Tal como os maus escritores podem gozar de um lugar junto dos bons escritores numa livraria, os maus realizadores podem gozar de um lugar junto dos bons realizadores num escaparate de cinema. Trago esta imagem porque junto a The Square (O Quadrado, 2017) se encontrava o belíssimo Toivon Tuolla Puolen (O Outro Lado da Esperança, 2017) de Kaurismäki. O que há entre estes filmes? Apenas a coincidência de ambos se encontrarem em exibição no mesmo cinema, porque tudo o resto os separa de forma irremediável. Não pretendo criar qualquer correlação entre ambos, até porque difícil seria estabelece-las. Mas se mesmo assim pretendermos reduzir o cinema à questão simplista do tema, veríamos tal exercício frustrado face à diferença que há entre um filme que tudo quer exibir e outro que tudo quer dar a ver. O exibicionismo de The Square começa logo no seu início, num plano negro onde uma música eletrónica vai em crescendo, como se de uma avalanche que se aproxima se tratasse. Talvez Östlund esteja tão habituado a esta metáfora, que decide dar continuidade à imagem do seu anterior filme Turist (Força Maior, 2014), mas como uma verdadeira derrocada, ou melhor, uma dupla derrocada, a da dignidade humana, a par da do cinema.
Podíamos discutir ainda sobre a forma bondosa como o Outro Lado da Esperança nos dá a ver, sem qualquer truque reducionista, uma situação que de pouco real tem, e no entanto a ela lhe é tão devedora. Mas ciente que nenhuma obra fará ou será capaz de fazer jus à vida e condições que essas pessoas atravessam, sem obliterar a sua subjectividade e mundividência, Kaurismäki opta por filmar sobre a vida mas dentro do cinema e servindo-se do cinema. O que num vemos de absolutamente cinematográfico, no outro surge repleto de pretensões panfletárias e grandiosos gestos humanitários, que acabam apenas por exibir uma coisa, a farsa ridícula como tudo foi construído unicamente para demonstrar a suposta generosidade e lucidez do seu criador. É disto que infelizmente O Quadrado sofre e nos dá a sofrer, ao longo de duas horas e meia.
Sem qualquer tipo de contenção, quer formal – basta pensar no plano nas escadas, onde pai e filhas sobem vários lances, enquanto a câmara os acompanha com o mesmo cuidado que uma máquina de lavar roupa, programada para centrifugar, tem com a nossa roupa – quer no assunto que aborda. Ele entra no mundo da arte contemporânea com a mesma arrogância e desfaçatez que um dia Altman entrou no mundo da moda e fez Prét-à-Porter (Pronto a Vestir, 1994).
Não façamos deste filme a primeira mancha do suposto honroso pano que é Cannes ou esqueceríamos outros exemplos do mesmo calibre, como é o caso de Dancer in the Dark ou do voyeurismo pornográfico que é a La vie d’Adèle.
Repleto de ideias pré-concebidas, o espectador é conduzido através desta paródia – ou será antes pária? – sobre as velhas ideias tipo: a dependência dos museus a vergarem-se à alta burguesia e empresas, onde a única coisa equiparável ao seu poder económico é o seu conservadorismo e suposto analfabetismo artístico; os artistas bem intencionados que recebem milhões e se perdem em conversas de circuito fechado, enquanto a vida oferece um pano de fundo repleto de mendigos que necessitam do nosso apoio sem a suposta “mediação” artística; ou o confronto entre o alto burguês poderoso e a criança do bairro pobre. Enfim, ideias tão gastas, que melhor exercício seria partir delas para as desconstruir, em vez de contribuir com mais um pedaço de cimento e pedra, para fixar a doxa já instalada.
Mais curioso e irónico ainda é pensar que este filme foi o vencedor deste ano no festival de Cannes. Imagino a satisfação deste mesmo tipo de burguesia a rir-se de forma desbragada, enquanto se observam e comentavam, “este filme é tudo sobre o nosso universo, mas em nada é sobre nós”. Porque dele não podemos tirar qualquer ilação, na medida em que é de tal forma reducionista, que todos cabem mas a nenhum na verdade lhe assenta a casaca. Assim podemos sair descansados, foi apenas mais um exercício de purga. Purga de um quadrado e não de um círculo.
Por isso, o plano do personagem principal a vasculhar o lixo, parece ser o melhor exemplo da exigência que este filme convoca, quando interpela o espectador e a este lhe pede para encontrar algo digno de nota. Porque são inúmeros os sacos de lixo que este filme recolhe e despeja por cima de nós, desde os mendigos filmados sem o mínimo de respeito ou interesse pela sua condição, – estão ali apenas para fazer contraste -, à situação do homem que sofre de tourette, para o usar como comentador do estado da arte (comparável a esta sequência inenarrável, só Dumont seria capaz do fazer), ao vídeo da menina que nos explode em grande plano para nos alertar sobre a propagação das imagens mediáticas e da indiferença a que estas nos conduzem (infelizmente este filme, enquanto objecto “artístico”, não nos oferece nenhuma imagem de resistência), até à suposta “performance” onde o artista-animal despoleta o burguês-animal durante um jantar promovido pelo museu (talvez se este, aquando da montagem, tivesse (re)visto El Ángel Exterminador (Anjo Exterminador, 1962) de Buñuel, nos teria poupado a estes 20 minutos).
Contudo, não façamos deste filme a primeira mancha do suposto honroso pano que é Cannes ou esqueceríamos outros exemplos do mesmo calibre, como é o caso de Dancer in the Dark (Dançando no Escuro, 2000) de Lars Von Trier ou do voyeurismo pornográfico que é a La vie d’Adèle – Chapitres 1 & 2 (A Vida de Adèle – Capítulos 1 & 2, 2013) de Abdellatif Kechiche. Este é somente mais um exemplo de que – tal como os maus livros que junto dos bons livros convivem nas livrarias -, os maus filmes junto dos bons filmes, também se juntam em outros espaços, além dos escaparates do cinema. Mas podemos encontrar por entre a lista de premiados desse mesmo festival, exemplos de bons filmes, comoo T’am e Guilass (O Sabor da Cereja, 1999) de Abbas Kiarostami ou La Stanza del Figlio (O Quarto do Filho, 2001) de Nanni Moretti. E recordo dois casos relativamente recentes, ou não vá um certo discurso tão instalado quanto este filme, apontar que, na escolha, apenas há o saudosismo de um velho do Restelo preso aos clássicos.