Day of the Outlaw (Homens de Gelo, 1959) de André de Toth é um dos meus filmes favoritos de 1959, mas o seu lugar nesta crónica consiste na idiossincracia de ser um western niilista situado e sitiado em um White Panoram ontem só reservado às éclogas dos Pais primevos como às elegias dos Filhos líricos; Gérard de Nerval deu-nos noites transfiguradas pelo spleen da desaparecida Aurélia, como Nick Drake pelo do próprio eu, abduzido pela acedia, e eu posso apostar com vocês que o lirismo sturm und ich de Nerval, como o pastoral elegíaco do outro tem sua comum origem nos mefíticos ares emanados destes excelsos cadáveres. Para mim, Day of the Outlaw vai tão longe em um como em outro sentido, e nos presenteia com um magnífico espécime lavrado pela secreta mas consequente trajetória de certo classicismo que esposou sincreticamente o arabesco barroco como índex de demoníaco. Qual o preço, mnemônico e experiencial, de um sumptuoso rastro de sangue sobre a neve?
As origens como os destinos do western se cumpriram sob o sol e nas pradarias empreinte de Deus, onde a Panorâmica no cinema se achou sem precisar se buscar. Day of the Outlaw também conhece do mundo estes huis clos semi-expressionistas, agora horizontais, que a água-forte do noir saturou, onde homens se afrontam nos extremos do cadre moderno – e, portanto, plástico às irisações da força -, mas começa e se encerra na mesma paisagem que os clássicos celebraram como o rincão ideal de sua presença pujante: os campos de pasto e de caça, que também são vistas imemoriais para os fados dos homens. “What are you thinking about the winter”? O inverno, sim, na soberania, nesta grisalha retinta de branco que sitia a casa. A foto de Russel Harlan no-lo restitui segundo um metálico irisado de luz, pois já não temos direito ao fosco túrgido de vibratto luminoso do Gregg Toland de How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941) e da batalha na neve de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941). Este não será, no entanto, o décor preponderante, pois Day of the Outlaw, embora ainda sob o pretexto diegético do tantálico confronto duelístico, que aqui reencontra o cósmico maniqueu da Natureza “trabalhada” pela violência humana, já se pensa segundo aquela intuição de Daney do espaço entre as coisas como característico dos modernos. O filme vai tratar das transições e gravitações entre o Fora e o Dentro, e modular-se segundo os diapasões da Força adequadas a estes décors: a neve será o lugar das epifanias intempestivas, mas também das agonísticas arquetípicas, que do Griffith de Two men of the desert (1913) à Die Antigone des Sophokles (1948)de Straub sempre se resolveram ao sol: chegadas, partidas, e os duelos decisivos para rupturas ‘contratuais’ ou definitivas. Vejam por exemplo esta chegada de Mrs .Crane, que atravessa a neve guarnecida com um manto de marta insuflado pelo passo expedito. É uma imagem sincreticamente acabada dos dois ‘destinos’ do filme: uma epifania de corpos solicitados pela Força in natura, pois, em seu zénite horizontal ao longo do campo, é a rasante de um negro monólito que impressiona a carne do mundo. Mas a sua chegada é também uma pedra de toque melodramática para que se active novamente a paixão de Starrett- Blase (Ryan), nota desencadeadora do romanesco de vendetta, espoliação e crime do bando de Jack Bruhn, o misantropo renegado da Cavalaria que vai opor-se en abîme de duplo complementar a Blase. Novelesco e pictórico, funcional e musical, corpus de faustosa mise en scène e eficiente thriller panteísta, Day of the Outlaw se percute segundo o timbre contrapuntístico de um trágico originário, onde a vida nada é senão o efeito prismático de afectos e de trilhas disjuntas que só a morte poderá reconciliar.
Em The Musketeers of Pig Alley (1912) de Griffith, Lillian Gish se estreita contra a borda do quadro direito, à porta suspirante. Há um barman que, azafamado, esfrega o balcão com o pano, não sem antes dar uma vista de olhos para o cliente que chega e precipita-se incontinente para o quadro que desaparece, também à direita. Há agora um cavalheiro que, no baile, segura o braço de Gish contra o seu e, cioso deste camafeu vitoriano, a carrega igualmente para fora do quadro. E mais adiante a relevância do cadre limítrofe como lugar de passagens, de aparições e desaparecimentos vai se concentrar neste ladrão sinuoso que se esgueira atrás do muro, recua, volta a nos aparecer, oculta-se sob outra protuberância de pedra, finalmente avança e, achatado num close contra nós, figura o evento ex-nihilo de Criação do mundo por Deus… Sim, desde este filme único o cadre no cinema nos apareceu como um espaço excelentemente flexível, que o tempo, a ruse (ficcional), a figuração intermitentemente afectiva habitaram à sua bela e plástica potência.
Em Day of the Outlaw, western tardio que é contemporâneo do cinema verdade, da Nouvelle Vague e de sua retórica rough cut, De Toth recupera o cadre classicista como lugar privilegiado para figurar fronteiras. E o faz agora segundo a mais-valia acumulada por todos estes anos, porque não mais apenas o cadre é o lugar de transições e trocas, como também as grades (que enquadram a escadaria principal), espelhos, janelas, espelhos de espelhos, vistas Alberti da janela da sala de estar para a eternidade do branco acetinado e do duelo primordial que se encena lá fora. Um dos génios consideráveis deste filme consiste em solicitar esta diversidade de tropos genealógicos em um espaço tão restrito para magnificar – por contraposição dramática mas também de quid cinematográfico – uma cena excêntrica e porosa aos ditames dos deuses a uma centrípeta e vocacionada mais cenograficamente ao “acto trágico”. É na modulação destas cenas de uma tragicidade diferida pelo décor que detectaremos a acção do génio do classicismo em ter sabido traficar-se segundo modus operandi plásticos e dramáticos múltiplos, sem deixar de habitar o sempiterno Uno, dialeticamente refractado em dois, da contemplação sub species… e da eficiência funcional.
Este universo atravessado por zonas fronteiriças, divergido por limiares, sitiado por situações objetais é também uma superfície onde se figura uma profundeza psíquica e emocional. Bruhn e Starret são duplos complementares e se espelham negativamente na medida em que – como o predador ‘paterno’ feito por Ivens em Wind Across the Everglades (A Floresta Interdita, 1958) de Nicholas Ray para com o ‘filho’ ecológico feito por Christopher Plummer -, ambos exprimem usos distintos de uma mesma força ressentida contra o mundo. E a alteridade, que em Bruhn evoluiu para uma franca misantropia, enquanto que em Barret se acera neste olhar entre cínico e desconfiado que Robert Ryan, cowboy tardio, soube imprimir melhor do que ninguém a personagens desencantados que seriam a melhor expressão diegética dos romances de formação deceptivos de tantos modernos. A referência aqui a Nicholas Ray não é, portanto, “casual”; como no caso de tantos que, devidamente curtidos pelo sofrimento, estabecelem entre si e o outro o sursis exilado de uma frieza preventiva, ambos se reconhecem nesta cumplicidade, asceticamente tantálica, que para muitos é a única forma de cortesia possível. Ferido pelo amor frustrado por Mrs. Carne (“agora” Mrs Crane), mas também – como diagnostica-nos uma réplica que ele lança à comunidade ‘em suspense’ da plongée revanchista de uma escada central aos embates cenográficos da força – “magoado com tudo aquilo que fez por eles e que não souberam avaliar ou estar à altura”, ele é desses homens que, como Bruhn, tudo viu e conhece os homens demais para ter ilusões. E é sintomático da modernidade do filme que De Toth introduza decisivas fissuras páticas (a paixão “dorida” de Barret por Crane, a doença cardíaca de Bruhn, e o dinheiro em ambos) como estigmas psicossomáticos de mortalidade.
No filme de Ray, a paixão de Plummer pelos pássaros é, como no Nietzsche de uma correspondência a Heinrich Kösterlitz viu, o claro índice de um amor que não encontrou correspondência entre os homens. De “alguém sem lugar no mundo” que, de demiurgo da natura acede ao in extremis de místico supra-natura. E é unicamente através de uma noite iniciática, na qual é introduzido, bêbado e delirante, por este pai simbólico que é também um arquétipo panteísta, que ele pode aceder à reconciliação celebratória do final. Ray é um romântico expressionista, e precisa sempre da paleta orgiástica dos encarnados fulgurantes e negros retintos de angst para se expressar. De Toth é antes um classicista robusto que se serve do barroco como um révelateur da interioridade do honnête homme clássico, da paixão deliquiscente que o destina ao naufrágio afectivo. As linhas rectas e angulosas do arcabouço classicista são retesadas por esta foto de violento contraste, ou “complicadas” pela proliferação de objetos de cena que, pressionando “tight and sharp” os personagens contra o cadre e entre si, presentificam cumplicidades empáticas ou rivalidades rancorosas em um mesmo plano. Outro gênio aliás do filme de De Toth é que a plasticidade sumptuosa de ourives do décor se ajusta, sem rusga nem marulho, à funcionalidade ascética da diegese e personagens. “Homens duros à medida de um mundo implacavelmente sitiado pela Natureza”, reencontrando pelo détour deste expressionismo da litote, um itinerário revificante em direcção à arena trágica, aqui simultaneamente concêntrica e “estudo de caracteres kammerspiel” como excêntrica e panteísta. O leitmotif dominante, porém, é o ressentimento, a “paixão mal curada”, o revanchismo viril, cicatrizes de uma gesta filial de irreconciliação com o passado, que os modernos só tornaram lancinante, inscrevendo-a na astenia física ou psíquica dos heróis tardios, tão precisamente descritos pela intuição de P.L. Thirard: “Se nos tempos heróicos a saúde física era algo evidente, não ocorre mais o mesmo: o cowboy pode estar tuberculoso. Ele pode mesmo ser cego. Sua função o leva a sentir-se mal”. Aqui, Bruhn vai retirar uma bala a seco num plano de minutos, como ao final infartar sobre a neve. E Barret interioriza todas as feridas do mundo neste casmurro fatalístico de Quasímodo silencioso.
É estudando talvez a actuação magnífica de Burl Ives, este ogre empedernido que os percalços dos filmes tornarão humano no diapasão da criança, que captamos com mais exactidão de “registo” esta relevância da afectividade, predominantemente negra, para um filme ainda tão devedor de transparência. Pelo menos em sua robustez estrutural. O monocromatismo rugoso, o pachorrento quietista, a sisudez opaca, mas ruseiramente iluminada por intermitências libidinosas de humor ou desejo de Ivens ,o talham idealmente para representar um homem que, desertor da Cavalaria, abandonou a princípio a economia restrita conscienciosa do dever a qualquer custo por uma geral do bando de desertores predatórios, mas ainda trabalhada pelo que “aprendeu” no exército. Sim, método, rapidez expedita nos movimentos, como cálculo frio para as estratégias, pois a instituição sofistica as virtudes da selva para fitos de “aproveitamento total”. Ele é desses desiludidos que acabam por se voltar contra tudo o que lhes fez de mal. Robustecido agora pela argúcia daqueles curtidos pelo negativo vida afora, vontade de potência implacável que, do cimo gélido de sua psicopatia, serve-se da crapulice truculenta dos outros do bando para orientá-los exclusivamente no sentido de sua marcha, pace, estratégia. Ele enumera as funções e encarece as virtudes predatórias dos homens a seu serviço. E é como se a lógica industriosa de tantas “soluções finais” empreendedoras estivesse por trás de tudo. Bruhn de facto media a violência de seus homens, a princípio interditando estupros e assassinatos e uísque, e, pouco a pouco cedendo, jogando, contratando, trabalhando a negra libido em questão para servir a seus propósitos realpolitik. Volto depois à realpolitik, aliás. De Toth vai mortalizá-lo, porém, com a bala, o problema cardíaco e a entrada em cena de Gene, este jovem aprendiz que parece ter sido também transplantado de Nicholas Ray, o Plato de Rebel Wihout a Cause (Fúria de Viver, 1955), ou o Turkey de Johnny Guitar (1954). Para, como nestes filmes, inspirar-se em uma ou outra lição “paterna”, e seguir moldado por esta experiência primordial que o filme descreve. Aqui, no entanto, ao contrário dos enfants terribles de Ray, Gene se salva, e passa adiante o anel, talvez porque a De Toth interessem sobretudo estes tácitos acordos como dissensos taciturnos que opõem os maduros Bruhn e Barret, ambos mais inclinados a ilustrar os itinerários de uma força dorida, ressentida ou ensimesmada. Percursos mais adequados à ‘profundeza’ do ethos trágico.
Mas eu quero me debruçar sobre a entrada em cena de Bruhn, particularmente instrutiva sobre a forma como este figurativismo clássico também está impregnado de figural energético ou mediúnico, e esposa um expressionismo da infiltração funcionalista, que refinou seus meios retóricos de presentificação da interioridade, segundo o registo de absoluta legibilidade classicista. Em um plano médio, De Toth nos mostra o deslizante percurso de uma garrafa ao longo da mesa do saloon. É o sinal para começar um duelo: Barret fora advertido por Mr. Crane de que, se não fosse embora, sofreria as consequências, “pois eram três contra dois’”. Barret ordena que Dan, seu amigo, deslize a garrafa, e, quando ela cair no chão, já sabemos o que virá. Contracampo para um parceiro de Crane de costas, inteiriçando-se no preparo para a luta, e voltamos à garrafa ao longo da mesa. O que não se esperava é que a sua queda é interceptada pela entrada no quadro do bando de Bruhn, que arromba a porta e instaura uma nova cena, liderada, régia e estrategicamente, por Bruhn. É a interrupção deste bólibo de força centrífuga, que se dirige para a extrema direita pela força opostamente centrípeta do “clã de Bruhn”, que nos revela paradigmaticamente a natureza da força reactiva em questão. Uma força eminentemente devedora de ruse e da estratégia calculista, e que se serve da paixão dos outros para enaltecer o seu logos inquebrantável. É numa sequência sintética, mas prenhe de inervações mediúnicas (a ansiedade pânica dos que esperam a garrafa cair), que De Toth nos revela que Bruhn é este arrivista ontológico, mas também um parasita bélico, que se serve da oportunidade como de uma arma excelsa. E que essencialmente estará “sempre aí” para aproveitar-se do momento e décor adequados e cravar a garra na presa. Ele continua “no exército”, é claro, e podemos certamente imaginar que sua misantropia achou naquela instituição guerreira um instrumento extraordinário para adestrar-se segundo os telos de uma blitzkrieg da rapina. Barret, podemos ver, é também um prático inerte, experimentado pela certeza de que as paixões antes perdem que elevam o homem. E, precavido, é “este homem gatilho certeiro e olho alerta”, que se contém numa certa pose estatuária para, mimético ao inanimado, averiguar as possibilidades de fuga como de avanço. Mas o “terceiro traço genial” do filme é que nada se exaure nesta tipografia behaviorista que eu tentei aqui, e que por mais que tenha virtudes em ver tudo cinzelado sob a pontiaguda têmpera do arquétipo, acaba sempre por desconhecer o virtuoso fair play de um artista que, embora classicista segundo a letra, também é moderno ao adaptar sua mise en scène et cadre ao génio de cada actor. Robert Ryan e Burl Ives desvelam-nos as anfractuosidades de carácter sob o tipo, como as comissuras de uma máscara mal ajustada à face. Porque o corpo de um actor de cinema é um container temporal e afectivo, que adere ao tipo exemplarmente apenas quando toma da palavra. Mas é nas pausas “averiguadoras”, em que Ivens circunda o espaço da audiência com o olhar – comandando-os sob um logos maturado a ponto de prescindir da dimensão sensível da palavra falada, e se entrincheirar completamente nos olhos -, ou nesta displicência um tanto hesitante que se apossa de Ryan, malgré lui, que vemos que o primeiro foi completamente “adestrado” pelo auto-controle da razão instrumental. E precisará da experiência mortal do filme para ser humano novamente, enquanto o outro, demasiado humano, ainda balança ao sabor dos humores do mundo e do outro.
A cena endógena da cabana, clássica adaptada ao acto trágico, é este ensemble do estuque, do pé direito alto, da lareira intermitente, do retrato oval da família, do “plano de conjunto cerimonial duelístico”. De Toth reserva para ela os percursos de uma violência que, restringida e edulcurada pelo concentracionismo, refinou suas potências selvagens em dança (a cena, um tanto paródica de tantos bailes hagiográficos comemorativos em Ford, da polca dos bandidos com as mulheres), em pictórico engalanado, em arquitetural esmerado. Como nos mostram três planos de Ermine, olhando o duelo sobre a neve, a cabana é o lugar da perspectiva da janela de Alberti, onde o sujeito, através do exercício do olhar de Apolo, cujo nome é representatio, assegurou-se da res do mundo. Nestes belos planos onde vemos a mulher amedrontada e a criança anteverem seus destinos, este olhar ontem altaneiro hoje se mortifica um tanto, e nos acautela para o fato de que, em uma arte onde a configuração do plano é o elo de uma cadeia temporal, no próximo contracampo poderemos ser nós o alvo. Lá, em um contexto funcional predatório que o género trabalha idealmente, exercita-se a contemplação previdente, para que possamos nos situar em relação ao próximo ataque, como estabelecer miras. A violência também habita o dentro, é claro, porque no western moderno nada estará indefeso aos turbilhões da força. Mas ela se estatuiu nesta regula da coerção constrangedora ou da ameaça “simulada”. Propriamente uma encenação: a tortura da criança, a dança atabalhoada dos criminosos. Neste travelling circular com que nos mimetiza um percurso cambaleante de álcool e lubricidade, Toth nos leva, é claro, a “jouir” com a inebriância destes que não devem ver mulher e uísque há algum tempo, mas ele também denota neste tropo plasticamente intensificado que a contenção espaço-temporal (a cabana, o pouco tempo que resta antes do amanhecer), como limites de toda espécie, necessariamente acabam por espiritualizar a pulsão. Talvez “porque amanhã não tem mais”, e o desperdício é suspenso em nome da mediação sumptuosa. Falo disso para contrapor o “retrato oval engalanado” do dentro ao uso da vista geral e enevoada lá fora. Vista para a qual se estocam os itinerários libidinosos de uma força épica que, liberta das restrições de uma cena centrípeta, pôde entregar-se às volúpias mundanas da Natura. Neste mundo hic et nunc, que Ermine contempla desconsolada da janela ‘Alberti’, pode-se e deve-se matar, como morrer casualmente de enfarte ou exaustão. Porque o homem agora está entregue, é certo, à plenitude animal de sua presença no Mundo, mas por isto mesmo radicalmente submetido aos mesmos ciclos de apogeu e decadência das espécimes animais. É preciso “saber ver” que o esplendor fascinante desta neve encrespada de luz, túrgida de sombra no iminência do crepúsculo, e intermitentemente avariada pelo percurso de homens em disputa, é o efeito daquilo mesmo que os pode matar. Esta reserva imemorial de Força, que de tanto nos exaltar acaba por aniquilar.
É para o espectador que o clacissismo reservou o espectáculo desta hubris do branco grisâtre, porque, com excepção de Ryan (sobrevivente mais contido, e por isso sabiamente “ainda aí2), os heróis não chegarão ao final da jornada para nada aprender. A fascinação destas vistas onde De Toth talvez melhor tenha exercitado seus dotes de pintor in natura (as vistas endógenas haviam manifesto seu génio de pintor de caracteres in vitro) vem desta essência mortificada do classicismo, que se revela em uma de suas últimas aparições épocais. Os esplendores mas também os horrores do mundo, sua vocação agonística como fulgurante, e isto em um mesmo plano, por efeito de um mesmo deslumbramento aturdida de primeira e última vez, onde a imanência cruel é enquadrada em um postcard do infinito. Se De Toth reserva a carnificina ou o desvanecimento terminal dos homens em paisagem a prpncípio destinada a impromptus líricos é não só por pitoresco ou perverso “tardio”, mas porque a esta altura não é mais possível a um artista de seu quilate dissociar a intuição de que aquilo que nos fascina também paralisa, e, portanto, secretamente embalsame na morte. Hölderlin pensava em seu hino ao Reno que “aquilo que nos mata também pode salvar”, e de Adorno, Starobisnki a Heidegger e Martin Schütze, concluiu-se daí um panegírico elegíaco da finitude, questão sempre de leitura. O que nos revela uma crise senão também a possibilidade de recomeçar? Nestes estertores da estética clássica no cinema, aquela “frouxidão dos laços sensório-motores de ação” que Deleuze viu se abrirem com a guerra, atingiram um grau de saturação máxima. E, como naqueles ácidos de que se diz que foram neutralizados em sua base, acabaram por se rarefazer em uma atmosfera pneumática que apenas a luz e o branco habitam. Sim, as contemplatios videntes todas que, de Marienbad a Duras e Dwoskin, nos enlevaram começaram a se delinear mais possíveis aqui.