O nascimento oficial da Cinemateca aconteceu, discretamente, a meio de um artigo da Lei que criou o Fundo do Cinema Nacional (FCN), que foi o primeiro instrumento de apoio à produção de cinema português. Lia-se, no n.º 6 do art.º 7º. da Lei n.º 2027 de 18-2-1948 que, entre as várias “aplicações das disponibilidades do Fundo”, estaria também a “criação e instalação de uma cinemateca nacional”. A utilização dessas verbas seria clarificada um ano depois numa nota do Conselho de Administração do FCN ao sempre vigilante Presidente do Conselho de Ministros. A Cinemateca poderia adquirir “filmes antigos portugueses, filmes portugueses modernos de interesse especial, livros nacionais e estrangeiros referentes ao cinema, revistas nacionais e estrangeiras de cinema, fotografias de filmes nacionais, antigos e modernos, música de filmes portugueses (edições impressas e discos fonográficos), material de preparação de filmes portugueses (planificações, projectos de cenários e figurinos, etc.), material de publicidade de filmes portugueses.”
E foi isso mesmo que M. Félix Ribeiro (1906-1982), primeiro diretor da Cinemateca, começou a fazer a partir de 1949, engrossando deste modo algumas compras avulsas que já fizeram enquanto diretor da secção de cinema do SPN, cargo que ocupava desde 1935. Essa coleção seria guardada, primeiro, nos cofres de uma distribuidora comercial e, depois de 1954, nos cofres climatizados que construiu nas traseiras do Palácio Foz, sede do SNI e da Cinemateca, e que eram então uma estrutura de conservação relativamente rara no resto do mundo. Dois anos depois veio a admissão na FIAF e, em 1958, a inauguração ao público da Cinemateca através da abertura da biblioteca e do início da programação regular na sala do Palácio Foz (onde hoje se encontra a Cinemateca Júnior).
Ora o que poucos sabem, e é por isso o assunto deste texto, é que as primeiras preservações e restauros da Cinemateca datam já deste período tão recuado. Aliás, a mais antiga operação deste género parece ser mesmo anterior à criação formal da Cinemateca. Em Dezembro de 1938, a Alfândega do Porto ofereceu ao SPN uma cópia do filme A Rosa do Adro (1919) de Georges Pallu, com intertítulos franceses, certamente destinada a exportação, que ali tinha ficado retida. Poucos anos depois, em 1942, a cópia foi duplicada, o que fez de A Rosa do Adro um dos primeiros, senão mesmo o primeiro, filme português jamais preservado.
Logo após a conclusão dos cofres em 1954 e até final da década, a Cinemateca iniciou a preservação dos filmes portugueses na sua coleção – universo relativamente modesto e que, em 1959, se limitava a apenas 44 longas-metragens de ficção, isto é, cerca de 25% dos filmes produzidos até então. No mesmo período, arrancou a organização de retrospectivas de cinema português, primeiro no estrangeiro, depois no próprio país. As duas atividades estão intimamente relacionadas já que a preservação incidiu exclusivamente sobre os títulos que integrariam as retrospectivas. Neste sentido, a utilização do termo “preservação” talvez seja mesmo um pouco abusiva porque o trabalho sobre os materiais originais, fossem eles em suporte nitrato ou safety, cópias ou negativos, tinha como principal (senão único) objectivo a obtenção de cópias projetáveis. A criação de elementos intermédios (indispensáveis para a conservação a longo prazo de qualquer filme) só tinha lugar nos casos em que isso era tecnicamente necessário para chegar às novas cópias e não revelava por isso, a não ser de forma involuntária, uma política sistemática de salvaguarda das obras originais, tal como seria mais prática corrente.
As primeiras retrospectivas da Cinemateca são, deste modo, um excelente indicador para perceber não só como cresceu, mas também como foi sendo preservada a coleção. Até 1962, as retrospectivas da Cinemateca deram prioridade ao cinema português – exceção feita ao ciclo de cinema alemão que se realizou em maio de 1960 apenas com filmes da coleção da Cinemateca Nacional. A “Retrospectiva do Cinema Mudo Francês”, organizada entre março e abril de 1962 com a colaboração da Cinemateca Francesa, assinalou o arranque das retrospectivas programadas com arquivos estrangeiros que marcaria o resto da década.
A primeira retrospectiva organizada pela Cinemateca aconteceu ainda antes da sua inauguração oficial (em 1958), e teve lugar numa secção paralela do Festival Internacional do Filme de São Paulo, no Brasil, em 1954. Foram apresentados os filmes Os Crimes de Diogo Alves (2011) de João Tavares, Canção da Terra (1938) de Jorge Brum do Canto, Aniki-Bobó (1942) de Manoel de Oliveira, Ala-Arriba! (1940) de Leitão de Barros, Amor de Perdição (1943) de António Lopes Ribeiro, 1943, Douro, Faina Fluvial (1931) de Manoel de Oliveira, e ainda os documentários Primeira Travessia do Atlântico Sul (1940) de Fernando Fragoso e Raul Faria da Fonseca, Estampas Antigas de Portugal (1949) e Cortejo Histórico de Lisboa (1947) de António Lopes Ribeiro. Os mesmos filmes foram novamente apresentados num ciclo intitulado “Panorama do Cinema Português” organizado pela Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1955.
No ano seguinte, a Cinemateca apresentou pela primeira vez uma retrospectiva em Portugal e na sala do SNI no Palácio Foz, espaço que partilharia com o Secretariado durante as décadas seguintes. O ciclo de filmes enquadrava-se no festival “30 Anos de Cultura”, comemorativo das três décadas do regime. Mais uma vez, a projeção de documentários recentes subsidiados pelo FCN foi combinada com a de filmes portugueses antigos. Aos já mostrados no Brasil, juntaram-se Nazaré, Praia de Pescadores (1929) e Maria do Mar (1930) de Leitão de Barros, A Canção de Lisboa (1933) de Cottinelli Telmo, A Revolução de Maio (1937) de António Lopes Ribeiro, Camões (Leitão de Barros, 1946) e Frei Luís de Sousa (1950) de António Lopes Ribeiro, e os documentários Inauguração do Estádio Nacional (1944) do mesmo Lopes Ribeiro, Exposição de Arte Sacra Missionária (1952) de Gentil Marques, Hulha Branca (1953) de Armando Silva Brandão, Palácio de Queluz (1952) de João Mendes, O Desterrado (1951) de Manuel Guimarães e Exposição de Arte Portuguesa em Londres (1956) de António Lopes Ribeiro.
Finalmente, entre 1958 e 1961, a Cinemateca organizaria seis retrospectivas de cinema português (três de cinema mudo, três de sonoro) onde foram exibidos 36 filmes. A primeira dessas retrospectivas, realizada em setembro de 1958, acompanhou a inauguração oficial da Cinemateca e marcou, simbolicamente, a sua abertura ao público. Estas retrospectivas circulariam depois por todo o país, sendo apresentadas nos cineclubes ou, onde eles não existissem, em salas comerciais especialmente alugadas para o efeito. Entre 1958 e 1967, cada uma das três retrospectivas de cinema mudo repetiu-se, depois das sessões inaugurais em Lisboa, em mais 25 a 30 vilas e cidades. Os dados parcelares sobre a frequência das retrospectivas permitem estimar um número total de espectadores na ordem das dezenas de milhar. Tratou-se de um esforço logístico muito assinalável para o qual Félix Ribeiro pôde contar com o auxílio de vários funcionários do SNI, entre os quais Jorge Pelayo (1922-2003), que acompanhou presencialmente várias sessões fora de Lisboa. Para satisfazer uma circulação tão intensa de filmes, foram mesmo tiradas cópias suplementares de alguns títulos já que, independentemente das retrospectivas, a Cinemateca continuava a responder a inúmeros pedidos de cedência de filmes vindos um pouco de todo o país, das colónias e do estrangeiro.
Outro meio de divulgação da coleção de cinema português da Cinemateca foi a televisão, que multiplicou o já considerável número de espectadores das primeiras retrospectivas. A Canção de Lisboa (1933) de Cottinelli Telmo, que viria a ser o filme português mais difundido de sempre, foi mostrado duas vezes em 1957, ano de arranque das emissões regulares da RTP. Entre os anos sessenta e setenta, muitos filmes sonoros portugueses foram exibidos no programa “Cinema”, apresentado por Fernando Garcia. Os filmes mudos portugueses, por seu lado, foram transmitidos no contexto de programas especializados como o muito popular “Museu do Cinema” (c.1964-1974), apresentado por António Lopes Ribeiro ou ainda “Cinemateca” (1974), apresentado por António Ruano – entre os títulos cuja exibição está documentada encontram-se Os Crimes de Diogo Alves (1911) de João Tavares, Mulheres da Beira (1922) de Rino Lupo, Alfama (1930) de João de Almeida e Sá, O Destino (1922) de Georges Pallu, Os Lobos (1923) de Rino Lupo, Lisboa, Crónica Anedótica (1930) de Leitão de Barros, Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920), A Rosa do Adro (1919) e Amor de Perdição (1921) de Georges Pallu e A Fonte dos Amores (1924) de Roger Lion.
Mas estas as retrospectivas também motivaram, para lá da simples tiragem de cópias, algumas intervenções mais profundas sobre os filmes. Foi o caso de duas das mais importantes produções da Invicta Film – Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920) e Amor de Perdição (1921) de Georges Pallu – de que existiam apenas os negativos, completos, mas desordenados. O realizador Armando da Silva Brandão (1906-1982), autor de vários filmes subsidiados pelo FCN (e que também faria o primeiro inventário sistemático das coleções fílmicas da Cinemateca em 1959), foi convidado por Félix Ribeiro a proceder à paciente organização narrativa daqueles materiais, à elaboração de novos intertítulos e, finalmente, à introdução das cores das tintagens originais de que havia indicação nos próprios negativos. Esta última operação, relativamente rara noutras cinematecas, implicou uma reprodução aproximada dos métodos laboratoriais dos anos vinte e, à semelhança daqueles, a imersão de trechos da nova cópia em cubas com os banhos químicos e os pigmentos correspondentes a cada uma das cores que se pretendia replicar. Todos os trabalhos de laboratório foram executados na Ulyssea Filme onde, também sob a direção de Silva Brandão e até ao final da década de 1950, seriam reconstituídas as tintagens de várias outras cópias de filmes mudos entretanto duplicados – O Destino (1922) de Georges Pallu, Malmequer (1918) Leitão de Barros, O Primo Basílio (1923) de Georges Pallu, Os Lobos (1923) Rino Lupo, Frei Bonifácio (1918) de Georges Pallu, Rita ou Rito (1927) e O Táxi n.º 9297 (1927) de Reinaldo Ferreira.
Entretanto, alguns destes filmes mudos foram novamente preservados e restaurados nos 1990, recorrendo a processos de duplicação fotográfica mais sofisticados e capazes de reproduzir as cores originais de modo mais fidedigno, tanto em laboratórios estrangeiros como, a partir de 1998, no próprio laboratório de restauro fotoquímico do ANIM. Ao contrário do que a maior visibilidade pública da programação pode fazer pensar, a verdade é que o restauro de filmes é, por estas bandas, tão antigo como a história da própria Cinemateca. O Sr. Armando Silva Brandão que o diga!
Todas as imagens (exceto indicação em contrário): Col. da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.