Por: Miguel Patrício e David Pinho Barros
Intérprete e fotografias: Orion Klautau
Por ocasião da projecção de Jinsei furûtsu (Life is Fruity, 2017) no Museu do Oriente no dia 29 e na FCSH – Universidade Nova no dia 30 de Agosto, a actriz japonesa Kirin Kiki, juntamente com o realizador, Kenshi Fushihara, e o produtor do filme, Katsuhiko Abuno, esteve em Lisboa para apresentar o documentário ao público português. A sua visita, ainda que breve e discreta, não nos poderia passar despercebida. Afinal, trata-se de uma das maiores e mais experientes actrizes japonesas em actividade, detentora de um conhecimento profundo acerca da indústria e uma presença regular na obra dos autores japoneses mais recentemente exportados para o Ocidente, incluindo para Portugal, como Hirokazu Koreeda e Naomi Kawase.
Com o precioso auxílio da Prof.ª Alexandra Curvelo (Universidade Nova de Lisboa) e do Prof. Michiaki Okuyama (Nanzan University), conseguimos, então, privar com Kirin Kiki. O que estava previsto ser um almoço seguido de uma entrevista rapidamente se transformou num convívio efusivo, sem filtros, que durou a tarde inteira e teimava em não acabar, para o nosso muito embriagado deleite. Ao provar as entradas, nomes tão distantes e sacrossantos como Yasujirô Ozu, Yasuzô Masumura, Masahiro Shinoda e Yôji Yamada, entre outros, eram convocados para o meio da mesa com a mesma despreocupação de quem bebe uma cerveja gelada ao sol (essa bebida foi a única coisa que Kiki, sempre imprevisível, fez questão de pedir). Aquando da chegada dos pratos principais, já tínhamos material para outras tantas entrevistas alternativas. Ficámos a saber que Kiki foi assistente pessoal da actriz Haruko Sugimura no princípio dos anos 60 e que a viu sair em lágrimas do plateau de Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962) de Ozu, devido às infinitas reprises que este lhe pedia; contou-nos que o mítico actor Shintarô Katsu (o Sr. Zatoichi) prolongava deliberadamente as cenas de banho para poder – como o Lobo Mau – ver e sentir melhor as actrizes que com ele contracenavam; e descreveu ainda o emblemático Kiyoshi Atsumi (Tora-san, o grande “palhaço” do cinema japonês) como um homem recatado que nunca chegou a revelar a sua família e morada, nem mesmo a amigos próximos.
Na verdade, quando ligámos finalmente o gravador, depois da surpresa inicial e das gargalhadas e vinho partilhados, já nos tínhamos apaixonado completamente por Kirin Kiki. Pelo seu estilo directo e afectuoso, pelo sentido de humor cuja aparente leveza esconde uma extraordinária acutilância, e, enfim, por não pertencer àquele género de actriz que tanto criticou e do qual tanto se distanciou: a mulher-totem, que, estando agarrada às projecções e pretensões impostas pelo cinema com habilidades ilusionistas, não consegue aceitar a velhice. Esta foi a entrevista a Kirin Kiki, a grande actriz que detesta sê-lo: à simpática obaasan que, a isso, prefere conhecer novos mundos e pessoas, deixando um rasto de memórias radiosas.
Como começou a trabalhar como actriz e passou do teatro para o cinema?
Eu acabei o ensino secundário aos dezoito anos e não foi por gosto que comecei a representar. Não havia nenhum lugar para onde pudesse ir. Eu odiava visceralmente o teatro porque tinha de fazer a mesma coisa todos os dias. Não percebia o que tornava o teatro atraente. Este era o tempo em que os doramas [equivalente japonês das telenovelas] estavam a começar. Foi apenas quando vi o Hisaya Morishige que pensei pela primeira vez que ser actriz poderia ser um trabalho interessante. Portanto, continuei a trabalhar e, há doze anos, descobri que tinha cancro. Percebi que não poderia continuar na televisão, uma vez que é muito extenuante. Foi nessa altura que passei a fazer exclusivamente cinema. Não foi por gostar da actividade em si que comecei a representar.
Mas nessa altura era cinéfila?
Havia muitos actores famosos no grupo em que entrei quando tinha dezoito anos. Pessoas como o Seiji Miyaguchi, que tinha trabalhado com o Akira Kurosawa em Shichinin no samurai (Os Sete Samurais, 1954), Haruko Sugimura, que também tinha trabalhado com o Kurosawa, e Tsutomu Yamazaki. Eu nessa altura não ligava minimamente ao facto de essas pessoas serem famosas. Não é que não gostasse de cinema…
Mas que tipo de filmes via quando começou a representar?
Eu gostava de filmes franceses. Os com a Jeanne Moreau, por exemplo.
Nos anos 60 e 70 tinha uma grande mobilidade entre os estúdios, o que era uma situação pouco frequente no Japão daquele período e que lhe terá dado certamente um conhecimento abrangente da indústria nessa época. Como é que variava o tratamento dos actores pelos diferentes estúdios?
Os estúdios eram todos diferentes. Eu não me lembro assim tão bem e, na verdade, não atribuía importância nenhuma a isso. No meu caso, eu representava em qualquer coisa que me pedissem. Eu nem via os filmes em que entrava, de todo.
Então há filmes em que participou e que nem sequer viu?
Eu quase nunca vi os filmes em que entrei. Talvez apenas dois ou três.
A sério? Mesmo os mais recentes?
Há doze anos, quando soube que tinha cancro e deixei a televisão para fazer apenas cinema, tive de começar a ver os filmes em que entrava. Mas é uma situação muito recente.
Mas as suas colaborações com Hirokazu Koreeda, por exemplo, vê-as a todas?
É uma obrigação. Não por minha vontade, mas toda a gente quer que eu veja.
Nessa época, alguns actores tinham contrato exclusivo com um estúdio. Quais eram as diferenças práticas entre uma actriz freelancer como a Kirin Kiki e um actor residente num estúdio?
Eu estou sempre sozinha. Estou sozinha em minha casa. Só há um telefone fixo. Eu não tenho um agente. Sou só eu.
Então um contrato para um actor freelancer é diferente do contrato para um actor residente? Assina um contrato…
Eu não tenho contratos para trabalhar nos filmes. Não preciso disso.
Nesse caso, como negoceia um projecto?
Ao telefone. Não há papel. As negociações sobre os pagamentos são aquilo de que gosto mais. (Risos). Os filmes que me agradam têm um orçamento baixo, portanto nesses casos eu não posso pedir muito.
Então os actores freelancer recebem por projecto, é isso?
Sim, eles recebem por cada projecto, mas, no meu caso, mesmo quando não me pagam (e isso às vezes acontece), eu não me queixo muito. Na verdade, não é através do meu trabalho como actriz que ganho a vida. Eu possuo vários apartamentos e arrendo-os. Sou uma senhoria. Mas não preciso de dinheiro. Eu só tenho cinco pares de sapatos: uns para a chuva, outros para passear na montanha e os que uso todos os dias são os outros três. Eu não compro nada. Por exemplo, quando entro num filme, eles produzem imagens promocionais e cartazes. Quando me perguntam se quero verificar os cartazes antes de os publicitarem, eu respondo: “Não quero saber”. E as pessoas dizem: “Nós vamos enviar-lhe alguns exemplares”. Mas eu respondo “Eu não preciso. Não mos enviem”. Eu não uso dinheiro. E também não tenho um agente, portanto, sempre que me pagam, é tudo para mim. Nesta viagem a Portugal, eu vim por minha conta. Ninguém me levou ao aeroporto. Eu só me encontrei com toda a gente aqui.
Em 1970, teve a oportunidade de colaborar numa pequena cena daquela que é a mais longa e provavelmente mais importante série de filmes na História do Cinema Japonês: Otoko wo tsurai yo (mais conhecido no Ocidente por Tora-san). Como foi esta experiência e que impacto teve na sua carreira?
Eu não me lembro de absolutamente nada sobre essa cena. Não teve qualquer impacto na minha carreira.
Agora representa quase exclusivamente em gendai-gekis [filmes de temática contemporânea], com pequenas excepções…
Eu também faço jidai-gekis [filmes de reconstituição histórica]. Mas não há muitos hoje em dia, por comparação.
Nos anos 70, por exemplo, trabalhou com o realizador Masahiro Shinoda em Hanare goze Orin (The Ballad of Orin, 1977). Para si, como actriz, qual é a principal distinção entre fazer um jidai-geki e um gendai-geki?
Na minha perspectiva, o filme de Shinoda está entre um jidai-geki e um gendai-geki.
Mas, para si, a preparação do seu trabalho como actriz é diferente quando faz um jidai-geki ou um gendai-geki?
É exactamente a mesma coisa. Uma vez que interpreto sempre seres humanos, é tudo a mesma coisa.
Mas o facto de haver uma reconstituição histórica e roupagens do passado não influencia a forma como representa?
Não influencia a minha representação de forma nenhuma.
Agora gostávamos de a ouvir sobre o período em que começou a trabalhar com Hirokazu Koreeda. Nos últimos quinze anos, tem-lhe sido regularmente atribuído o papel de avó…
O Sr. Koreeda quer, na verdade, veicular uma projecção da mãe dele através de mim. Ela tem um estilo arguto e sarcástico. Através de mim, ele quer transmitir o ciúme e a malícia que todas as mulheres têm. Ele quer comunicar isso através da minha representação.
Mas já conheceu a mãe do Koreeda?
Só vi fotografias dela.
A maior parte das pessoas, quando ouvem “Kirin Kiki”, pensam numa personagem de avó. Em que ponto da sua carreira acredita que esta imagem de marca se tornou quase um sinónimo de “Kirin Kiki”? Como se sente enquanto actriz em relação a esta associação?
Isso aconteceu quando tinha vinte e nove anos! Nessa altura, estava farta do trabalho na televisão, não gostava mesmo nada de fazer aquilo. Por isso, pensei: “Que tipo de papel é que posso fazer sem grande esforço?”. A resposta foi: “Oh, uma avó! Basta deitar-me, relaxar e não fazer muito.”.
Desde Aruitemo Aruitemo (Andando, 2008) que tem uma colaboração muito próxima e regular com o realizador Hirokazu Koreeda. Que facetas considera que Koreeda privilegia na sua representação que têm alimentado esta parceria continuada?
Talvez o facto de eu ser uma actriz atípica.
No filme An (Uma Pastelaria em Tóquio, 2015) , Kyara Uchida interpreta a sua neta, o que corresponde à vossa verdadeira ligação familiar. Em que circunstâncias é que os realizadores têm tentado aproximar as suas personagens à sua biografia actual e como é que experiencia essa abordagem?
Eu vivi uma vida que quase ninguém viveu, por isso é muito difícil para os realizadores tentarem efectivamente sobrepor a minha biografia e as minhas personagens.
Mas o facto é que representou juntamente com a sua neta… Como é que viveu esta experiência?
Quando vi o argumento, havia duas raparigas de catorze anos. Uma delas foi cortada. A minha neta tinha catorze anos na altura, portanto eu perguntei-lhe se ela queria ir ao casting para esse papel. A realizadora estava hesitante no início, mas acabou por concordar. Os miúdos de catorze anos hoje em dia são muito activos, mas a minha neta é tendencialmente calada, e por isso encaixou-se bem no papel.
Viveu isso como uma experiência familiar ou foram as duas muito profissionais?
“Sentimentos profissionais” é coisa que não existe entre nós. Quando o filme ficou pronto, fui a Cannes com a minha neta e foi uma experiência muito boa.
Nalgumas ocasiões, participou em filmes apenas com a sua voz: a dobrar animação, como em Kari-gurashi no Arietti (O Mundo Secreto de Arrietty, 2010), ou a narrar documentários, como em Jinsei furûtsu (Life is Fruity, 2017). De uma perspectiva criativa, que desafios específicos é que este tipo de projecto vocal lhe apresenta?
Quando uso apenas a minha voz, é bom porque não preciso de decorar falas. Essa é a única diferença. Normalmente, quando actores sérios e bons fazem trabalho de narração, lêem o argumento inteiro e vêem o filme completo. Eu não faço isso. Eu vou lá e leio bocado a bocado.
Então lê mesmo sem ver as cenas?
Sim.
Enquanto as vê pela primeira vez? Isso é normal para outros actores?
Sim. E não, não é normal.
Como actriz que atravessou várias décadas da história do cinema japonês, testemunhou certamente muitas mudanças estruturais nesta indústria e a renovação de gerações de realizadores. Tendo isto em conta, quais são os caminhos que acredita que o cinema japonês seguirá no futuro próximo?
Os actores hoje em dia são muito maus. No seu conjunto são péssimos e o nível é muito baixo. A vida diária daqueles que querem ser actores e actrizes não é boa.
Mas o nível dos actores nos filmes do Koreeda, por exemplo, é muito elevado.
O Sr. Koreeda faz com que assim pareça pela forma como monta os filmes, mas os actores não são bons à partida. Ele corta todas as partes más. No seu último filme, Sandome no satsujin (The Third Murder, 2017), ele teve de cortar tantas cenas com Masaharu Fukuyama que ele acabou praticamente por desaparecer.
Mas… ele é o actor principal! Ele também entrou noutro filme do Koreeda, Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Filho, 2013)…
Nesse até não estava mal, mas quando o papel é exigente já é outra história…
No filme de Koreeda Umi yori mo mada fukaku (Depois da Tempestade, 2016), no entanto, a qualidade da representação é muito elevada…
Eu concordo que nesse filme o nível da representação é muito elevado. Mas, por exemplo, será que o actor Hiroshi Abe é bom noutros filmes? Será que a Kirin Kiki é uma boa actriz noutros filmes?
Nós achamos que é!
Claro que é importante se o realizador for bom, mas nos nossos dias não há muitos actores que inspirem realizadores.
Então, para si, a boa representação depende do trabalho do realizador?
Sem dúvida, depende do realizador. Há pouco [antes da entrevista], por exemplo, disseram que gostavam da Mariko Okada. Ela só é boa actriz quando trabalha com bons cineastas.
Como com o Ozu em Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962)?
Ou com o Kijû Yoshida.
Então não está particularmente optimista em relação ao futuro do cinema japonês?
Temos de esperar para ver. O cinema japonês, tradicionalmente, assenta no kabuki e dedica-se a temas históricos. É um movimento ainda recente, o de querer representar a vida diária, regular e comum.
Mas no caso de Ozu ou de Naruse…
Foi aí que isso começou. É uma coisa muito recente. Que sentimentos é que os actores experienciam nas suas vidas diárias? Não há assim tanta gente que tenha vivido uma vida suficientemente rica que o possam veicular através da representação.
Então considera que um actor tem de ter uma vida interessante para que seja bom?
Sim. Mesmo que não seja uma vida divertida, tem de ser especial. Os actores agora não têm uma experiência vasta enquanto seres humanos, portanto o tédio das suas vidas reflecte-se na maneira como representam.
Pessoalmente, o que faz para além do cinema?
Sou senhoria, como disse.
Mas que hobbies e interesses paralelos tem? É leitora? Viaja?
Eu gosto de viajar. Mas aquilo de que gosto mais é encontrar pessoas novas. Para fazer um só filme, é todo um processo. Portanto encontro sempre pessoas novas e experiencio coisas com elas. Isso enriquece a nossa vida e aumenta a nossa experiência.
Então gosta mais dessa experiência do que de representar?
Eu não gosto mesmo nada de representar. Nem sempre é divertido ou interessante, mas encontrar pessoas, pelo contrário, faz-nos pensar. É desta sensação que eu gosto.
Tem uma biografia muito rica, no sentido em que viveu imensas aventuras. Esteve envolvida com teatro, cinema, fotografia, e até com o rock.
Fiz com que assim fosse!
Mas agora, como actriz, tem usado essa experiência profissional nas suas performances…
Sim, acaba por vir ao de cima.
Acha que é essa uma das razões que fazem de si uma boa actriz? Isto é, o facto de injectar a sua experiência pessoal na representação?
Eu uso esta ferramenta, este mecanismo que é o meu corpo, para interpretar uma outra pessoa. Nesse sentido, seria melhor se o meu corpo fosse neutro. Mas, ao mesmo tempo, a minha personalidade aparece sempre. Idealmente seria perfeito se todos os actores fossem incolores, mas não é assim que funciona. Por isso, no meu caso, eu prefiro ser natural. Ser como sou. É por isso que não faço cirurgias plásticas.
Então, em qualquer filme em que entre, podemos dizer que a Kirin Kiki é sempre a Kirin Kiki.
É verdade, mas isso não é uma coisa assim tão boa. Eu quero tornar-me noutra pessoa, mas não consigo!