Se é certo que Cannes concedeu a Palma de Ouro deste ano ao fatídico The Square (O Quadrado, 2017), de Ruben Östlund, o ainda mais fatídico prémio de melhor realização a Sofia Coppola, a escolha do prémio do Grande Júri revela, contudo, um enorme sentido de justiça. Não o digo em relação a outros filmes em competição e que prometem maiores surpresas, como o Western (2017) de Valeska Grisebach, Geu-Hu (O Dia Seguinte, 2017) de Hong Sang-Soo ou o Okja (2017) de Bong Joon-Ho. Mas face aos vencedores deste ano, este será certamente o único filme digno de nota. Porque apesar dos seus defeitos, é um filme justo. Justo para com as vítimas do VIH, justo para com o movimento Act Up, justo para com as minorias, justo para com a História e sobretudo justo com aqueles que foram incapazes de fazer justiça quando era necessária uma resposta.
E justiça não é uma qualidade que possamos encontrar entre os pares vencedores, porque a arrogância e misantropia do cineasta de The Square veda a possibilidade de qualquer diálogo, assim como o universo burguês e académico de Sofia Coppola impede que possamos pensar além do exercício a que esta se presta sucessivamente sobre a sua classe e o seu universo. Porém, Campillo parte das suas memórias, durante a década de 90, sobre o movimento Act Up de Paris, ao qual esteve ligado e a luta por este travada contra o estigma da SIDA, pela prevenção e sobretudo pela necessidade urgente de tratamento dos pacientes infectados, sem que os receios formais que tanto teme o cinema de Sofia tomem conta do filme, ou sem que os receios de confronto e espaço ao espectador que Östlund nega, possam imergir no filme.
Os defeitos deste filme são de outra natureza e residem unicamente na forma. Não é o conservadorismo académico que me faz questionar 120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017), mas antes o modelo que o actual cinema francês segue precisamente contra a sua própria academia. Talvez pela sua produção ímpar em termos europeus, o cinema francês tem vindo a constituir novamente um corpo, que tal como a Nouvelle Vague constitui, segue um rumo onde os slow motions são um imperativo, onde a imagem cinematográfica dá lugar à imagem televisiva-publicitária e sobretudo a opção que este toma na montagem (paralela), onde o ilustrativo retira a força à narração (a cena em que um dos personagens principais conta a sua relação sexual com o professor de Matemática) e aos próprios acontecimentos (a cena, perto do fim, de sexo encadeada com a cena de festa). Estes clichés são ainda mais visíveis quando o tema é a juventude, como se estes fossem os novos códigos do cinema para a nova geração, uma geração tão incapaz de ir ao cinema, quanto o é no dar o corpo à manifestação e ao prazer.
Talvez por isso, os cineastas com um sentido de justiça pressupõem a necessidade crescente de se apoiarem num léxico reconhecível, na esperança de que o cinema e a luta possam novamente interpelar os jovens. Porque os corpos da actual geração não possuem a fisicalidade dos corpos que vemos neste filme. Estes são corpos que se expõem exteriormente (nas manifestações, através da roupa, na questão da linguagem e classe) e internamente (nos diversos debates a que assistimos na Act Up, onde é claro o contraste entre o líder conservador e os activistas que ao fundo da bancada exigem uma posição mais radical; ou o contraste de posições, onde o toxicodependente apela à mesma visibilidade que o caso “popular” do filho hemofílico que recebeu uma transfusão de sangue contaminado). O filme não toma partido, não cria espaço a que possamos ficar excessivamente lúgubres, porque eles estão ali para agir. A própria história não vive refém dos seus personagens principais, porque não há um verdadeiro protagonista, a não ser o grupo (se em algum momento podemos afirmar que a história se centra na relação de Sean e Nathan, tomemos então a conversa destes durante uma reunião, onde cada um revela ao outro quais os trabalhos de cada activista. Este gesto é fundamental, porque coloca os infectados dentro da sociedade, assim como lhes concede uma autonomia e singularidade dentro da história). E a acção é diária, porque a passagem do tempo significa a perda de alguém, de um membro que não estará lá no ano seguinte para dar a sua palavra de ordem durante a marcha LGBT.
120 battements par minute devolve a dignidade que durante anos – e ainda hoje são votados ao absoluto ghetto social – foi negada aos portadores do VIH.
O próprio activismo é também ele musical neste filme. A escolha de Campillo – neste aspecto, ele não repisa o mais habitual de todos os clichés, a música – não é arbitrária ou está ali para segurar a imagem, é antes a invocação precisa de Smalltown Boy da banda britânica Bronski Beat. Esta música poderá representar um hit mastigado da década de 80 para a actual geração, mas para a geração deste filme e de Campillo, foi um hino à visibilidade da comunidade LGBT, assim como ilustrou os problemas de bullying e discriminação que esta enfrentava.
E não é apenas o legado musical que este invoca. As próprias imagens do filme são devedoras e comungam de uma história imagética associada à cultura LGBT. Os dois exemplos mais óbvios são: quando o personagem principal conta o porquê de este não ter contraído o vírus numa época em que o desconhecimento reinava, graças à decisão de se abster sexualmente, após ter folheado uma revista americana onde se encontrava a fotografia de um casal homossexual infectado. Foi a imagem da América que o alertou, na Europa, para a doença que do outro lado do oceano não podia mais ser ignorada (apesar dos esforços de Reagan!).
O segundo exemplo invoca uma das fotografias mais célebres sobre a SIDA, publicada na revista Life e vencedora do World Press Photo de 1991. Levada a cabo pela fotojornalista Therese Frare ao activista David Kirby, no seu quarto de hospital em Ohio, rodeado pela sua família pouco antes de morrer. Esta imagem que mais tarde levaria a própria marca Benetton a adoptar na sua campanha de 1993 (época em que a publicidade ainda se poderia gabar de ter ideias e algumas empresas o interesse extra económico ou de catalisação de um grupo), e que haveria de ficar como uma das mais célebres da história da publicidade, surge neste filme num outro contexto, mas com a mesma carga dramática. Tal com o activista Kirby, Sean (o activista principal infectado) surge no quarto de hospital numa magreza extrema e a pietá da fotografia de Frare dá origem a uma outra cena, à cena do casal.
Não é o modelo familiar que Campillo decide convocar ali, porque este arrastaria consigo a dor e ignoraria o modelo ainda hoje contestado e não reconhecido, o do casal homossexual. Porque foram certamente milhares os casais que cabiam naquela imagem, mas ele decide dar ainda um outro passo, mais corajoso, o de não negar o prazer. O filme de Campillo não nos conduz à morte, mas antes à vida. Neste aspecto 120 battements par minute é a perspectiva de quem hoje, face ao actual estado de conhecimento e medicamentação da doença, pode oferecer uma imagem de resistência, que filmes como o de Paul Vecchiali Encore (Once More, 1988) não poderiam oferecer à época, porque o VIH era então uma incógnita e a sua coragem já está no acto de fazer um enorme e belíssimo filme musical sobre a SIDA e a homossexualidade. Por isso, o filme de Vecchialli tinha de terminar num cemitério e o de Campillo termina num “funeral político”, onde as cinzas do activista não devem ascender ao estatuto de relicário, mas antes serem usadas como objecto de protesto (as cinzas são despejadas em cima de um catering servido a empresários de seguros, que na época se recusavam a prestar quaisquer indemnizações).
Como dizia o líder do movimento no discurso final do filme, “Porque nós estamos a morrer, e nós não queremos morrer”. A grande coragem e justiça está precisamente neste aspecto, a vida continua. Por conseguinte, a cena do hospital (e a mais bela deste filme) termina com um orgasmo e risos e não através de uma comiseração patética, tal como o funeral termina com uma festa, com uma manifestação, com o sexo. Talvez por essa razão, a cena do velório seja tão longa, porque é necessário conceder aos personagens e a nós [espectadores], o tempo de luto necessário para que todos se possam desligar da história do sujeito e por fim reste apenas um corpo. Um corpo físico, matéria concreta, sem a vitalidade necessária para trabalhar o futuro. O futuro pertence somente aqueles que continuam a viver e aos quais lhes é exigida a tarefa de conservar a memória dos que partiram (a manifestação), de celebrar por aquilo que lutaram (a festa) e de fruir do prazer (o sexo na mesma cama onde Sean morreu).
120 battements par minute devolve a dignidade que durante anos – e ainda hoje são votados ao absoluto ghetto social – foi negada aos portadores do VIH. Porque o estado biopolítico de Mitterand foi responsável pela sua ocultação, censura e desprezo; porque foram os média os responsáveis pela sua diabolização; porque foi a polícia que contra eles investiu, responsável por sabotar a visibilidade das suas acções de protesto; porque foram as escolas responsáveis quando optaram por ignorar o problema da SIDA, a necessidade de informação em torno das práticas sexuais e protecções necessárias e ao negar máquinas de preservativos dentro do recinto; porque foram as empresas como a Melton Pharm que ocultaram as descobertas relevantes sobre os fármacos e condicionaram a própria distribuição através de atrasos e stocks insuficientes; porque foram autores como Baudrillard que trasvestiram a sua homofobia e preconceito em filosofia.
São estes que ficaram na História dos vencedores – o político, o empresário, o filósofo – que agora são convocados no filme para um ajuste de contas, para que se faça por fim justiça, e se possa honrar as milhares de vítimas – os homossexuais, os transexuais, os toxicodependentes, os negros, os emigrantes, as prostitutas, os adolescentes, os portadores de deficiências – que sem oportunidade de singrar nessa história, repousavam na história dos vencidos até que este filme os devolveu ao lugar que só a eles lhes cabe, o de vencedores.