Pessoas vivas! A vida não tem de ser representada como é nem como deveria ser, mas como se nos afigura nos sonhos.
Anton Tchékhov, A Gaivota
A vida e a escrita
Em Film Hieroglyphs, Tom Conley argumenta que a figuração da escrita em cinema possui um estatuto disruptor, uma vez que a dimensão codificada (porém, visual) da linguagem escrita é necessariamente posta numa relação de tensão com a qualidade icónica da imagem cinematográfica.
No primeiro plano de Kapurush (O Cobarde, 1965), de Satyajit Ray, lemos: “Welcome”. Aqui, para além de funcionar como um elemento de disrupção, segundo as coordenadas lançadas por Conley, a palavra escrita convida ainda a um visionamento distanciado, uma vez que parece concretizar uma interpelação directa ao espectador. Como se o filme nos convidasse a apercebermo-nos de que ele sabe que está a ser visto, o que reitera, naturalmente, a condição representativa do filme, que abdica assim, pelo menos parcialmente, de criar uma ilusão de realidade autónoma.
Na sequência inicial, dois outros elementos apontam para uma ténue desestabilização da ilusão narrativa e para uma porosidade entre níveis de realidade. Num primeiro momento, um homem visível em campo expira o fumo do cigarro, e o título do filme surge como se fosse expirado juntamente com o fumo.
Ao exalar o título do filme, o protagonista parece ser apresentado como, de alguma forma, autor do filme que esse título identifica, ao mesmo tempo que – voltarei a este ponto no final deste texto – o filme é, de certa maneira, feito equivaler ao fumo de um cigarro.
Pouco depois, um travelling para a frente enquadra as personagens numa segunda moldura, no que constitui um lugar-comum da chamada de atenção para a qualidade representativa, circunscrita e emoldurada, da imagem cinematográfica. O recurso a este enquadramento durante os primeiros momentos do filme recorda também, desde logo, que aquilo a que se assiste não é a vida, mas uma imitação de vida, ou – usando terminologia teatral que esta sugestão de espaço cénico motiva – uma representação. Ray dificulta assim, desde logo, um entendimento ingénuo ou simplista do realismo cinematográfico do qual ele se tornou um dos nomes paradigmáticos. Mais do que isso, Ray propõe, com uma economia e uma sofisticação notáveis, uma nova e inesperada lente para ver e interpretar este filme e, por extensão, o seu cinema.
Uma avaria no táxi em que Ami viaja obriga-o a parar numa terra desconhecida, onde o informam de que é necessário substituir uma peça da ignição do automóvel. A peça, porém, não existe na pequena localidade onde o passageiro e o taxista se encontram, e terá de ser encomendada à cidade mais próxima. O processo demorará algum tempo. Perante a inexistência de outros táxis ou de comboios que permitam a Ami prosseguir a sua viagem, Bimal – um desconhecido que então passava na oficina para fazer um telefonema – oferece-se para o acolher em sua casa enquanto a peça não chega.
Logo depois, ficamos a saber que Ami escreve argumentos para cinema. A caminho de casa, Bimal pergunta ao escritor o que motiva a sua viagem, e este afirma que a passagem por aquela região se deve a uma história que está a escrever:
AMI: My story’s set in a place like this.
BIMAL: I see. Local colour.
AMI: Yes. Best to have firsthand knowledge.
Este é o primeiro de vários diálogos que, ao longo de Kapurush, aludem a uma interdependência entre experiência e escrita. Sugere-se assim, através de Bimal, um paradigma de criação em que, para escrever sobre qualquer coisa, é preciso conhecê-la primeiro. Segundo este método, à criação subjaz necessariamente a experiência, não havendo lugar para a imaginação e para a criação ex nihilo. A certa altura, Bimal diz: “you must experience all sorts of things in life. Otherwise how will you write about them?” Segundo o entendimento que Bimal – um homem de negócios aparentemente sem ligação alguma com o universo da arte – faz da criação artística, a escrita resulta da imitação da experiência, e, por analogia, a escrita (e a arte) é sempre o duplo de qualquer coisa real.
Mais do que fazer um entendimento mimético da arte – em que o referente pode ser a ideia de uma coisa –, Bimal é radical na sua concepção da arte enquanto tradução directa de uma realidade contingente. O filme formula assim, nesta primeira fase, uma dinâmica relacional entre viver e escrever na qual a vida, por definição, antecede a escrita, o que por sua vez parece implicar uma cisão entre ambas as forças: se a escrita vem depois da experiência, a escrita está, com efeito, fora do campo da experiência. Viver e escrever são actividades tomadas como distintas e, de certa forma, mutuamente exclusivas. Mas veremos que, simultaneamente, o filme trabalha também com uma noção oposta.
O argumento e o filme
Chamando a nossa atenção para o binómio viver/escrever através da noção de arte repetidamente enunciada pelo ignorante Bimal (muito embora, como vimos, tenha sido Ami o primeiro a mencioná-la), o desenvolvimento do filme vai progressivamente evidenciando que o que se está a pôr em causa, aqui, é a coexistência problemática entre o filme Kapurush e o argumento que Ami escreve no interior da ficção. Atentando na primeira fala do diálogo transcrito acima, a reflexão pode orientar-se menos para o problema da relação hierárquica entre experiência e vida, e mais para uma sobreposição, difícil de resolver, do escrito e do vivido. Quando Ami afirma que a sua história se passa “num lugar como aquele” [in a place like this], efectiva-se estranhamente a coincidência entre o espaço onde se desenrola a história que escreve, o lugar em que se encontra fisicamente e o espaço do filme que o espectador está a ver. O diálogo prossegue do seguinte modo:
BIMAL: So what kind of story is it? Romantic?
AMI: Oh. Yes.
BIMAL: Boy meets girl. Boy loses… [não se lembra da fórmula]
AMI… Boy gets girl.
[ambos] Boy loses girl!
A trama sentimental do filme de Ray coincidirá também, em traços gerais, com esta hipótese de argumento. Mas os jogos de (des)coincidência são aqui múltiplos. Num momento posterior, Bimal afirma: “you ought to be a film star yourself and not just write for them”, ou, referindo-se à esposa, propõe a Ami: “what an actress! Need a female lead for your film?”. Ao fazer isto, Bimal volta a espreitar para além do seu universo diegético, tornando evidente para o espectador a coincidência entre as personagens Ami e Karuna e os actores que lhes dão corpo (Soumitra Chatterjee e Madhabi Mukherjee), que o espectador conhece de outros filmes de Ray, e em particular como o par malfadado de Charulata (estreado um ano antes de Kapurush, em 1964). Ami e Soumitra, e Karuna e Madhabi, são, no filme de 1965, coincidentes numa mesma figura cinematográfica, bidimensional e feita de luz, simultaneamente com traços de realidade e de ficcionalidade.
A certa altura, Bimal diz a Ami: “if tomorrow’s a nice day, I thought we might take you out for an excursion. Tomorrow’s Sunday, and there’s a lovely picnic spot. Maybe you’ll even put it in your story”. No dia seguinte, eles fazem o piquenique e, por consequência, o filme mostra efectivamente esse “lovely spot”. Aceitando a coincidência entre a história escrita e o filme, a promessa de Bimal (“put it in your story”) concretiza-se, reforçando a sobreposição entre o argumento de Ami e o filme a que se assiste. A aparentemente simples designação “your story” diz afinal respeito, simultaneamente, à narrativa escrita por Ami, à história vivida por ele, e ao filme que ele protagoniza e que Satyajit Ray realiza.
Certos episódios afiguram-se particularmente relevantes no modo como, gerindo a progressão do diálogo, trabalham a transposição do problema da experiência e da escrita para o do argumento e do filme. Bimal, que, através de sugestões e conselhos, parece ter decidido ocupar uma espécie de lugar de co-autoria do argumento de Ami – e, por consequência, do filme –, decide a certa altura insistir com este para que beba uma bebida alcoólica, contrariando a abstemia habitual do escritor, justificando a sua insistência com o facto de o protagonista da história que está a ser escrita também “tomar a sua primeira bebida”. A sugestão de metalepse agudiza-se noutro diálogo:
BIMAL: Mr. Roy, I haven’t bored you, have I?
AMI: Writers aren’t easily bored. They’re always looking for material.
BIMAL: So now I’m material, am I? Don’t tell me you’re putting me in your story.
AMI: Would you object?
BIMAL: Certainly not. But on one condition. Don’t make me the villain. That would upset my wife.
Experienciar a vida para depois a poder replicar no papel, no episódio da bebida, e procurar activamente material sobre o que escrever são, aqui, actividades postas directamente em relação com a evidência de estas serem acções que estão a acontecer em filme, num plano representativo análogo ao do argumento que Ami parece estar a preparar. Ao contrário daquilo em que acredita Bimal, o filme começa a sugerir que talvez a arte se processe numa promiscuidade selvagem entre níveis de realidade distintos.
Numa outra cena, depois de dizer “here’s something you might use in your story”, Bimal discute os sistemas de castas. O espectador poderá então lembrar-se de que tomara conhecimento, durante um primeiro flashback, de que uma razão significativa para o fracasso da relação de Ami e Karuna no passado fora a pertença a estratos sociais diferentes. Aceitando a hipótese de coincidência entre o argumento de Ami e o filme de Ray, o excurso de Bimal é efectivamente “usado na história”, tal como ele fora “usado como material”, tornado personagem, uma espécie de antagonista inadvertido (“don’t make me the villain”).
Sobre a representação
As questões centrais da vida e da escrita (a vida que precede a escrita, a vida que prescreve a escrita, a vida que é escrita), e do argumento e do filme (o argumento dentro do filme, o argumento coincidente com o filme, o argumento do filme), são suportadas por outros núcleos temáticos específicos, sempre directa ou indirectamente relacionados com estes.
Neste contexto, o tópico da representação (e, portanto, da transfiguração) pontua todo o filme sob diversas configurações. Quando Ami e Bimal chegam à casa, o alpendre funciona como um palco que anuncia a casa como o espaço do acto que tem então início; na sala, tapetes feitos de pele de tigre funcionam como símbolos de transformação e metamorfose (de animal vivo [verdadeiro] a animal morto [falso], de ser vivo a objecto artístico); nas paredes da casa vêem-se diversas reproduções; quando Ami entra no quarto que lhe é destinado, olha-se ao espelho e vemos o seu reflexo refractado; um plano em contrapicado mostra o rosto de Ami transformado por um copo interposto; etc. O plano da vida, portanto, é trabalhado pelo filme como impuro à partida: duplicando-o, a representação integra e dilata o real.
Durante a longa sequência passada na residência do casal, Bimal pede a um empregado que se coloque de perfil junto a um desenho da autoria da esposa. Fazendo notar a Ami a semelhança entre o modelo e o retrato (“tell me, isn’t that a good likeness?”), Bimal posiciona o discurso reflexivo do filme num nível mais basilar da mimese, o da reprodução do real por semelhança, o que se articula em particular, é evidente, com o regime de imagem privilegiado pelo cinema.
A exposição prossegue, no entanto, para uma complexificação do problema, ao mostrar-se o desenho do exterior da casa da qual Ami e o espectador conhecem apenas o interior. A transição entre um caso em que o desenho coincide perfeitamente com o objecto (no qual Ami pode reconhecer a semelhança) e um outro caso em que a representação difere profundamente do que se conhece do objecto (em que Ami não pode reconhecer no desenho a casa onde se encontra) permite perceber que o filme joga com diferentes noções de articulação entre real e representação, e em particular que o objecto representativo não mantém sempre uma relação óbvia com um referente. Neste passo, o filme situa-se já muito longe dos esquemas simples propostos por Bimal nas primeiras sequências.
Os desenhos são da autoria de Karuna, cuja imagem é reconfigurada sucessivamente ao longo do filme. Depois do primeiro flashback, no qual ela surge enquanto imagem mental ou alucinação – portanto numa condição espectral –, Ami olha através de uma fresta da porta entreaberta e avista o retrato da mulher na parede da divisão adjacente, vendo também, simultaneamente, a sombra dela projectada na porta. Entrando nessa divisão da casa, aproxima-se do retrato e Karuna aparece em pessoa. Das figuras de ausência (fantasma, retrato, sombra) transita-se para o corpo material e, em princípio (sabemos que não é bem assim), tangível.
A relação entre estas diversas figurações é trabalhada visualmente ao longo do filme de várias maneiras. Há planos, por exemplo, em que se vê Karuna ao fundo da sala a olhar para o seu próprio retrato, e há outros em que, por um segundo, a sua cabeça se sobrepõe ao retrato. Este trânsito tão intenso de formas da imagem de Karuna suscita o questionamento do estatuto ontológico deste corpo, que é evidentemente análogo ao complexo estatuto das imagens de cinema. Mas uma vez que todo o filme seja perspectivado à luz destes problemas, Ray convida-nos a reflectir, em particular, sobre a categoria de realismo a que tradicionalmente associamos o seu cinema.
Inteligibilidades
Para além de uma figura metamórfica, Karuna é ainda uma figura da ocultação. No carro, os óculos escuros impedem que Ami e o espectador possam seguir o seu olhar no rosto enquadrado pelo espelho retrovisor. As suas respostas às perguntas de Ami são invariavelmente ambíguas, por exemplo:
AMI: Just tell me if you’re happy or not.
KARUNA: What do you think?
AMI: I’m trying to figure it out, but…
KARUNA: Then let it remain a mystery.
A propósito da problemática da interpretação em Kapurush, Andrew Robinson escreve:
“It is even possible to interpret the film in two wholly different ways and still make sense of it: Gupta may or may not have known what was going on between his wife and their guest. “While making the film, I had in mind this double aspect”, said Ray. “As to which is true, I have left this as a permanent question”. (175)
As figuras da interpretação, aliás, desdobram-se. O actor Soumitra Chatterjee terá dito que “much is left to the imagination of the audience” (apud Robinson: 170), o que se prende essencialmente com a personagem feminina e com o seu papel de esfinge, figura opaca. Num outro diálogo, a pergunta retórica perturba a comunicação:
AMI: You mean you’re happy to see me again?
KARUNA: Do I act as if I’m unhappy?
AMI: No, but…
KARUNA: Don’t let your imagination run wild, Ami. Stop worrying and get some sleep.
Ou, continuando na obsessão de Ami pela felicidade, ou não, de Karuna:
AMI: Are you happy in marriage?
KARUNA: Why?
AMI: I have to know.
KARUNA: Why?
AMI: I must know.
KARUNA: Or you’ll never know peace the rest of your life?
A insistência do filme em obstruir o caminho para a interpretação pode prender-se também, para além do primeiro nível da narrativa[1], com uma estética do obscurecimento que se reflecte ainda neste discurso reflexivo oferecido à margem. De tal forma consciente, desde o início, de ser um filme, Kapurush parece procurar um sentido, ou uma função, para a sua existência através da sua narrativa e das suas personagens, cujas motivações e sentidos, no entanto, constantemente escapam à compreensão.
Um caso paradigmático ocorre na cena do piquenique. O marido adormece, Ami tenta conversar com Karuna, que, voltada de costas, não responde. Ele deposita um bilhete sobre o colo dela, que projecta um possível cenário futuro: “I’ll wait at the station until the last moment. If you still love me, come. I won’t let you down this time”. No final, ela aparecerá efectivamente na estação, mas apenas para pedir a devolução de alguns comprimidos que Ami levou da casa e reiterar, assim, o unhappy ending.
A dificuldade de interpretar a intriga e a psicologia das personagens parece consistir, no fim de contas, num sintoma da aparente impossibilidade de formular com precisão a proposta de cinema (ou de arte) que Satyajit Ray elabora em Kapurush.
Sombras de sonhos
A sequência do piquenique consolida ainda a problemática da vida e da arte, do argumento e do filme. A certa altura, Bimal pergunta “how’s the story coming along?”, ao que Ami responde: “it’s coming”, olhando de seguida para Karuna. A anterior sugestão de metalepse – de sobreposição da história escrita, da situação vivida e do filme visto – é efectivada neste momento em que se sabe que a história está a ser escrita (este é o primeiro momento em que Ami anuncia que tem estado a escrever à medida que o filme avança). Depois de repetir a fórmula “boy meets girl, boy gets girl, boy loses girl” (que já não funciona como prenúncio, mas sim como sentença para o final que se aproxima [lembremo-nos de que se trata de uma co-autoria]), Bimal adormece com o cigarro na mão, para depois acordar com o calor nos dedos e ouvir de Ami: “I do the same thing when I fall asleep writing”.
Pouco tempo antes, durante a viagem para o local onde viria a ter lugar o piquenique, uma câmara subjectiva tinha feito coincidir o ponto de vista da câmara com o ponto de vista de Ami, tendo-o já realizado antes, por exemplo, na ocasião em que, da cama, ele olha para o retrato de Karuna. A partilha do ponto de vista reforça subtilmente, ainda que de forma inequívoca, uma afinidade do olhar, apresentando Ami como chave focal do filme. Se durante a primeira parte se sugeriu, através de Bimal, que a arte sucede a experiência, este momento final, em que escrever, fumar, dormir e sonhar são de alguma forma postos em relação íntima, permite-nos regressar ao início, em que o título do filme era expirado juntamente com o fumo do cigarro, e equacionar a possibilidade de o filme de Ray a que assistimos ser o sonho de um escritor que adormeceu enquanto escrevia. Assim sendo, todo o filme consiste, ao nível diegético, em sombras de um sonho. Isto anula a dimensão psicológica e representativa (realista) do filme de Ray? Não inteiramente, porque o sonho tem muito de psicologia, e ainda mais, porventura, os sonhos de um escritor.
Referências
Mitra, Premendra. 2010. “The Tale of a Coward”, trad. Arunava Sinha, World Literature Today, November issue, http://www.worldliteraturetoday.org/2010/november/tale-coward-premendra-mitra
Robinson, Andrew. 1989. Satyajit Ray, The Inner Eye: The Biography of a Master Film-Maker. London & New York: I. B. Tauris.
[1] No conto de Premendra Mitra que o filme adapta é particularmente insistente a caracterização de Karuna como uma mulher cuja psicologia e intentos Ami não consegue interpretar. As últimas palavras do conto, escritas pelo narrador e protagonista, são justamente “I’d never know”.