Estamos mais ou menos a meio do LEFFest. É tempo de fazer contas à vida. Que cinema retivemos destes dias de festival? Luís Mendonça (LM) entra na viagem de Pedro Cabeleira – responsável por um dos acontecimentos cinematográficos do ano -, aplaude Jean Douchet (o exemplo, a dieta), consome o (bom?) lixo de Ferrara e assiste a uma Huppert que é um “bloco de pedra” para a boa moral reinante. Miguel Patrício (MP) junta-se à cobertura para escrever sobre o filme invernal de Hong Sang-soo, Gen-hu (O Dia Seguinte, 2017), uma das duas obras da sua autoria que constam do cardápio deste LEFFest.
Jean Douchet, l’enfant agité (Restless Child, 2017) de Vincent Haasser, Fabien Hagege e Guillaume Namur
Jean Douchet é um amante dos clássicos gregos. Mas o seu classicismo também pertence ao seu gosto pelo cinema. E não estamos a falar apenas de Fritz Lang ou Raoul Walsh. Em Douchet há uma recorrência de paisagens, movimentos e temas de reflexão que pertencem a uma certa maneira – diria, clássica – de pensar e dar a pensar o cinema. Jean Douchet, l’enfant agité convoca esta magistralidade clássica que assiste aos longos anos em que Douchet se dedicou à disseminação da sua mensagem. Uma mensagem de amor ao cinema, em que a comunicação se estabelece dentro e a propósito das imagens. Entre ideias, Douchet caminha, com palavras, sobre o seu passado: mais um passado da oralidade do que da escrita. Um socrático do cinema que apresentou milhares de sessões de cinema por todo o mundo, actividade de devoção cinéfila que ficou, na sua grande parte, por registar.
Não havendo registos fílmicos ou textuais que possibilitem aceder ao retrato fiel desta vida dedicada ao cinema, este filme realizado por jovens “discípulos”, Vincent Haasser, Fabien Hagege e Guillaume Namur, é obrigado a ser como o seu tema. Viaja, vivendo no presente e projectando-se sobre o futuro, entre testemunhos – dos seguidores mais próximos de Douchet, dos seus alunos a colegas de profissão, na área do fazer, do pensar e do programar – e oferece alguns raros vislumbres gravados em película ou em vídeo da actividade cineclubista, crítica e pedagógica deste “homem cinema”. É uma grande vénia a um ser generoso. Generosidade que os espectadores do LEFFest já puderam atestar por duas vezes. Aquando da sua passagem pelo festival em 2015 e agora, no momento da apresentação deste belo filme que – é o maior elogio que me ocorre fazer-lhe – não é só uma dedicatória justa a um dos grandes críticos de cinema dos nossos dias. Antes de mais ou acima de tudo, Jean Douchet, l’enfant agité é uma dedicatória a todos os que, como Douchet, amam o cinema como alimento da vida. Sigamos o seu bom exemplo e a sua boa dieta. (LM)
The Driller Killer (Driller Killer, 1979) de Abel Ferrara
Em termos estritamente teóricos, será interessante pensar todo o cinema de Ferrara a partir desta sua primeira longa-metragem após a curta incursão do realizador no mundo da pornografia. É inegável que Ferrara sempre se foi alimentando desta violência crua, animal e suja. Há uma dimensão subterrânea nos seus filmes, inclusivamente nos mais sofisticados, que nos remete para o campo do terror. Um terror de rua, de vampiros ou mortos-vivos que habitam as esquinas pestilentas da cidade (os junkies viciosos, os maus polícias sem redenção, o Dominique Strauss-Kahn de Depardieu, etc.). O pecado mora por todo o lado – às vezes de mãos dadas com o sagrado – no cinema de Ferrara – isso parece-me indesmentível. Ora, tudo isto está à vista – demasiado à vista, apetece acrescentar – em The Driller Killer, uma espécie de slasher série B, trashy e selvagem, protagonizado pelo próprio Ferrara na pele de um pintor frustrado que encontra no homicídio a salvação. É um filme em que Ferrara assume mais frontalmente o seu gosto pela porcaria, uma estética da sarjeta, tão lúdica quanto disparatada, que se compraz no derrame do sangue. Sangue pelo sangue.
Esta obra serve de antecâmara para um dos filmes que Lucio Fulci rodaria em Nova Iorque, Lo squartore di New York (The New York Ripper, 1982), ainda que aqui Ferrara estivesse a dar os primeiros passos e revelasse ainda falta de esclarecimento na construção visual e narrativa. Ferrara não abandonaria este género de exercícios, mas aportaria a estes uma elegância e segurança formais que estão omissos aqui. Falo, acima de tudo, de Fear City (Nova Iorque, 2 Horas da Manhã, 1984) – uma espécie de resposta, algo pálida, ao filme citado de Fulci, que, por sua vez, como disse, me parece ter buscado inspiração em The Driller Killer – e o excelente Body Snatchers (Violadores: A Invasão Continua, 1993). O filme que se segue a The Driller Killer constitui um verdadeiro “salto quântico” na sua obra: passamos do silly um pouco afectado para o domínio quase completo sobre uma arte. Falo de Ms .45 (Vingança de uma Mulher, 1981), obra genial que destaquei na minha antevisão a este LEFFest. De qualquer modo, os admiradores de Ferrara – felizmente que estes têm crescido em número nos últimos anos – poderão encontrar em The Driller Killer uma espécie de Ferrara sem qualquer freio, e com isso especular sobre se poderia ter estado aqui em potência um cineasta do terror mais identificável (mais out there). (LM)
Geu-hu (O Dia Seguinte, 2017) de Hong Sang-soo
Desde o distante Oh! Soo-jung (Virgin Stripped Bare by Her Bachelors, 2000), passando por Book chon bang hyang (The Day He Arrives, 2011) até este Geu-hu (2017), sempre existiu no cinema de Hong Sang-soo uma relação estreita entre o preto-e-branco e a atmosfera invernal. De facto, essa trilogia monocromática, única até agora na carreira do cineasta, pode até não ser exclusiva no que a retratos hiemais diz respeito – como esquecer os bafos quentes contra a atmosfera gelada do colorido Ok-hui-ui yeonghwa (Oki’s Movie, 2010)? – mas é a mais definitiva versão da mais fria altura do ano coreano. A direcção de fotografia pode até ser encarada como um capricho de esteta para Hong que frequentemente rasga a serenidade dos planos fixos com zooms agressivos e tem pouquíssima paciência para maquilhar a natureza, a paisagem urbana ou até mesmo os seus actores, porém atente-se, em Geu-hu, à singularidade desta luz filtrada pelas nuvens que envolve os desentendimentos conjugais do quarteto de personagens, essa luz frágil e discreta, relfectida na parede de um simples restaurante que, inclusive, surpreende Areum no primeiro almoço de trabalho com o patrão, Bongwan. Este é mais um filme à Hong: a atmosfera, a luz , mais do que a narrativa, dita a disposição, e não haveria mal nenhum se a tentássemos ilustrar através da seguinte imagem: esfregar as mãos congeladas e aproximá-las à boca na esperança de se aquecerem. Geu-hu é mais um dos seus filmes em que o olhar engendra a necessidade de aconchego – e não são, por norma, os personagens de Sang-soo, principalmente os “artistas” masculinos que carecem de grande artisticidade na vida privada, uns valentes desaconchegados mentais?
Claro que nos estamos a esquecer das típicas traquinices hong sang-soonianas: há uma notável que acontece quando Bongwan e a sua amante prometem amor eterno e a entrada brusca de Areum perturba, não só a intensidade do plano, como a pretensão do que o que tínhamos acabado de observar correspondia a um flashback. Tal como acontece com a livraria vista por um vidro embaciado, também a nossa percepção nos prega partidas (e o filme com a nossa percepção). Da loja do real vemos só sombras e interpretamo-las como se fôssemos plenamente videntes.Hong, no entanto, não quer, nem requer, grandes considerações filosóficas (atenção ao diálogo regado a soju acerca da incapacidade da linguagem chegar aos calcanhares do real incognoscível). Todos os enganos, azares e irresponsabilidades são exorcizados com um leve suspiro ou um inocente esquecimento. No entanto, como fica comprovado pela estranha e anticlimática cena final, talvez o Inverno seja a altura mais propícia para se reconsiderar os erros, a má fortuna e o amor ardente. Uma coisa é certa: a sua entrada progressiva é, em Geu-hu, mais do que um adorno meteorológico ou sazonal. É a manifestação mais profunda das energias que movem o mundo dos seus personagens: o adultério de Bongwan é patrocinado por um passeio, ainda outonal, pelo parque com a amante; a chegada de Areum à editora convoca os princípios da luz de Inverno e o despedimento dela, sendo já a sagração dessa estação, é inaugurado por uma queda de neve vista da janela de um táxi – a cena mais bela do filme e que nos faz acreditar que a devoção de Hong a Kim Min-hee, actriz fetiche e sua namorada desde Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da (Sítio Certo, História Errada, 2015) a despeito de, ainda hoje, o cineasta ser casado com outra mulher, é o “filme” mais à Hong Sang-soo que não foi realizado por ele. (MP)
Une affaire des femmes (Uma Questão de Mulheres, 1988) de Claude Chabrol
Estamos nos primórdios dessa história de um amor magnífico: o de um realizador por uma actriz, o de Chabrol por Isabelle Huppert (a grande homenageada deste LEFFest). Foi uma entrada de leão, já que Huppert arrebatou o prémio de Veneza para melhor interpretação graças a este Une affaire des femmes. Chabrol assinala nos primeiros minutos a importância das interpretações aqui, dedicando o filme aos próprios actores. Este filme pertence-lhes, mas é dela, em primeiro e em último lugar. Tudo gira à volta de Huppert, desde o momento em que esta, na pele de uma abortadeira em plena França colaboracionista de Pétain, sob ocupação nazi, começa a ganhar o gosto pelo dinheiro e a pressentir um futuro recheado de pequenos grandes luxos até ao duro confronto com a realidade de uma sociedade alicerçada em castigos exemplares contra a imoralidade.
Trata-se, portanto, de um filme sobre a interrupção involuntária de uma vida, de um sonho – a personagem de Huppert é abortadeira, mas sonha um dia tornar-se cantora. Um retrato duro de um tempo em que todo um país perdeu a sua dignidade. Chabrol filma esse país a partir dos aposentos de um casal, transformando o apodrecimento de um casamento em metáfora para a derrocada geral da nação. É o realizador certo para este género de analogias. Apesar de longe de ser o mais refinado e até afiado de Chabrol [estamos ainda longe do que aí viria, La cérémonie (A Cerimónia, 1995)], Une affaire des femmes flui, dinamicamente, no sentido do seu seco e duro desenlace. É cativante, mas também é demasiado apressado a desenrolar a narrativa cheia de pequenos episódios. Tudo passa tão rápido, ou apressadamente, que guardamos pouco das personagens (ainda menos dos planos) sem ser, claro, Huppert, que está, como sempre, fabulosa. Por ela, pelo retrato de época, pelo precipício que se abre no fim, vale a pena passar por este filme. Ou deixar-se atravessar por ele, melhor dizendo. (LM)
Verão Danado (2017) de Pedro Cabeleira
A certa altura, o jovem protagonista, Chico, observa que apenas retém da noite o movimento das pessoas a dançar ou “a tripar”. Elas são como espectros que povoam a escuridão cintilante, efervescente, das discotecas por onde Chico se move, noite após noite, até à extinção das formas e até que o dia seja eternamente devorado. A escuridão a que nos devolve esta avassaladora experiência – verdadeira odisseia áudio/visual – de cor, luz, sombra e som da autoria do estreante Pedro Cabeleira pertence por inteiro aonde estamos obrigados a ver – a experimentar, a experienciar – Verão Danado: na sala de cinema. Este filme tem o poder de um grande salvamento: transforma a sala de cinema numa festa, fá-la contaminar-se por esse movimento rodopiante das danças, dos charros, do sexo, da magia tóxica, da inebriada e inebriante juventude à deriva, que se expressa na solidão de um movimento incessante e espectral. Até à pura abstracção.
Cabeleira partilha o desejo pela noite de alguns dos melhores Cassavetes [acima de tudo, The Killing of a Chinese Bookie (A Morte de Um Apostador Chinês, 1976)] e o sentido de frenesim – um frenesim que não é, aqui, tão essencialmente de câmara, mas que emana das coreografias de luz e de cor, e do corpo, que aqui se capturam – do jovem Scorsese de Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973). Mais contemporaneamente, comunica com os cinemas de Larry Clark e Gus Vant Sant [pensei muito em Last Days (Last Days – Últimos Dias, 2005), porque também este é um retrato sónico da juventude, de uma certa “perda de rumo” que se faz rosto de toda uma geração]. É um exercício de liberdade como poucos. Um assalto em plena sala escura, uma imersão extática em jeito de rollercoaster pela noite lisboeta, da qual – a certa altura, viciados que estamos – não queremos sair. Por tudo isto, Verão Danado não é apenas um filme, mas um acontecimento. Ponto muito alto do ano cinematográfico. (LM)