Entrevistámos Maria de Medeiros. Porquê agora? Porque nunca foi tão urgente. Primeiro, a actriz internacional regressa a Portugal para filmar com Margarida Gil. Segundo, o À pala de Walsh programa, no âmbito do ciclo Quem és tu, cinema?, um documentário precioso que Maria de Medeiros realizou para questionar a relação de artistas e críticos entre si e com a fonte do seu desejo, lugar de todas as paixões: o cinema, claro. Chama-se Je t’aime… moi non plus – Artistes et critiques (2004), é um exercício livre de Maria pensado para nenhum público em particular sem ser aquele que se interessa pela paixão do cinema. A curiosidade de saber o que pensam os críticos sobre os realizadores e os realizadores sobre os críticos levou-a longe. Filme de uma hora e vinte minutos saído de 80 horas de material bruto, com entrevistas a nomes grandes da crítica e da criação, de Wim Wenders a Manoel de Oliveira, de Michel Ciment a Todd McCarthy. Mas nem todos os nomes são óbvios. Vá ver este filme raro (dia 14 de Novembro, às 21h30, Teatro Campo Alegre, no Porto; dia 29 de Novembro, às 19h00, Espaço Nimas, em Lisboa) – e leia esta entrevista – para perceber onde cabe o papel de Caetano Veloso neste tango intenso, doce, sedutor, extasiante e dramático, que se desenrola entre crítico e criador. A conversa não se esgotou aqui. Entre outros assuntos, falámos ainda da relação de Maria com “a nova família do cinema português”, da polémica em torno de Harvey Weinstein e quisemos saber as suas impressões acerca da carreira política da sua irmã Inês de Medeiros.
Não há muitos documentários sobre crítica de cinema. Menos ainda sobre a relação entre artistas e críticos. Mas há um que me leva a estabelecer uma comparação directa. Chama-se Crítico (2008) e é realizado por Kleber Mendonça Filho. Este filme marca uma transição na carreira deste realizador da escrita sobre filmes para a sua concepção propriamente dita. Que eu saiba a Maria de Medeiros nunca enveredou pela crítica. De onde veio, então, a necessidade de fazer Je t’aime… moi non plus – Artistes et critiques?
Ouvi falar desse filme [de Kleber Mendonça Filho], mas ainda não vi. De facto, não escrevo crítica. Escrevi uma crítica na minha vida. Foi algo que surgiu de uma emoção muito forte. Foi sobre o Hable con ella (Fala com Ela, 2002), do Almodóvar. Vi esse filme e fiquei muito emocionada. Cheguei a casa e escrevi um texto que mandei para o Jean-Michel Frodon, que nessa época era o crítico do Le Monde. Essa minha única crítica foi publicada no Le Monde com uma série de outros textos em torno do filme. Fiquei muito feliz [risos].
Como é que este filme surgiu? Resultou da minha experiência como júri da Caméra d’or, no Festival de Cannes. Tive a oportunidade de lá ir sob várias facetas. Comecei por ir como actriz, depois estive como realizadora, com os Capitães de Abril (2000), estive ainda como júri desse prémio, Caméra d’or, e da Selecção Oficial. Finalmente, estive como jornalista, de alguma forma, enquanto fazia este filme. Foi uma belíssima experiência, porque o festival é também uma grande festa para a imprensa. Talvez a maior festa seja mesmo para a imprensa. É muito divertido. As pessoas reencontram-se de ano para ano. Tudo isto aparece um pouco no filme.
O que fez nascer a ideia propriamente deste pequeno filme foi essa participação no júri da Caméra d’or. É uma competição especialmente interessante, porque é o prémio para o primeiro filme. Prémio único. É uma escolha complicada. Temos de ver 25 filmes e damos um único prémio. Mas vemos filmes em todas as secções do Festival de Cannes: desde a Selecção Oficial à Un Certain Regard, à Semaine de la Critique, à Quinzaine des Réalisateurs … Estamos sempre a ir de uma secção para outra. Muitas vezes assistimos aos filmes junto com a imprensa. Isso foi uma experiência que eu não tinha tido. Marcou-me ver como essas pessoas que vêem milhares de filmes por ano – críticos de cinema do mundo inteiro, mas, em especial, os franceses – saíam das projecções e discutiam como se fossem adolescentes apaixonados por cinema. Achei tão tocante! Às vezes as pessoas perguntam-me se tenho algum ressentimento em relação à crítica. Não, pelo contrário!
O que me levou a fazer este filme, este exercício de tentar analisar esta relação que é toda ela de projecção psicanalítica de uns para os outros, foi observar a grande paixão, a carga emocional que essas pessoas mantêm. A sua paixão pelo cinema não se desgasta. Numa forma de mosaico, o filme tenta abordar diversos aspectos dessa relação, ao mesmo tempo, de paixão e de vaidade. No fundo, eu queria também lançar uma reflexão sobre a estética, sobre a nossa relação com a obra de arte, sobre esse reduto inviolável de subjectividade que mantemos com a obra de arte. No início queria tratar esta relação em todas as artes. Mas com tanto material – 80 horas! – pensei: “vou limitar-me ao cinema, o cinema como paradigma dessa relação com a arte”. Depois, várias pessoas de outras artes me confirmaram [essa relação paradigmática], porque reconheceram muitas coisas.
Este seu filme teve poucas exibições.
Foi um filme feito para um canal de televisão. A exibição no cinema foi uma surpresa. Não estava prevista.
Ele foi pensado para um determinado tipo de público ou foi um exercício mais livre, feito para si?
Nasceu de uma vontade completamente subjectiva. Nada a pensar em nenhum público. Queria simplesmente tentar captar essa percepção que tive em Cannes. Para mim há uma parte muito importante de projecção de parte a parte. Como é que a criação, a análise e as personalidades se inventam umas às outras? Outra coisa que me interessou analisar – e que me parece divertido – é que o artista é uma pessoa que constantemente dá a cara. O crítico, por sua vez, é uma entidade sem cara. O artista, em geral, não o conhece. Mas o crítico entra com uma força extrema na subjectividade do artista. Quando é positivo, o artista imagina o crítico como um ser extraordinário que o entendeu profundamente ou, quando é negativo, entra como um ser diabólico que está ali para o destruir. Num festival como Cannes tudo é magnificado até níveis que acabam por ser muito engraçados.
O próprio documentário oscila entre extremos na sua relação com a crítica. Temos o Wim Wenders a dizer, a certa altura, que se sente mais reconhecido quando alguém na rua lhe diz que um filme seu lhe mudou a vida do que quando um crítico escreve uma crítica positiva sobre esse mesmo filme. Por outro lado, vemos Christophe Honoré a ler, em primeira mão, uma crítica fresca a um filme seu. A Maria mostra como ele reage de uma maneira quase juvenil ao que lê.
Juvenil e apaixonada. Ele repete o nome do crítico: “Olivier Seguret, Olivier Seguret”. Essa pessoa já entrou na vida dele para sempre. Acho isso muito tocante.
Parece-me que esta espécie de relação bipolar com a crítica é capaz de existir em quase todos os realizadores. Lembro-me a propósito disto do papel do Caetano Veloso neste filme. Ele funciona, a meu ver, como o “grande crítico”. Ele canta a relação entre crítico e artista ao longo desta colecção de testemunhos, pontuando-a em certo sentido. E o remate é dele, quando aparece para dizer que o crítico é necessário, mas também é necessário – estou a parafrasear – “brigar com ele”. É esta também a sua conclusão depois de ter realizado este filme?
Creio que, de facto, sim. A grande conclusão é que uma obra de arte existe pelo espaço de debate que cria. O espaço da crítica é, por isso, muito importante. Nisso estou absolutamente de acordo com o Caetano Veloso. E também, nesse particular, com o Manoel de Oliveira. De facto, esse espaço de debate é necessário para o próprio aparecimento da obra de arte. Para a sua existência pública, digamos.
Ainda bem que referiu Manoel de Oliveira. Fiquei – fico sempre, ainda hoje – surpreendido com a sua lucidez. Neste seu filme, ele diz que a crítica deve penetrar no filme e ensinar algo ao realizador. Em suma, para Oliveira, o realizador é o principal destinatário da crítica. Em que medida é que esta comunicação existe, de facto, e é globalmente desejada por parte dos artistas e críticos? Pergunto isto porque há críticos que dizem que escrevem para si mesmos ou que o seu compromisso é com o leitor.
Quando o crítico diz que o compromisso que tem é com o leitor está a colocar-se na posição do artista também. Voltamos ao Caetano Veloso: ao escrever algo, o próprio crítico submete ao público um objecto de debate. Penso que o Manoel de Oliveira quando diz isso vai mais além do crítico. De facto, o público ou a pessoa que recebe a obra de arte com certeza a complementa, a completa. Mas todas as entrevistas do Manoel de Oliveira fascinam, porque é, de facto, um pensador cheio de fineza e com muita graça. É muito curioso porque quando lhe perguntei qual tinha sido a sua melhor crítica, ele, de alguma forma, varreu anos de crítica quando disse que tinha sido em 1931 [sobre Douro, Faina Fluvial (1931)].
Fala-se a certa altura na possibilidade de o crítico ser um artista frustrado. Um lugar-comum já muito batido. Mas, ao mesmo tempo, a Maria contrabalança esta questão com outra: haverá uma dimensão artística adstrita ao trabalho do crítico?
Certamente, sobretudo, quando pensamos no Truffaut, por exemplo, e tantos realizadores franceses que estabeleceram essa continuidade entre o pensamento crítico e a criação artística. E isto é muito saudável, no fundo. Será que, na verdade, a experiência da criação legitima a posição crítica também?
Há uma variedade grande de testemunhos, de observações sobre o papel ou mesmo utilidade do crítico. Como actriz e realizadora, terá ouvido e testemunhado outras tantas. Houve alguma ideia que a surpreendeu especialmente?
Eu parti já com a intenção de construir uma narrativa amorosa. De facto, foi isso que eu senti quando estava nessa posição, compartilhando, de alguma forma, o Festival de Cannes ao lado dos críticos. Mas sim, houve várias ideias que me surpreenderam e me pareceram fascinantes, nomeadamente o Gérard Lefort, o crítico, na altura, do Libération. É uma pessoa extremamente inteligente e é, aliás, quem diz as coisas mais violentas contra os críticos. É ele que fala dos artistas frustrados. Chega a dizer que a maioria dos críticos é gay. E são muito solitários. Ele contou uma história, que acho absolutamente formidável, e que, para mim, se revela um paradigma sobre a nossa relação com a obra de arte. Ele fala do cansaço das pessoas em Cannes. Não dormem, vêem 5 ou 6 filmes por dia, têm de escrever, vão às festas, etc. Primeiro, ele critica todos os colegas que adormeciam nas projecções. Conta que ele próprio também adormeceu, durante projecção de um filme do Tarkovsky. Escreveu todo um texto sobre uma cena que o maravilhou no filme. No limite de o publicar, os colegas disseram-lhe: “desculpa, mas essa cena não existe no filme”. Era uma cena que ele tinha sonhado! Acho isso lindíssimo. Obedece à nossa relação com a obra de arte. De alguma forma, ela fala directamente ao nosso inconsciente. A nossa subjectividade mais profunda toma para si a obra de arte.
Wim Wenders conta gravosamente que uma vez uma crítica quase levou uma actriz sua ao suicídio. Perguntava-lhe se pessoalmente já se sentiu mal ou desejou o mal quando leu uma crítica a um qualquer trabalho seu.
É, de facto, violento. Mas acho que o amadurecimento leva a aceitar que, de alguma forma, faz parte deste jogo que instaurámos à volta da produção artística. Sinceramente, o filme não nasceu de um trauma. Não me considero vítima… pelo contrário! O filme nasceu de achar graça à conjunção de paixões que se criam. Mas, claro, a paixão é violenta.
Queria dar um pequeno salto, aproveitando esta oportunidade que me concede. A Maria de Medeiros está indissociavelmente ligada à história do cinema português moderno. As suas participações marcantes em Silvestre (1981) e Três Irmãos (1994), só para citar dois exemplos, parecem-me fundamentais para se entender os últimos trinta ou quarenta anos de cinema nacional. Perguntava-lhe como olha a evolução do cinema português, e se se sente próxima desta nova geração que está a eclodir (Salaviza, Leonor Teles, a equipa do Som e a Fúria, etc.).
Sigo um pouco de longe. Porque, na verdade, venho pouco a Portugal. Por acaso agora estou cá. Para mim, é uma grande emoção. Estou a trabalhar com a Margarida Gil, que não via praticamente desde o tempo do Silvestre. Mas sempre tive uma grande admiração pelo cinema português. A sua peculiaridade. Acho admirável esta nova geração. Com certeza que continua defendendo a especificidade do cinema português, a sua linguagem muito própria.
Sente-se parte desta família, desta nova família que se está a constituir?
As famílias também são nómadas. Há um certo nomadismo que já se instalou na minha forma de ser. Quando estou em Portugal, sim, sinto-me parte da família. Quando estou a filmar noutros países, também. Nestes tempos de exacerbações identitárias – não estou a falar de Portugal, neste momento -, prefiro pensar que nos podemos adaptar e sentir familiares com situações muito diversas.
Ao mesmo tempo, há uma carreira internacional que é vasta. E se está na origem da geração pós-Cinema Novo, está na origem também da Hollywood moderna. A sua participação em Pulp Fiction (1994) coloca-a nesse lugar onde tudo ou quase tudo partiu. Infelizmente, o filme tem estado nas notícias pelas más razões ultimamente: Harvey Weinstein. O próprio Quentin Tarantino tem sido visado por não ter denunciado os alegados abusos contra actrizes cometidos pelo produtor. Como é que tem acompanhado este processo?
Parece-me que a luta feminista segue absolutamente vigente. Durante muitos anos achei que as nossas mães já tinham feito tudo. Na verdade, verifico que há muito, muito por fazer. Com certeza é dos abusos instituídos mais difíceis de desinstituir. Há uma lei do silêncio. Fica mal falar de certas coisas. Por isso, eu considero muito saudável e necessário que as coisas venham à tona. Foi sintomático disso o que se passou há pouco tempo com um ministro francês, quando lhe perguntaram se ele denunciaria algum assédio do qual tivesse conhecimento perto dele. A resposta automática que deu foi: “não, sou contra o denunciar”. Ou seja, se vemos um acto de escravatura a ser perpetrado, não vamos denunciar… Os abusos contra a mulher é dos redutos mais resistentes que compete continuar, continuar, continuar a tentar revelar. E acabar com isso.
Isto leva-me a outra coisa, que me parece problemática. Tem que ver com a relação entre a arte e o artista. Há uma relação, sobre a qual já falámos, entre críticos e artistas, mas há também esta relação fundamental dos artistas com a sua arte e da sua arte com os artistas. Será que esta história sobre Weinstein deve interferir na valia ou na valência da obra que fez?
Todos sabemos que a história da arte é povoada por personagens tudo menos isentos de zonas sombrias. Acho que não, acho que não tem nada que ver com a obra.
Nós programámos Je t’aime… moi non plus, mas estávamos hesitantes entre esse seu filme e o da sua irmã, O Fato Completo Ou à Procura de Alberto (2002), olhar interessante sobre um casting para um filme. É um interesse das irmãs Medeiros: pôr o cinema ao espelho, pô-lo a pensar-se por dentro?
Certamente. Nunca tinha pensado nessa equivalência, mas é muito bem vista, sem dúvida. Vimos ambas de um contexto onde se analisou muito as coisas, onde se reflectiu muito sobre a actividade artística e a criação.
Isto tem que ver com a vossa polivalência. Mais sobre a sede do que sobre o copo de água. É uma visão do mundo que partilham?
Sim. Isto remete para o nosso contexto familiar. O nosso pai e mãe sempre foram muito polivalentes. Muito analíticos também. O meu pai [o maestro António Victorino de Almeida] sempre foi músico e analista da música. Sempre tivemos este lado da produção e da reflexão sobre a produção.
Realizadoras, actrizes e, acrescentava este ponto de actualidade, políticas. A sua irmã, Inês, venceu as eleições para a Câmara de Almada recentemente. Uma vitória surpreendente, já que a câmara esteve durante décadas entregue ao PCP. Como acompanhou esta etapa na vida da sua irmã?
Recebi com grande surpresa. Ela surpreende pela sua tenacidade, a sua força de trabalho, de engajamento. Estou como uma espectadora, mas é evidente que há aspectos em comum entre a representação e a política. Claro que a política é um salto para outra etapa, em que nos casamos completamente com a imagem pública. Diferente do actor, em que é um casamento mais momentâneo. Neste momento estou como espectadora desta carreira extraordinária que a Inês está a desenvolver.
Não é atraída por esse palco, o da política?
Não, acho que o meu lado de palhaço prevalece [risos].
O À pala de Walsh deixa uma nota de agradecimento ao António M. Costa e ao Francisco Rocha pelo apoio à produção desta entrevista.