Fechamos a cobertura ao LEFFest 2017 com um prato cheio de rico cinema, começando por dois filmes subestimados, um de John Ford e outro de Claude Chabrol, e culminando na experiência propiciada por um filme de Ferrara, com Harvey Keitel e a lisboeta Madonna. Um filme que nos fala de “linhas de separação”, as mesmas que percorrem os diálogos – e o preto-e-branco – de Louis C.K. no seu filme-escândalo I Love You, Daddy (2017). Por fim, fica reservada a amarga sensação de desilusão na análise ao “Verão danado” de Abdellatif Kechiche. Over and out.
When Willie Comes Marching Home (O Azar de um Valente, 1950) de John Ford
Confesso: tenho uma relação de adoração com alguns “Fords menores”, nomeadamente – começo a perceber agora – adoração por aqueles filmes do realizador de The Searchers (A Desaparecida, 1956) que não cabem na gaveta dos “grandes épicos sobre o espírito de uma nação”. Entre eles, estão as comédias, poucas, ainda que excelentes. Lembro-me bem do espanto que foi descobrir uma pequena pérola dos anos 30 chamada The Whole Town’s Talking (Não se Fala Noutra Coisa, 1935), com Jean Arthur e Edward G. Robinson. Vi-o, pela primeira vez, na Cinemateca e várias foram as gargalhadas partilhadas com o público que também ali dividiu comigo esse prazer mais ou menos secreto pelos “Fords menores”. Por isso, tornou-se um imperativo assistir no LEFFest à reposição deste – ainda mais obscuro – When Willie Comes Marching Home. O que torna a “menoridade” deste filme ainda mais saborosa? Desde logo, o facto de esta obra ter sido lançada entre alguns dos mais amados westerns de Ford. Como uma erva daninha, havia qualquer coisa na comédia que parecia ser irresistível a este grande realizador americano pós-griffithiano. Enfiado na filmografia de Ford entre She Wore a Yellow Ribbon (Os Dominadores, 1949) e Wagon Master (A Caravana Perdida, 1950), When Willie Comes Marching Home é um Ford a dar férias a Ford, ao “grande Ford”.
Esta é uma comédia sobre o esforço de guerra americano e a angústia do primeiro herói de guerra local que, na realidade, viu a sua heroicidade virar-se contra si mesma. Este “valente com azar” (para dar a volta ao texto do título em português, não inteiramente infeliz) foi levado aos ombros pelos habitantes de uma pequena comunidade por ter sido o primeiro de todos, entre eles, a acederem ao pedido do Uncle Sam após os bombardeamentos de Pearl Harbour. E lá foi o pobre valente alistar-se no exército. Pobre e azarado, o nosso herói descobriu que a guerra pode ser um sarilho para a sua reputação entre os vizinhos, familiares, e até pode ser como um espinho na sua relação com a doce e compreensiva “Marge”. É que Willie afinal não zarpou. Ficou na sua terriola, eternamente, à espera de ser destacado, de ver a acção no terreno. As ordens são essas, mas o povo desconfia. Willie desespera por uma oportunidade para mostrar a sua bravura. É aqui que John Ford, delirantemente, junta este seu filme ao filão de obras que descontroem a nossa ideia simples – simplória? – de heroicidade e que nos mostram, até ao ridículo, como esta é uma pura “construção social”. Ao lado de clássicos de Preston Sturges [Hail the Conquering Hero (Herói de Mentira, 1944)] ou de Arthur Hiller [The Americanization of Emily (Herói Precisa-se, 1964)], When Willie Comes Marching Home traz um gosto amargo a qualquer campanha de guerra, lançando a dúvida sobre o que é, de facto, um herói. É um herói um herói ou pura construção perceptiva?
I Love You, Daddy (2017) de Louis C.K.
A sessão de I Love You, Daddy foi repleta de gargalhadas. Não umas quaisquer. O peso das circunstâncias deu uma espessura diferente aos efeitos que a comédia no grande ecrã gerou neste auditório. Percebia-se que associado ao riso estava um sentimento de desconforto. Até de alguma culpa. A verdade é que está por todo o lado o escândalo sexual recente, envolvendo o aqui protagonista, montador, argumentista e realizador Louis C.K. – como na série Louie, temos Louis, em grande medida, a fazer de si mesmo enquanto argumentista de séries de televisão. O filme gera um efeito de espelho portentoso, sugerindo uma possibilidade que talvez assuste mais do que fascine. Muito nos temos interrogado sobre como poderemos voltar a encarar agora todos estes “monstros”, que outrora tanto e tão incondicionalmente amávamos, mas ainda não tinha surgido uma outra questão: como é que essa dimensão “monstruosa”, violentamente “real”, pode trazer uma outra profundidade, espessura, até complexidade à obra destes actores e realizadores agora mais ou menos proscritos? I Love You, Daddy é uma comédia agridoce sobre uma cultura pútrida: a de Hollywood, por um lado, e a da televisão, por outro. Ao mesmo tempo, o filme de Louis disseca, com extrema precisão e perturbante presciência, um problema que o aflige neste momento: em que medida podemos separar as “taras e manias” do criador e a sua obra? Esta questão é frontalmente atacada no filme, nomeadamente na personagem do “grande autor de cinema” interpretado por John Malkovich, cuja reputação no filme faz lembrar a de Woody Allen na vida real [não é só o preto-e-branco à Manhattan (1979) que nos convoca muito directamente no filme este herói de Louis].
Desde uma adolescente que explica à personagem de Louis que “toda a gente é pervertida” até ao desesperante grito que Louis dá a certa altura, “Mulheres, desculpem-me!”, tudo parece saltar do ecrã para se baralhar com a vida. Tudo concorre para uma densificação que, porventura, está menos no filme do que na nossa relação com o filme, neste momento. De qualquer modo, não nos precipitemos: I Love You, Daddy é uma boa (re)entrada de Louis C.K. no mundo do cinema. Trata-se de uma comédia corrosiva, a espaços hilariante, que combina dois aspectos fundamentais do humor de Louis C.K.: um sentido de enternecimento e brutal honestidade (“eu não sou ninguém”, diz a personagem de Louis perto do fim, num acto de contrição que lembra de novo… nós sabemos o quê) de mãos dadas com um gosto pela comédia sexual all over the place. Este é também um acenar de mão aos grandes clássicos, sobretudo Ernst Lubitsch e Preston Sturges. A concentração do drama em poucos cenários, com rompantes entradas e saídas de cena dos actores, a velocidade dos diálogos, a permanente “comédia de enganos”… Os ingredientes estão lá, mas não apenas reproduzidos. Louis convoca-os e dinamita-os com essa sua combinação deliciosa de brutal sinceridade com a comédia sexual mais desabrida. Um desamparo e uma violência, de gestos e linguagem, que (já não?) encontramos em Woody Allen, por exemplo.
Merci pour le chocolat (Obrigado pelo Chocolate, 2000) de Claude Chabrol
A vingança serve-se… quente. Bem quentinha. Como o chocolate que faz a fortuna da família Polonski neste subestimado filme de Claude Chabrol. Seguindo as dicas do seu herói Alfred Hitchcock, Chabrol vai tecendo a teia, demorada e prazerosamente. Raras vezes se sentiu uma empatia tão grande entre uma personagem e o realizador francês. A “criminosa silenciosa” deste Merci pour le chocolat, brilhantemente encarnada por Isabelle Huppert, tem os dotes e os requintes de uma genial metteuse en scène (leia-se, de uma genial “mestre das aparências”). Ela tem um prazer diabólico em fazer do seu chocolate quente qualquer coisa mais do que mero aconchego para o estômago e a alma. Sabemos como Chabrol é um realizador gourmet, que adora transformar a comida – em particular, as suas guloseimas favoritas – em matéria dramática. No prato ou na xícara, cozinham-se as relações. E lança-se a teia. É assim que pensa e executa Chabrol.
Nesta história de heranças e relações de sangue mal resolvidas, Huppert é a figura do meio, mais ou menos indecifrável. Sentimos o cubo de gelo por trás do manto da gentileza. O mesmo cubo de gelo que Verhoeven recuperou para o seu genial Elle (2016), porventura o melhor Chabrol que Chabrol não realizou. Mas não fique o espectador à espera que “caia a máscara”. Os realizadores gourmet são isso mesmo: sofisticados. Não gostam da “roupa velha” que são as soluções mais vistas, sobretudo as que ditam como se deve urdir a teia dramática. Chabrol transforma a personagem de Huppert num avatar seu: cuidado na escolha dos produtos, atenção a cada personagem [ao pobre do enteado oferece duas cassetes de filmes que este não viu, La nuit du carrefour (1932) e Secret Beyond the Door… (O Segredo da Porta Fechada, 1947)], mas mantendo-se sempre fiel a uma certa “distância de segurança”. Essa distância é o campo de jogos (cínico, comme il faut) do bom metteur en scène. E este nunca perde a face, não abdica do divertimento e de envolver o mundo na teia das suas ficções. O final de Merci pour le chocolat, em que se fazem todas as revelações, é um exemplar pedaço de mise en scène. Um silencioso ajuste de contas com o passado, auto-contido porque absolutamente “necessário”. A medida justa da elegância e da inteligência dramática.
Dangerous Game (Linha de Separação, 1993) de Abel Ferrara
O título português é muitíssimo feliz de um ponto de vista crítico: “linha de separação”. Este filme de Ferrara, com Harvey Keitel e Madonna nos principais papéis, constrói-se, realiza-se, nessa linha ténue que separa o cinema da vida. Ferrara filma um elaborado – e perigoso – jogo de espelhos entre a realidade que faz cenário atrás e à frente das câmaras. O mundo do cinema ameaça transbordar e contaminar, com consequências nefastas, a vida desse realizador em apuros encarnado por Keitel (que monstruosa interpretação!). Neste film on film, Ferrara exorciza os demónios que afligem o criador ante o mundo, bem como adensa as margens que delimitam o que está dentro e o que está fora. Esta obra conceptual de poderoso efeito, estético e dramático, revela um realizador embrenhado no mundo pantanoso, vampiresco, do showbiz (das neuroses, das drogas, do álcool, da mentira), na esperança de encontrar algures – dentro ou fora…? – uma forma de redenção.
Ouvia antes de entrar na sala que este foi o primeiro filme com Madonna a passar no grande ecrã desde que a cantora se mudou de armas e bagagens para Lisboa. Não dei pela mesma na sala. E o acontecimento não foi celebrado com a presença em grande número de público. Contudo, não era preciso nada disto, porque o filme, que nos mergulha nas trevas e nos violenta como poucos de Ferrara, é todo um universo de questões. Dura inquirição sobre a natureza perversa da criação cinematográfica, sobre a auto-dissolução moral de um certo modo de fazer cinema e de viver (ilusoriamente, porque, grande conclusão, não há “fora” nenhum) para lá dele. Dangerous Game é como um buraco negro. Suga tudo à volta, convoca-nos para um universo de medo e de agressão. É um filme de terror que nos diz que o cinema não é o mundo de magia e inocentes ilusões que nos ensinaram que era. Este é um mundo onde os actores são maus porque já não sabem mentir. São maus porque são verdadeiros. Ninguém poderá conter o jogo real, demasiado real, dos seus demónios. Madonna? Devia ter lá estado, nem que fosse para celebrar na cidade que a acolhe um dos seus melhores trabalhos em cinema.
Mektoub, My Love: Canto Uno (2017) de Abdellatif Kechiche
Como se diz “eu amo-te” em árabe? A pergunta vira jogo numa longa sequência (só há longas sequências neste filme). Mas apetece perguntar antes: como se diz “eu amo-te” na linguagem de Abdellatif Kechiche? É um modo de dizer com o corpo todo, olhos, boca, mãos. Tudo se troca, se toca, se devora sensorialmente. Desde logo, parece ser o sol um dos protagonistas do filme. É ele que incendeia o desejo no areal. É ele que promove a aproximação dos corpos junto ao mar. É ele que encadeia as acções, põe a descoberto a pele das relações – uma que nem sempre se quer coberta, ainda que o prazer também esteja no esconde-esconde, naquilo que não se diz, mas que se insinua. Portanto, “eu amo-te” na casa de Kechiche diz-se assim: eu devoro-te, como o sol que queima a pele, como o mar que a envolve de sal, como os beijos que se dão com os olhos, se sugerem com os gestos, como a comida e o álcool que se leva à boca, sujando os lábios e aquecendo o estômago. Kechiche permanece um dos mais sensuais e sensoriais realizadores contemporâneos nesta história que procura verter em imagens do cinema as sensações de um “Verão danado”, estação feita de deslumbrantes toques e deslumbrantes corpos. A juventude em todo o seu esplendor. Um catálogo de gente bonita que joga o jogo do “como se diz o amor?”.
O elogio à beleza da juventude e dos corpos perfeitos é, contudo, levado tão longe que parece que Kechiche se esquece do seu filme. E o que era a captura do belo vira uma forma de prepotência e exploração. Durante três horas, a câmara, fascinada (leia-se, babada) que está, não cessa de documentar os “miúdos” em acção, a viverem o Verão, a devolverem ao sol raios de sedução e amor. A descoberta mais bela acontece durante a primeira metade do filme: Kechiche encontra o seu sol nos corpos. E a sua câmara ganha, a certa altura, uma dimensão cosmológica (e mitológica, neste caso) que estava apenas sugerida nos seus (melhores) filmes anteriores, mormente La vie d’Adèle (A Vida de Adéle, 2013). Esta excitação da câmara com o mundo sensorial – o do Verão, o das festas e do amor indefinível – é contagiante no início, mas vai progressivamente transformando-se numa outra coisa à medida que o filme encalha no fascínio com o seu mundo. É possível que Kechiche nunca tenha amado tanto os seus actores, a começar pelo seu protagonista, Amin (Shaïn Boumedine), mas também é verdade que nunca esse amor o paralisou assim. Os últimos trinta minutos falam sobre essa paralisia. Essa impossibilidade de avançar. De transformar um olhar numa acção. O filme encalha com(o) o protagonista. Perde-se algures. Com isso, o nosso Verão à Kechiche – o de uma paroxística vivência dos corpos – fica interrompido. Uma promessa que não se cumpre em pleno. Uma desilusão.