissional enquanto jornalista político, está incumbido de entrevistar uma estrela emergente do cinema que tem pouco mais para oferecer que a sua beleza natural (“duas mamas sem inteligência”, desabafa o jornalista no começo do filme original). Ela, mulher determinada mas pouco convicta no rumo da sua carreira enquanto actriz de filmes manhosos de entretenimento e telenovelas, está ali para contrariar – e como irá contrariar! – os preconceitos deste jornalista arrogante e impreparado. A tensão, política e sexual, vai produzindo uma “guerra civil”, venenoso tango entre meios, agendas ou interesses.
Buscemi, como actor e realizador, tinha um interesse acrescido por relação ao original de Theo van Gogh: queria procurar expor uma certa mediocridade geral do jornalismo. Na apresentação feita ao seu filme no Festival de Berlim, disponível online, Buscemi conta alguns casos mais ou menos anedóticos de incompetência jornalística de que foi alvo. Narra a certa altura a seguinte história: “Ele [o jornalista] abusou da sua liberdade. Não sei se foi ele ou o editor. Mas decidiu situar [a entrevista] num bar, pôs-me a dizer fuck a cada frase. E depois o Tim Roth entrou no bar. Parte desta conversa foi retirada de uma entrevista que eu havia feito com o Tim Roth. (…) Foi muito estranho, mas sim, ainda vou confiando, na sua maioria, nos jornalistas.” Confiança tímida, com “água no bico”, que é jogada, à defesa, nesta cativante Interview.
O filme americano, neste caso, respeita o espírito do original. Mas não só. Buscemi conta que chegou mesmo a replicar o modelo formal usado por Theo van Gogh, que consistia no uso de mais de uma câmara em simultâneo, o que permitia capturar ao vivo a interacção dos dois actores, no caso, o próprio Buscemi e Sienna Miller. O filme americano é mais elegante, mais bem interpretado e nuançado na construção dramática. Posto isto, também é verdade que o filme europeu é mais escasso e contido, quase como se servisse de ensaio ou teste para outro filme por vir. Esta secura, rarefacção ou precariedade pode constituir um problema para o cinema americano na adaptação de filmes europeus. Sobre este ponto, importa passarmos para o outro exemplo que aqui trago. Dinner for Schumcks, de Jay Roach, é uma versão hipertrófica do divertido filme original do realizador francês, conhecido pelas suas comédias e filmes de acção populares, Francis Veber. Digo “hipertrófica” porque o filme de Roach traz a um filme reduzido a um cenário e sequenciado em tempo real uma montanha de novas situações dramáticas, repletas de uma ganga emocional completamente alheia ao original, bem como um vasto rol de novas personagens.
O filme de Veber apoia-se na velocidade com que os desastres se vão sucedendo; na forma como o idiota que protagoniza o filme (no francês, é encarnado por Jacques Villeret; no americano, por Steve Carell) instaura a desordem na vida de um homem abastado (no francês, é encarnado por Thierry Lhermitte; no americano, por Paul Rudd) que o quer levar para o infame “jantar de idiotas”. Este é um evento, que se organiza ciclicamente, em que a snobe “nata da sociedade” faz troça dos desgraçados desta vida. Jay Roach enche o filme de situações, destrói por completo a escassez e velocidade do original, que não dá um minuto para respirarmos, inflando ainda a backstory e resolvendo, sem deixar “ponta solta”, a história dos protagonistas.
Ao mesmo tempo, e aí o americano vai mais longe ou mais fundo, Dinner for Schumcks é também uma espécie de desenvolvimento do original, na medida em que aqui temos a oportunidade de nos “sentarmos à mesa” nesse jantar – no francês o jantar é anunciado, mas não mostrado. Também o filme de Roach é mais implacável na confusão que gera entre os homens ricos e poderosos e a idiotia daquelas inocentes criaturas que se deixaram “convidar”. O pico patético do filme francês – que fecha o filme – consiste numa exclamação em que a idiotia do idiota vence, ao passo que no filme americano a idiotia dos não idiotas acaba vincada com estrondo pela humanidade ou inocência dos ditos palermas. Nesse sentido, o filme americano complexifica a mensagem e torna mais densa a ironia profunda que é “prato principal” em qualquer “jantar de idiotas”. Aqui, a piada (the joke) está mais em quem convida do que em quem é convidado. Moral da história: o mundo cinzento em que vivemos é, afinal de contas, um mundo liderado por perfeitos idiotas.